Sba*
Raquel Feliciano
*em alfabeto hieroglífico egípcio: a porta / a estrela
PORTA33 — 26.05.2012 —29.09.2012
Conversa com Maria João Branco, Raquel Feliciano e Rodrigo Silva

PORTA33 — 02.06.2012

E o mundo, o espelho que as luas acordam e de onde
transbordam as águas, sou eu que o contemplo,
é ele que me contempla,
ou trocamo-nos? Vivemos pelo poder das imagens.


Herberto Helder

1

O Timeu é um diálogo de Platão que conta a formação do universo. O texto começa com o relato da viagem de Sólon ao Egipto, onde ouviu contar a antiga história do povo da ilha da Atlântida. Na cidade de Saïs, um ancião narrou-lhe os feitos daquele povo que, "vindo de outro mundo situado no oceano Atlântico", subjugou a Europa e a Ásia e apenas foi vencido pelos atenienses, antepassados remotos do próprio Sólon. O egípcio conta-lhe ainda que, após a vitória dos gregos, um só dia e uma só noite bastaram para sismos tremendos e inundações extraordinárias destruírem vencedores e vencidos e para a ilha da Atlântida desaparecer, engolida pelo mar.

Atenas não guardou memória dos acontecimentos que precederam tais catástrofes. O texto de Platão ensina que foi no Egipto e pelos egípcios que o mais sábio dos gregos conheceu a história remota da sua própria cidade. A viagem de Sólon ao Egipto e a história da Atlântida iniciaram-no, assim, no saber de um tempo mais amplo do que o das aventuras humanas, um saber que só a escrita e a história puderam conservar. Esse tempo, que é um tempo medido pela força dos elementos, parecia desconhecido ou ter sido esquecido pelos gregos. Por isso, para os egípcios, os gregos "são sempre crianças" que nenhuma história ou tradição envelhece: "estão sempre, como os jovens, no ponto de partida, não sabendo nada do que se passou em tempos antigos, nem no Egipto, nem na sua cidade."

Ao relato da viagem de Sólon, Platão faz suceder o de Timeu, um astrónomo ateniense que se propõe narrar a formação do universo e falar de um tempo anterior ao aparecimento de Atenas e dos homens no mundo. Timeu conta que o mundo não foi criado a partir do nada num momento único e fundador, mas construído e ordenado por um demiurgo a partir da desordem dos elementos já existentes, o fogo e a terra, o ar e a água. Esférico, o mundo foi dotado de um movimento de rotação sobre si próprio e de uma alma, mas faltava-lhe a eternidade das ideias à imagem das quais fora construído. Então, para tornar o mundo eterno, o demiurgo fez nascer o tempo e o céu, uma "imagem móvel da eternidade". O movimento dos planetas — "astros errantes", segundo a etimologia — é o que permite medir o tempo. Este último é o espaço nocturno onde vagueiam pontos de luz. Por isso, diz Timeu, "o tempo nasceu com o céu". É quando os astros começam a mover-se que o tempo nasce. E a ordem do mundo, a eternidade da sua alma, mostra-se no seu movimento luminoso. Movendo-se, a imagem celeste da eternidade que o demiurgo construiu não é, portanto, uma imitação da eternidade, mas a sua contínua geração. O tempo é essa imagem, uma imagem animada, dotada de movimento, não estática, não fixa para sempre. Separados uns dos outros, os planetas deslocam-se na escuridão da noite e é a sua contínua deslocação que faz o tempo acontecer.

Assim, no relato da origem do mundo que Platão começa com uma homenagem aos egípcios, o tempo, "imagem móvel da eternidade", é um tempo cósmico e não apenas humano1. O tempo só nasce, só vem à luz na luz dos corpos que o geram girando continuamente no espaço celeste e escuro: "os dias, as noites, os meses, os anos, não existiam antes do nascimento do céu e foi ao construir o céu que ele [o demiurgo] pensou em fazê-los nascer; são todos partes do tempo". Quanto à terra, "a nossa ama", "enrolada no eixo que atravessa todo o universo", ela é "a guardiã e a fazedora da noite e do dia, a primeira e mais antiga divindade nascida no interior do céu."

2.

Nos trabalhos desta exposição não há figuras humanas. Remetendo-nos, no título, para uma concepção egípcia do mundo, Raquel Feliciano parece evocar um sentido cósmico do tempo, um tempo anterior à humanidade. Tomando o lugar do demiurgo do Timeu, a artista indica qualquer coisa do antes do homem, do mundo que já lá estava quando o humano apareceu. Um mundo silencioso, mineral, por vezes lunar.

No entanto, esse mundo para que nos chama é um mundo visto e concebido por olhos humanos. Melhor dizendo, é um mundo onde por todo o lado o humano (que não vemos, mas cujo olhar e movimento pressentimos) se adivinha a si mesmo. Céu e terra são aqui imagens, não da eternidade, mas de um movimento a que o homem também pertence, do constante começo que o homem também é, do poder estar sempre a nascer. Aparentemente ausente destes trabalhos, o humano apresenta-se, na verdade, ali, como o limiar, espacial e temporal, entre a exterioridade visível e celeste e uma interioridade nocturna e telúrica. Desse limiar não vemos, porém, o corpo. O limiar é o corpo, um corpo terrestre, humano, que vive sob um imenso lá fora sideral e abriga uma interioridade sem fim.

Nesse limiar, no humano e pelo humano, acontece o mundo. E é um mundo feito de contrários, uma articulação de diferentes, o dia e a noite, o baixo e o alto, o aberto e o fechado (que o homem também é). A artista interroga os limites desses contrários, o ponto em que se tocam, em que se passam. E a passagem é uma entrada ou uma saída. Soleira ou umbral, é tanto o vão que acolhe a luz do dia, o limite onde a luz bate ou embate, como a câmara de obscuridade no extremo da qual a luz se recorta. Uma abertura onde a claridade é pela treva e esta pela claridade, a passagem entre um interior e um exterior.

Estar entre o dentro e o fora é o estar à porta que Raquel Feliciano descobriu ser o nome hieroglífico das estrelas. Sba evoca o parentesco das palavras "estrela" e "porta" como passagem, entrada na luz ou saída da noite, uma no limite da outra, tocando-se sem mistura. As imagens de grutas, aberturas para um interior escuro ou fissuras por onde se vislumbra o dia, põem-nos à beira, a chegar, no ponto onde ainda não entrámos, já estando, porém, à porta disso. São imagens de uma expectativa, de um entre o sair e o entrar, de um momento que está simultaneamente fora e dentro do tempo. Momento virgem do começo, de um nascimento em vias de acontecer, no qual a memória e o saber das coisas passadas simplesmente soçobram. Numa espécie de regresso ao "ponto de partida" — que faz o mundo continuar.

3.

Tal como a caverna platónica, a gruta é "o lugar emblemático do parto do visível"2 . A gruta é a terra, "fazedora da noite e do dia", "nossa ama" (Timeu). Nela, como na mulher do poema, principiam o mar e o mundo. Ela é o feminino que se furta à luz, o invisível côncavo e escuro que concebe e enterra os seres, que dá lugar à vida e dá lugar aos mortos. Os ventres rochosos destas imagens geram o tempo, se é verdade que começa o tempo onde a mulher começa (H. Helder). São femininos e nocturnos e deles nasce o dia (que neles se dissolve).

O nascer e o morrer, o estar a caminho entre vida e morte — é disso que os trabalhos aqui reunidos são imagem, articulando um tempo de dimensões cósmicas com a temporalidade humana. O tempo dos homens não é o de uma eternidade fixa e sempre idêntica. Mede-se, antes (ou também), pela contínua emergência do novo3. Nas peças que agora se mostram — imagens-estrelas-portas num espaço que é ele próprio, como convém lembrar, uma Porta —, as visões egípcia e grega do mundo parecem, assim, contaminar-se e indicar que a vida humana simultaneamente deriva e descontinua o mundo que a gerou. Furtando a figura humana ao olhar do espectador, estes trabalhos assinalam a articulação de contrários que essa mesma figura é, um limiar e um enigma por resolver. Nesta medida, fazem pensar noutras imagens onde se cruzaram o tempo egípcio e o tempo grego, os retratos funerários dos sarcófagos encontrados em Fayoum. Dando a ver o rosto daqueles mortos, a sua vida e a sua morte, os pintores destes retratos parecem seguir o fluxo temporal inverso do da cosmologia de Raquel Feliciano. E no entanto, tal como as peças desta exposição, também aqueles retratos são "uma porta entreaberta" — estão "entre um para além do qual nada sabemos e a vida de que se retiram"4.

É nesse entre, nesse estar sempre prestes a acontecer, no qual e do qual pouco sabemos, que tudo acontece e que nós mesmos nos tornamos, continuamente, no que somos. É o tempo da criação, não celeste, mas terrestre. Um tempo da iminência que é também próprio da criação artística e no qual novas formas estão continuamente a vir ao mundo. Onde o humano acontece antes de desaparecer no escuro de uma noite sem portas.

A noite antiquíssima e idêntica, demorada, igual por dentro ao silêncio, a quem Campos pede que o torne humano, é também evocada por Raquel Feliciano. À beira-mar (outro limiar), o olhar da artista (da sua máquina) dá tempo à noite e é então que ela vem — vagamente, lentamente, soleníssima e estriada pelo rasto circular da luz das estrelas. Vemos a noite chegar, vemos a sua luz prateada tocar de longe os sais de prata das fotografias e parece-nos poder ouvir o movimento giratório de um imenso disco de vinil. Nunca saberemos se é a noite que vem ou se, ao invés, ela nos recebe: estamos nela e à sua porta, distantes do céu estrelado e nele mergulhados, por ele envolvidos, embalados. A sua visão comove os homens, liga o mais distante e exterior à profundidade do íntimo, aproximando o côncavo e o convexo presentes em cada peça desta exposição. No mundo-dodecaedro que Raquel Feliciano construiu como o demiurgo de Platão construiu o universo, a noite é um interior infinito que se reflecte (e nos reflecte) sem fim. Na superfície porosa desse interior escondido, porém, pequenas luzes bruxuleantes parecem chamar-nos pelo nome, convidar-nos a entrar. Discretamente cintilam na superfície do Modelo de Universo, vacilando exactas, bruxuleando firmes, como nos versos de Sena, aqui no meio de nós.

Se as estrelas são portas, como o eram para os egípcios, a sua visão consola-nos da obscuridade em que estamos face ao que vai chegar, escondido no regaço escuro onde todas as formas vão morrer. Se as estrelas são portas, elas são a nossa própria imagem: como nós estão mergulhadas, alternadamente, em luz e escuridão e como nós beneficiam, no estado de obscurecimento, de um brilho consolador e pleno de promessas (Novalis). O mesmo brilho das obras que agora se mostram, portas ou estrelas lançando alguma luz na nossa noite.



Maria João Mayer Branco, Lisboa, Junho 2012





1Segue-se a interpretação de Rémy Brague, “Pour en finir avec ‘Le temps, image mobile de l’éternité’”, na obra Du temps chez Platon et Aristote. Quatre études, PUF, Paris, 2003 (pp. 12-71).

2Marie-José Mondzain, Le commerce des regards, Éditions du Seuil, Paris, 2003 (p. 116).

3Cf Cornelius Castoriadis, "Tempo e criação" in O mundo fragmentado. As encruzilhadas do labirinto, Campo da Comunicação, Lisboa, 2003 (pp. 247-280).

4Jean Christophe-Bailly, L'apostrophe muette. Essai sur les portraits du Fayoum, Éditions Hazan, Paris, 1998 (p. 148).

E o mundo, o espelho que as luas acordam e de onde
transbordam as águas, sou eu que o contemplo,
é ele que me contempla,
ou trocamo-nos? Vivemos pelo poder das imagens.


Herberto Helder

O Timeu é um diálogo de Platão que narra a formação do mundo. No texto, o astrólogo Timeu conta que o mundo não foi criado, mas construído e ordenado por um demiurgo a partir da desordem dos elementos existentes, fogo e terra, ar e água. Esférico, o mundo foi dotado de um movimento de rotação sobre si próprio e de uma alma, mas faltava-lhe a eternidade das ideias à imagem das quais fora construído. Então, para tornar o mundo eterno, o demiurgo fez nascer o tempo e o céu, uma "imagem móvel da eternidade". O movimento dos planetas — "astros errantes", segundo a etimologia — é o que permite medir o tempo. Por isso, diz Timeu, "o tempo nasceu com o céu". Quando os astros começam a mover-se, o tempo nasce.

A ordem do mundo mostra-se no movimento luminoso dos corpos celestes, na luz que se move de noite. É uma ordem visível, perceptível, imagem da alma do mundo. O céu é imagem da eternidade, não porque imita a eternidade, mas porque o movimento luminoso dos planetas não cessa de a produzir, de a gerar.

Para Platão, a imagem móvel da eternidade é, assim, o desenho luminoso do céu estrelado, um tempo cósmico e não apenas humano1. O tempo só nasce, só vem à luz na luz dos corpos que giram no espaço celeste e escuro: "os dias, as noites, os meses, os anos, não existiam antes do nascimento do céu e foi ao construir o céu que ele [o demiurgo] pensou em fazê-los nascer; são todos partes do tempo". Quanto à terra, "a nossa ama", "enrolada no eixo que atravessa todo o universo", ela é "a guardiã e a fazedora da noite e do dia, a primeira e mais antiga divindade nascida no interior do céu."

Nos trabalhos desta exposição não há figuras humanas. Raquel Feliciano parece, em certa medida, evocar um sentido cósmico do tempo, a temporalidade celeste do Timeu. A sua demiurgia indica qualquer coisa do antes do homem, do mundo que já lá estava quando o homem nasce. Um mundo silencioso, mineral, por vezes lunar. E no entanto, é um mundo visto por olhos humanos — ou melhor, onde por todo o lado o humano (que não vemos, mas cujo olhar e movimento pressentimos) se adivinha a si mesmo. Céu e terra são aqui imagens, não da eternidade, mas de um movimento a que o homem também pertence: do eterno começo que o homem também é, do poder estar sempre a nascer. Aparentemente ausente deste mundo, o humano apresenta-se, na verdade, ali, como o limiar, espacial e temporal, entre a exterioridade visível e celeste e uma interioridade nocturna e telúrica. Desse limiar não vemos, porém, o corpo. O limiar é o corpo — terrestre, humano — que vive sob um imenso lá fora sideral e abriga uma interioridade sem fim. Uma gruta de onde saltam / os sóis, uma insónia que liga / o dia ao dia. (H. Helder)

É no limiar, no humano e pelo humano, que acontece o mundo. O mundo feito de contrários, uma articulação de diferentes, o dia e a noite, o baixo e o alto, o aberto e o fechado (que o homem também é). A artista interroga os limites desses contrários, o ponto em que se tocam, em que se passam. E a passagem é uma entrada ou uma saída. Soleira ou umbral, é tanto o vão inferior que acolhe a luz do dia (o limite onde a luz bate ou embate), como a câmara de obscuridade no extremo da qual a luz se recorta Uma abertura onde a claridade é pela treva e esta pela claridade, passagem entre um interior e um exterior. Estar entre o dentro e o fora é o estar à porta que Raquel Feliciano descobriu ser o nome hieroglífico das estrelas. Sba evoca o parentesco das palavras "estrela" e "porta" como passagem, entrada na luz ou saída da noite, uma no limite da outra, tocando-se sem mistura. As imagens de grutas, aberturas para um interior escuro ou fissuras por onde se vislumbra o dia põem-nos à beira, à chegada, no ponto onde ainda não entrámos, já estando, porém, à porta disso. À espera, entre o sair e o entrar, no momento que está simultaneamente fora e dentro do tempo, que é começo, nascimento.

Tal como a caverna, a gruta é "o lugar emblemático do parto do visível"2 . A gruta é a terra, "fazedora da noite e do dia", "nossa ama". Nela, como na mulher do poema, principiam o mar e o mundo. Ela é o feminino que se furta à luz, o invisível côncavo e escuro que concebe e enterra os seres, que dá lugar à vida e dá lugar aos mortos. Os ventres rochosos destas imagens geram o tempo, se é verdade que começa o tempo onde a mulher começa. São femininos e nocturnos, deles nasce o dia (que neles se dissolve).

A noite antiquíssima e idêntica, demorada, igual por dentro ao silêncio e a quem Campos pede que o torne humano, é também evocada por Raquel Feliciano. E é uma noite ferida de luz. À beira-mar, o olhar da artista (da sua máquina) dá tempo à noite e é então que ela vem — vagamente, lentamente, soleníssima e semeada de estrelas dançantes — aproximar-se, prateada, dos sais de prata das fotografias. Nunca saberemos se é a noite que vem ou se ao invés ela nos recebe: estamos nela e à sua porta, distantes do céu nocturno estrelado e nele mergulhados, envolvidos, embalados. A sua visão comove os homens, liga o distante e exterior à profundidade do seu íntimo.As estrelas na noite tocam-nos de longe, mantendo-se à distância na cúpula do mundo-dodecaedro nocturno que a luz das estrelas e do nosso olhar perscruta. Se as estrelas são portas, como o eram para os egípcios, a sua visão consola-nos da obscuridade em que estamos face ao que vai chegar, escondido no regaço escuro onde todas as formas vão morrer. Se as estrelas são portas, elas são a nossa própria imagem: um limiar onde o tempo se tece. Estrelas que, diz Novalis, "como nós estão mergulhadas, alternadamente, em luz e escuridão" e como nós "beneficiam, no estado de obscurecimento, de um brilho consolador e pleno de promessas." É o brilho generoso das obras que agora se mostram, como estrelas lançando alguma luz na nossa noite.

Maria João Mayer Branco, Lisboa, Maio de 2012





1Segue-se a interpretação de Rémy Brague do Timeu, "Pour en finir avec 'Le temps, image mobile de l'éternité'", na obra Du temps chez Platon et Aristote. Quatre études, PUF, Paris, 2003 (pp. 12-71).

2Marie-José Mondzain, Le commerce des regards, Éditions du Seuil, Paris, 2003 (p. 116).