ABY WARBURG — IMAGEM, MEMÓRIA E CULTURA
por António Guerreiro

PORTA33 — 06.08.2012 — 14.08.2012

Aby Warburg — Imagem, memória e cultura 1° dia — 1ª parte

Aby Warburg — Imagem, memória e cultura1° dia — 2ª parte

Aby Warburg — Imagem, memória e cultura2° dia — 1ª parte

Aby Warburg — Imagem, memória e cultura2° dia — 2ª parte

Aby Warburg — Imagem, memória e cultura3° dia — 1ª parte

Aby Warburg — Imagem, memória e cultura3° dia — 2ª parte

Aby Warburg — Imagem, memória e cultura4° dia — 1ª parte

Aby Warburg — Imagem, memória e cultura4° dia — 2ª parte

Aby Warburg — Imagem, memória e cultura5° dia — 1ª parte

Aby Warburg — Imagem, memória e cultura5° dia — 2ª parte

Aby Warburg — Imagem, memória e cultura6° dia — 1ª parte

Aby Warburg — Imagem, memória e cultura6° dia — 2ª parte

Aby Warburg — Imagem, memória e cultura7° dia — 1ª parte

Aby Warburg — Imagem, memória e cultura7° dia — 2ª parte

Aby Warburg — Imagem, memória e cultura8° dia — 1ª parte

Aby Warburg — Imagem, memória e cultura8° dia — 2ª parte

Aby Warburg (Hamburgo, 1866-1929), que iniciou a sua investigação multidisciplinar como historiador da arte, é uma figura grandiosa da primeira metade do século XX. Com ele, as ciências humanas e as chamadas "ciências da cultura" atingiram a dimensão de um projecto utópico. Apesar do famoso Instituto, em Londres, que detém o seu nome e onde está depositado o seu arquivo, (e do qual Gombrich foi director), a sua herança científica e intelectual esteve adormecida durante mais de meio século (em parte, pelas dificuldades na recepção e transmissão da sua obra), mas nos últimos anos deu-se um "renascimento" warburguiano, com efeitos bem visíveis tanto na disciplina de História da Arte como na concepção da história da cultura.

Este seminário incide sobretudo em dois aspectos da investigação de Warburg:
1) os seus contributos metodológicos e conceptuais para uma diferente compreensão da historicidade da arte;
2) a sua concepção de uma Kulturwissenschaft (uma "ciência da cultura") unitária que elimina as fronteiras entre as disciplinas e reivindica o objectivo grandioso de fazer um diagnóstico da "esquizofrenia" da cultura ocidental. Assim a sua "ciência universal da cultura" e a sua teoria da imagem – implicando uma singularíssima "iconologia" que ultrapassa tanto o campo da estética como o da história da arte e conflui numa concepção antropológica – serão os dois núcleos fundamentais a desenvolver neste curso, numa perspectiva que abrange toda a investigação warburguiana e, muito especialmente, o seu inacabado "Atlas das Imagens".

António Guerreiro, ensaísta e crítico literário no semanário "Expresso", é autor de O Acento Agudo do Presente [Prémio de Ensaio P.E.N. 2000, Cotovia] e editou com Olga Pombo e António Franco Alexandre, Enciclopédia e Hipertexto. Fundou com José Gil e Silvina Rodrigues Lopes a revista Elipse. Walter Benjamin e Aby Warburg são os autores a que tem dedicado nos últimos anos o seu trabalho de investigação. Com a Porta 33, António Guerreiro colaborou na apresentação dos livros Cântico dos Cânticos, com José Tolentino Mendonça, Ilda David e Alexandre Melo, [Museu de Arte Sacra, 1997] e O Lugar do Poço, com Rui Chafes e João Miguel Fernandes Jorge, [Porta 33, 1998]; participou no seminário Identidade(s): Nada, Tudo, Alguma Coisa, com Paulo Pires do Vale, José Tolentino Mendonça e João Barrento [Porta 33, 2011].

Nota biográfica

Programa

▪ Apresentação de Aby Warburg: os anos de formação como historiador de arte, a tese sobre Botticelli e o seu projecto de fundação, em Hamburgo, de uma Biblioteca das Ciências da Cultura (Kulturwissenschaftliche Bibliothek Warburg).
▪Apresentação da obra singular, inacabável e intransmissível de Warburg: a Biblioteca, o Atlas das Imagens (Bilderatlas Mnemosyne), e a investigação sobre o renascimento do paganismo antigo.
▪ O círculo Warburg em Hamburgo (uma constelação formada por figuras como Cassirer, Panofsky, Saxl e Curtius).
▪ A diferença entre a iconologia warburguiana e a iconologia de Panofsky.
▪ A concepção de uma História da Arte não "estetizante" e não formal.
▪ A noção warburguiana de uma Kulturwissenschaft ("ciência da cultura") unitária e baseada numa teoria da memória social.
▪ A memória como categoria histórico-filosófica.
▪ O conceito fundamental de Pathosformel ("fórmula de pathos") e a sua importância na teoria warburguiana da imagem.
▪ A Ninfa como Pathosformel e como revelação da "vida em movimento".
▪ Warburg, "sismógrafo" da cultura e "psico-historiador".
▪ Correspondências entre Warburg e Walter Benjamin: o Pathosformel e a "imagem dialéctica".
▪ A "vida póstuma", ou sobrevivência (Nachleben), das imagens.
▪ A imagem e o símbolo entendidos de um ponto de vista antropológico.
▪ A polaridade trans-histórica apolíneo/dionisíaco (Warburg leitor de Nietzsche e de Burckhardt): o ethos apolíneo e o pathos dionisíaco.
▪ A visão dionisíaca do Renascimento (oposta à visão canónica fixada por Winckelmann).
▪ A cultura como conquista nunca definitiva de um "espaço do pensamento" e como eterna luta entre o pensamento mágico-religioso e o lógico-matemático: a versão warburguiana da dialéctica do Iluminismo.
▪ A Biblioteca de Warburg como uma Problembibliothek (isto é, destinada a servir e resolver os problemas que se colocam ao investigador) e como percursora do hipertexto.
▪ O Atlas das Imagens (Bilderatlas Mnemosyne): uma "história de fantasmas para adultos.
▪ O Atlas como espacialização da História (o método da montagem e a sua relação com as vanguardas artísticas).

Nota: em algumas sessões do curso serão projectadas imagens, nomeadamente as que fazem parte dos painéis do Bilderatlas Mnemosyne.

AS IMAGENS SEM MEMÓRIA E A ESTERILIZAÇÃO DA CULTURA
por António Guerreiro

São inúmeras as aporias e antinomias reveladas pelo regime contemporâneo das imagens. Antes de mais, há esta situação paradoxal formulada por Derrida em Écographies de la télévision, que destitui uma das convicções mais partilhadas na sociedade em que vivemos: «Nous sommes en gros dans un état de quasi-analphabétisme à l'égard de l'image». Outros tópicos, mais comuns e até recorrentes, deram lugar a uma tematização de vasto alcance: as imagens não são o duplo da realidade, mas a única realidade que existe; as imagens destruíram os ídolos mas tornaram-se, elas próprias, objecto de idolatria; as imagens, devoradas pela lógica do seu movimento hipertélico, não vivem num tempo de glória (ao contrário do que deixa supor a ideia da «cultura da imagem»), mas num momento crepuscular. A estes tópicos, devemos acrescentar o longo capítulo da estreita relação entre as imagens artísticas e o fluxo da «imagerie» social e comercial, num tempo de estetização generalizada e de antropologia artificial. Na origem, está uma relação consubstancial entre as imagens e a modernidade consagrada por uma confissão de Baudelaire, profeta e sacerdote de uma religião moderna: «Glorifier le culte des images (ma grande, mon unique, ma primitive passion).» Mais perto de nós, Guy Debord lançou, em jeito de manifesto, uma fórmula que iria tornar-se uma espécie de cifra da época das fantasmagorias: «O espectáculo é o capital num tal grau de acumulação que se torna imagem».

No entanto, todas as análises de onde provêm estas conclusões incidem muito mais sobre o estatuto contemporâneo das imagens, no seu modo de proliferação e circulação, do que sobre as suas características imanentes, os seus poderes e limites internos. Um saber crítico sobre as imagens, que as coloque no centro de um processo histórico e cultural e as interrogue na sua dimensão antropológica, nunca teve uma expressão equivalente à crítica da linguagem. Não é que a arte contemporânea, nas suas diversas manifestações e disciplinas, não remeta muitas vezes para uma crítica – ou mesmo uma crise - da imagem. Mas a essa abertura reflexiva do trabalho artístico nem sempre tem correspondido um discurso de ordem teorética, da racionalidade estética, filosófica, antropológica, histórica. Ou então, a análise detém-se num quadro delimitado pela metafísica: o primado da imagem sobre a coisa, da cópia sobre o original, da representação sobre a realidade.

Uma concepção da imagem que faz dela o centro do processo de transmissão cultural e lhe confere uma espessura histórica e um «poder mitopoiético», foi aquela que Aby Warburg desenvolveu a partir de um lugar, que ele próprio classificou como de «psico-historiador» e de «sismógrafo da alma situado na linha de divisão entre as culturas»[1], entre o Oriente e o Ocidente, entre a cultura pagã primitiva e da Antiguidade e o Renascimento cristão. Nesta perspectiva, a ambição da sua muito singular iconologia ia muito para além das imagens artísticas, e incidia sobre as formas de representação visual e as formações de estilo que lhe forneciam a chave de uma «psicologia geral da expressão humana». Como se pode perceber nesta formulação, para Warburg a imagem não pode ser separada da sua «linfa vital» como disse Edgar Wind, que é a relação com a poesia, com o mito, com a religião, com a totalidade cultural (a Gesamtkultur). Encontramos aqui os fundamentos de uma antropologia das imagens, que leva Georges Didi-Huberman a considerar que «para Warburg, a imagem constituía um 'fenómeno antropológico total', uma cristalização, uma condensação particularmente significativa do que é uma cultura».[2] Esta antropologia das imagens abria o caminho a algo que tinha um alcance muito mais vasto do que a simples decifração iconológica. Referimo-nos ao estudo dos contextos de circulação das imagens, da migração histórica e geográfica, dos processos de polarização (isto é, de reactivação semântica dos seus pólos no contacto com uma nova época) e das práticas sociais ritualizadas que as imagens implicam. Warburg sentiu a necessidade de superar «uma estética meramente formal»[3] e por isso situou-se entre várias disciplinas. Esse programa teórico e metodológico procura definir uma «necessidade» da imagem que faz dela uma realidade muito mais complexa do que um objecto de contemplação estética. Esse programa ficou bem claro quando, numa das notas preparatórias para a sua conferência de Kreuzlingen sobre a viagem que tinha feito, vinte e oito anos antes, à região dos Índios Pueblo, no Novo México, escreveu o seguinte: «Tinha começado a sentir uma verdadeira repulsa pela história de arte estetizante. A consideração formal da imagem – incapaz de compreender a sua necessidade biológica como produto intermédio entre a religião e a arte – parecia-me conduzir a uma estéril tagarelice».[4]

Essa conferência fornece alguns apontamentos importantes para percebermos a ideia de Warburg de que a cultura ocidental é esquizofrénica e de que essa esquizofrenia é interna às imagens, na medida em que estas trazem consigo, no percurso trans-histórico que efectuam como sobrevivências espectrais (como Nachleben), o conflito que está na base da sua formação: entre a representação racional e a representação mágica da vida, entre o logos e o pathos, entre a emoção primitiva e a reflexão que pretende dominá-la. Neste sentido, as imagens são dotadas de um carácter demoníaco, formam-se precisamente nas profundezas insondáveis de uma emoção originária, de uma reacção fóbica, de um acontecimento traumático que se inscrevem indelevelmente sob a forma de uma carga energética que funciona como um engrama ou dinamograma da memória colectiva. É o caso da serpente, que numa dança ritual dos Hopi é um símbolo onde é investido o poder do raio da trovoada que propicia a chuva.

Enquanto símbolo, a serpente tem um valor ambivalente: ela é ao mesmo tempo um perigo mortal, mas é também a salvação, a doença e o remédio. Esta duplicidade está também presente na função do símbolo: ele é simultaneamente uma representação arcaica proveniente de uma forma de pensamento mágico e um instrumento da racionalidade. E ao descobrir esta duplicidade, «esta sincronia de civilização lógica e causalidade mágica», Warburg chega a esta conclusão: «Os Pueblo encontram-se a meio caminho entre magia e logos, e o instrumento com que se orientam é o símbolo. Entre o colector primordial e o homem que pensa encontra-se o homem que institui conexões simbólicas. E as danças dos Pueblo são um exemplo deste estádio simbólico do pensamento e do comportamento».[5] A grande questão que se coloca ao requintado historiador de arte e Kulturwissenschaftler de Hamburgo na sua viagem aos Índios é a da relação entre as forças expressivas primitivas e as suas figurações míticas que engendram o processo da cultura e, por conseguinte, procedem ao controlo dessas forças. E as imagens, para Warburg, são o ponto de ligação entre esses dois momentos. E são também elas que, na sua migração, revelam proximidades insuspeitadas entre culturas geograficamente distantes e em fases de evolução completamente diferentes: entre a cultura europeia (e, muito especialmente, o Renascimento italiano) e o paganismo antigo. Daí, que a história de arte warburguiana (em chave kulturwissenschaftlich) seja voltada não para o que se altera, mas para o que permanece sob a forma de uma energia viva da memória social, inculcada nas «fórmulas de pathos», nas pathosformeln (que são, no fundo, outro nome para as imagens, tal como Warburg as define). Percebemos assim o sentido da epígrafe com que abre O Ritual da Serpente: Es ist ein altes Buch zu blättern,/ Athen-Oaribi, alles Vetern, ou seja, «É um velho livro a folhear,/ Atenas e Oraibi, todos primos». Estas palavras retomam, modificando-os, dois versos do Fausto, de Goethe, que tinham servido de epígrafe ao ensaio de 1920 sobre "Divinização Antiga Pagã em Textos e Imagens da Época de Lutero»: Es ist ein altes Buch zu blättern:/ Vom Harz bis Hella alles Vettern («É um velho livro a folhear:/ Do Harz à Hélade, todos primos»). Sublinhemos, aliás, que ao descobrir o valor simbólico da serpente na dança ritual dos Pueblo (mostrando também que esta se torna um hieróglifo nos desenhos de algumas crianças índias), Warburg faz um excurso evocando o grupo escultórico de Laocoonte, descoberto no Renascimento, onde se exibe a serpente no seu poder destruidor, onde é plausível projectar a visão de um lado trágico e dionisíaco da cultura renascentista, tão longamente denegado desde Winckelmann. Numa conferência de 1914, em Florença, sobre a pintura do Renascimento, ele tinha afirmado: «Não temo ser mal compreendido ao dizer que se o Renascimento não tivesse descoberto o doloroso Laocoonte, teria de o ter inventado, precisamente pela sua perturbante eloquência patética».[6]

A imagem, para Warburg, é pois, uma formação simbólica que traz a memória de uma origem que a carregou de energia e através da qual ela sobrevive nas suas manifestações históricas. Ela está relacionada com uma inscrição emotiva, de grande intensidade. Daí advém a sua «necessidade biológica». O verdadeiro objecto de uma ciência da cultura deveria ser então «a história psicológica por imagens do espaço intermédio entre impulso e acção» (Mnemosyne, Introdução). A história da cultura pode ser assim acompanhada (mesmo geograficamente) através de um Atlas de imagens (em que Warburg trabalhou nos últimos anos da sua vida) que serviria uma «crítica da des-razão pura», uma Kritik der reinen Unvernunft, como deixou escrito numa nota sobre o seu Bilderatlas Mnemosyne. A questão que Warburg vai colocar no final da sua conferência sobre O Ritual da Serpente diz respeito ao destino cultural do homem, lido em chave trágica no enfraquecimento do «poder mitopoiético da imagem», como já tinha diagnosticado em 1901, num pequeno texto escrito pela morte de Böcklin, em Florença: «No nosso tempo de tráfegos, de caos destruidor de distâncias, ele opunha-se ainda à corrente e vigorosamente defendia o direito do pirata a um romântico idealismo; à evocação mediante o poder mitopoiético da imagem».[7] Se o problema, em muitos momentos da nossa civilização, tinha sido o de controlar as imagens, «as formas expressivas da máxima exaltação interior», cuja matriz tem de ser procurada «na região da exaltação orgiástica de massa» (Mnemosyne), agora, o que Warburg descobre ao escrever sobre a viagem que tinha feito vinte e oito anos antes (em que foi muito importante a experiência de passar directamente de Nova Iorque, para a região dos Hopi) é a impossibilidade moderna de produzir imagens, isto é, a rarefacção dos símbolos numa civilização do signo.

Em Warburg, a dialéctica do Iluminismo configura-se então desta maneira: a cultura está exposta aos demónios do mito, da magia e da imaginação; e, para não sucumbir, ela cria distância (começa assim a introdução ao Atlas Mnemosyne: «Introduzir conscientemente uma distância entre o eu e o mundo exterior é aquilo a que podemos sem dúvida designar como o acto fundador da civilização humana»). A esta distância, chama Warburg Denkraum, isto é, espaço para o pensamento, para a reflexão e a crítica. O Denkraum corresponde de certo modo à sophrosyne grega, e é o que permite que se estabeleça uma distância reflexiva entre o homem e as suas paixões. Mas se a distância criada pelo Denkraum é uma medida de protecção contra a imediaticidade mágica e as forças obscuras do mito, a abstracção do racionalismo e da técnica ameaça quebrar esse equilíbrio e, por outra via, quebrar a distância. O perigo, então, não é o de a cultura sucumbir às regiões obscuras do mito, mas o de redundar na pura esterilidade e no formalismo vazio (Nova Iorque forneceu-lhe essa visão e, por isso, segundo o seu próprio testemunho, sentiu necessidade de ir para outras paragens). Um dos documentos fotográficos que Warburg exibiu durante a conferência (já no final) foi uma foto que tirou em São Francisco, onde se vê um homem - de barbas e de chapéu cilíndrico como o tio Sam – a caminhar na rua, tendo atrás de si um edifício a imitar um monumento neo-clássico e uma linha aérea de fios eléctricos. Do Novo México para São Francisco, Warburg passou do símbolo da serpente, com a qual os Índios tentavam domesticar o raio que lhes proporcionaria a chuva, para a electricidade capturada e domesticada nos fios. E concluindo, a partir da sua experiência americana e dos documentos que trouxe consigo, que o espaço para o pensamento, tão esforçadamente conquistado ao mito, estava a ser destruído, faz estas considerações que se tornaram um dos pontos mais discutidos da obra de Warburg: «O raio aprisionado no fio – a electricidade capturada – produziu uma civilização que faz tábua rasa do paganismo. Mas o que coloca no seu lugar? (…) O moderno Prometeu e o moderno Ícaro, Franklin e os irmãos Wright, inventores do aeroplano: são eles os funestos destruidores do sentido da distância que ameaçam fazer recair o mundo no caos».[8]

A ideia de um Warburg anti-moderno nasce em grande parte deste epílogo desencantado. Mas as coisas são muito mais complicadas e qualquer leitura apressada desta passagem pode ser uma traição. É preciso ter em conta que o autor de O Ritual da Serpente tinha uma concepção da história da cultura incompatível com a desmitização, tal como ela é entendida na narrativa historicista do processo de secularização. A sua visão trágica da cultura implicava precisamente um dualismo perene (a luta de Atenas contra Alexandria), um conflito nunca resolvido entre o pensamento lógico-racional e pensamento mágico-religioso. Sem a existência desse intervalo entre os dois pólos, a arte não seria concebível. O artista, diz Warburg na sua introdução ao Atlas Mnemosyne, «oscila entre a visão matemática do mundo e a religiosa». Num ensaio sobre o conceito warburguiano de Kulturwissenschaft e o seu significado para a estética, Edgar Wind indica exactamente o lugar intermédio, entre dois extremos, onde Warburg situa a actividade artística: «Onde o símbolo é compreendido como signo e todavia permanece vivo como imagem, onde a vivacidade espiritual em estado de tensão entre estes dois pólos não é concentrada por meio da força intensa da metáfora, de modo a descarregar-se na acção, nem eliminada por meio das categorias do pensamento que operam uma cisão, de modo a volatilizar-se em conceitos. Precisamente este é o lugar da 'imagem (no sentido de simulacro artístico)».[9]

Como vimos, «mitopoiética» é como Warburg define a esfera de produção de imagens. No diálogo entre a imagem e o mito, há algo que transborda para a acção: a imagem é dotada de uma capacidade não apenas de representar, mas de suscitar os estados de alma. E aquilo que é visado na relação entre a imagem e o mito não é puramente linguístico, nem puramente visual, nem uma síntese destas duas dimensões. Giorgio Agamben mostrou que a concepção warburguiana da imagem como Pathosformel é um híbrido «de matéria e de forma, de criação e de performance, de singularidade inaugural e de repetição».[10] Ora, os dois parágrafos finais de O Ritual da Serpente são uma dolorosa verificação de que chegou ao fim o poder mitopoiético. Em contrapartida, e como consequência dessa atrofia, passou-se para o formalismo vazio das imagens que proliferam porque são destituídas da pluri-estratificação semântica que caracteriza aquelas feitas de tempo e de memória – objecto da singularíssima historiografia warburguiana. Numa cerimónia, em Hamburgo, em Julho de 1929 (três meses antes de morrer), Warburg exprimiu claramente o seu repúdio pelo fluxo e justaposição de imagens de enormes proporções de que a imprensa se começava a servir. No discurso que pronunciou para festejar três novos doutorados[11], mostrou ao auditório uma página do suplemento ilustrado do jornal Hamburger Fremdenblatt (reproduzida no painel 79, que encerra a última versão do Bilderatlas) e apontou aquilo a que, com notória irritação, chamou «salada de imagens». Trata-se de uma montagem, onde podemos ver, segundo a descrição feita pelo próprio Warburg: um jogador de golfe vitorioso; um grupo de jogadores, membros de um clube de golfe, que seguem a bola com o olhar; a vencedora de uma partida de golfe a ser festejada por um membro do governo do Land; uma comissão francesa para o estudo de um porto; uma regata de barcos a remos; o presidente da câmara de Boizenburg; um grupo de comerciantes; o vencedor de uma prova de natação de 400 metros; um cavalo de corrida; e ainda o papa Pio XI numa procissão na Praça de São Pedro. Comentando estas imagens, Warburg observa o contraste entre as imagens que exibem figuras mundanas e que apelam ao comprazimento físico, e a imagem da procissão papal que, de resto, surge cortada num canto para dar espaço ao nadador. E, com ironia, acrescenta que «nesta salada de imagens o princípio da recordação da Antiguidade está garantido: a égua à esquerda chama-se Alexandria e o garanhão chama-se Hércules».[12] A conspícua contraposição de duas ordens diferentes de imagens – as que ostentam o corpo olímpico e o comprazimento físico e as que mostram o Papa ajoelhado – merece este comentário, sob a forma de uma interrogação: «Quem está disposto a receber um arcebispo (no parágrafo anterior, Warburg tinha referido que o arcebispo de Hamburgo tinha abandonado o cargo) numa cidade que mostra toda a sua grosseria nesta justaposição em que o divertido hoc meum corpus est está ao lado do trágico hoc est corpus meum, sem que esta discrepância leve a um protesto por tal falta de estilo?»[13] Nesta justaposição e sobreposição de imagens, vê Warburg o indício de perda de consciência histórica e uma ameaça ao «espaço de pensamento» para a reflexão; e as imagens que entram no espaço de outras são o sinal de um nivelamento de todas as diferenças e de uma racionalidade ameaçada por obscuros demónios que ele intuiu nas imagens da vida moderna e que dois estudiosos do Atlas Mnemosyne interpretam de maneira penetrante: «Pode-se concluir que Warburg entendeu como um fenómeno dialéctico a crise da memória social por ele diagnosticada. A atrofia da consciência histórica parecia-lhe tão perigosa, além do mais, porque a ela correspondiam, do lado oposto, construções pseudo-históricas supletivas, das quais se adornava a política de extrema-direita. Por isso, o Atlas não se dirigia apenas contra uma má forma de esquecimento, mas devia também opor-se a uma 'recordação' falsificada. Um e outro – esquecimento problemático e recordação falsificada – apresentavam-se em grande medida como efeitos dos media».[14]

Todo o trabalho de Warburg sobre as imagens tinha como objectivo mostrar que estas são dotadas de uma complexidade e suscitam um modo crítico de pensar que se perde nas «saladas de imagens». Ora, para «nos ajudar a conter o caos da des-razão», diz Warburg nesse discurso do Doktorfeier, sentiu a necessidade de criar «um sistema filtrante da reflexão retrospectiva», uma «estação receptora» a que deu o nome de Kulturwisswenschaftich Bibliothek Warburg.





Notas bibliográficas

[1] Philippe-Alain Michaud, Aby Warburg et l'image en mouvement, Paris, Macula, 1998, p. 282

[2] Georges Didi-Huberman, L'image survivante. Histoire de l'art et temps des fantômes selon Aby Warburg, Paris, Minuit, 2002 p. 48

[3] Aby Warburg, «Italienische Antike im Zeitalter Rembrandts», Warburg Institute Archive,1926; ed. ut.: «L'Antico italiano nell'epoca di Rembrandt», in Opere II . La Rinascita del paganesimo antico e altri scritti (1917-1929), Turim, Nino Aragno Editore, p. 632

[4] Ernst Gombrich, Aby Warburg. An Intellectual Biography, 2ª ed., Chicago-Oxford, The University of Chicago Press-Phaidon, 1986, p. 84

[5] Aby Warburg, Schlangenritual. Eine Reisebericht, Berlim, Verlag Klaus Wagenbach, 1988; ed. Ut.; Il Rituale del serpente, Milão, Adelphi, p. 28

[6] Aby Warburg, «Der Eintritt der antikisierenden Idealstils in die Malerei der Frührenaissance», in Gesammelte Schriften, I-1, Berlim, Akademie Verlag; ed. ut.: «L'Ingresso dello stile ideale anticheggiante nella pittura del primo Rinascimento», in La rinascita del paganesimo antico, Florença, Nuova Italia, p. 307

[7] Ernst Gombrich, op. cit., p. 136

[8] Aby Warburg, op. cit., p. 66

[9] Edgar Wind, Warburgs Begriff der Kulturwissenschaft und seine Bedeutung für die Ästhetik», in Aby M. Warburg, Ausgewählte Schriften und Würdigungen, Baden-Baden, Verlag Valentin Koerner, 1992, p. 410

[10] Giorgio Agamben, Nymphae, in revista Aut Aut, 321/322, Maio-Agosto de 2004, Milão, Saggiatore, p. 56

[11] Aby Warburg, Doktorfeier, Warburg Institute Archive, 1929; ed. ut.: «Discorso di festeggiamento per tre dottorati», in Opere II . La Rinascita del paganesimo antico e altri scritti (1917-1929), Turim, Nino Aragno Editore, pp. 905-909

[12] Aby Warburg, op. cit., p. 907

[13] Idem, ibidem.

[14] Wolfram Pichet, Gudrun Swoboda, «Gli spazi di Warburg. Topografie storico-culturali, autobiografiche e mediali nell'atlante Mnemosyne», in Quaderni. Warburg Itália I, Siena, Cadmo, 2003

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