"A arquitetura constrói-se no sentido da vida”

Entrevista a Manuel Aires Mateus
Por Susana de Figueiredo
Sábado, 9 de Fevereiro de 2019

Soube muito cedo que queria ser arquiteto, e o seu medo maior é ter de assinar, um dia, o último dos projetos. Tem consciência dessa quase inevitabilidade, até porque, diz, é a própria história da arquitetura que confirma a regra. Não tem dúvidas de que a disciplina é uma arte e sublinha-lhe a “carga poética”, a tangência à vida. Venceu, em 2017, o Prémio Pessoa, e é um dos mais eminentes arquitetos internacionais. Com o irmão, Francisco Aires Mateus, apenas um ano mais novo (1964), forma a premiada dupla que é, há muito, um monumento no mundo da arquitetura. Hoje, já não dividem o mesmo ateliê, cada um tem o seu espaço, mas mantêm um trabalho de investigação conjunto e estão sempre unidos nas reflexões de fundo, nas grandes dúvidas que a profissão levanta. Só tratam individualmente o que é “acessório”. Não desperdiçam tempo. Dão aulas na Academia di Architettura de Mendrizio, na Suíça, e na Faculdade de Arquitectura de Lisboa. Discordam muitas vezes, mas nunca se desencontram. É assim há mais de três décadas. No próximo sábado, dia 16 de fevereiro, Manuel Aires Mateus estará na Porta 33, no Funchal. Debruçar-se-á sobre a exposição Da continuidade das formas e do modo como pousam, da autoria do arquiteto madeirense Paulo David, com quem trabalhou e mantém uma amizade de longa data. A exposição é o mote, mas Aires Mateus irá mais longe nesta viagem. Vem cheio desta disponibilidade para se entregar, que tão bem lhe conhecemos, e tão bem se espelha nestas linhas de conversa, resultado de um telefonema daqui até Lisboa, com duração de quase duas horas. Soube a tanto, e soube a [tão] pouco. Já era de esperar. Ou não fosse tanta a vida, tão imensa a obra. E a poesia, muito para lá da pedra e da cal.

Sempre quis ser arquiteto? Consegue precisar o momento desse despertar para a arquitetura?

Sim. Houve uma fase da minha vida em que quis ser juiz, mas creio que isso é equiparável aquela vontade que qualquer criança tem de ser polícia ou bombeiro. Mas, logo muito cedo, desde o momento em que comecei a tomar opções na escola, nunca tive qualquer dúvida. Aliás, tinha tudo que ver com o meu meio. O meu pai era arquiteto, embora a maior influência tenha sido a da minha mãe, que era pintora, e do próprio meio em que cresci e em que os meus pais se moviam. Digamos que a arquitetura não foi uma opção nem de rutura nem de coragem, foi uma opção de continuidade familiar.

Essa raiz foi, então, determinante?

A influência da minha mãe foi determinante. As pessoas, quando têm vocações claras, fazem ruturas. Eu não fiz rutura nenhuma, portanto, não sei se teria uma vocação assim tão clara [riso].

Qual foi o seu primeiro espanto artístico?

Lembro-me de algumas coisas que mudaram a minha relação com determinado tipo de artes. Lembro-me de ser miúdo, de detestar ballet e ser obrigado a ir ao ballet. Ia sempre contrariado, até ver a companhia do [Merce] Cunningham dançar. De repente, o ballet começou a ser, para mim, uma coisa natural.

E continua a gostar de ballet até hoje?

Gosto. Não vou muitas vezes ao ballet, mas continuo a gostar.

A obrigação transformou-se num prazer.

Sim. Na verdade, a minha mãe confrontava os filhos com muitas formas de expressão, e algumas acabaram por ficar, de uma forma ou de outra. As idas ao cinema também eram obrigatórias. Íamos – eu e o meu irmão – ver os filmes do [Carl T.] Dreyer, e recordo-me de aquilo ser risível para nós, miúdos de 12 e 13 anos. A minha mãe colocava-nos perante esses impactos. Já o meu pai era mais voltado para a música.

 

“Andamos à procura de dúvidas, e de como
resolver essas dúvidas.”

 

Trabalha com o seu irmão, Francisco Aires Mateus.

Sim. Ensinamos juntos e temos uma investigação conjunta. Aquilo de que estamos à procura é conjunto, e por isso assinamos os projetos conjuntamente, embora cada um tenha o seu ateliê. A investigação é um objetivo conjunto, e não só no ensino, também no ateliê. É por isso que dizemos que a nossa arquitetura é conjunta; andamos à procura de dúvidas, e de como resolver essas dúvidas.

E a vossa descoberta da arquitetura, foi conjunta?

Não. Eu comecei muito cedo. O Francisco tem um percurso muito mais diversificado, e rico até. Eu entro na Escola António Arroio para um curso direto para a arquitetura, já sem quaisquer dúvidas sobre o que queria fazer, e o Francisco entra um ano depois de mim, naqueles cursos que davam para tudo. Na altura, ele pintava t-shirts, pintava casas, fazia logótipos, enfim, trabalhava em várias coisas para ganhar dinheiro. Depois, foi baterista dos Radar Kadafi, e, até muito tarde, hesitou entre o design, a música, a arquitetura; tinha uma visão de possibilidades mais aberta. Entretanto, acabou mesmo por escolher arquitetura e, mal acabou o curso, começámos a trabalhar juntos, com o Gonçalo [Byrne]. O Paulo [David] também se juntou a nós, pouco depois. Mais tarde, passámos a trabalhar só os dois, eu e o Francisco, fora do âmbito do ateliê do Gonçalo Byrne.

Vocês são muito diferentes um do outro, em termos de temperamento/pensamento? De que modo é que as vossas diferenças e semelhanças constroem uma identidade una?
Em muitas coisas somos iguais, em muitas coisas somos diferentes. Essa questão daria quase uma psicanálise [riso], mas temos uma ótima relação, damo-nos muito bem. Profissionalmente, houve um momento em que começou a haver uma certa especialização de um e de outro. Eu, desde que acabei o curso, com 23 anos, comecei a ensinar; fazia conferências, escrevia, enquanto o meu irmão não ensinava nem fazia nada destas outras coisas, não se expunha publicamente. O Francisco seguia obras, debruçava-se sobre os materiais, as ferragens, etc. Percebemos que, de alguma maneira, estávamos a separar a arquitetura, e a arquitetura não deve ser separada. Temos de fazer tudo. Essa separação obrigava-nos a responder a tudo, e conduzia-nos a uma certa especialização contra a qual é preciso lutar. Na eficiência prática, poupa-se tempo se cada um fizer aquilo que está mais habituado a fazer, mas isso não era bom. Foi por essa razão que decidimos fazer tudo os dois.

Não dividem o mesmo ateliê há mais de dez anos. A separação de espaços teve que ver com a luta contra essa “especialização”?

A separação de ateliês foi muito importante, e muito saudável, precisamente nesse sentido. Separámo-nos para nos obrigarmos, cada um, a fazer tudo. Hoje, o nosso encontro só acontece para as reflexões mais profundas, tudo quanto é acessório tratamos individualmente. Começámos por dizer: “nunca seremos mais do que sete”; depois, passámos a dizer “nunca seremos mais do que onze”, e separámo-nos quando já eramos vinte. Fazia um certo sentido, porque, naquela altura, há cerca de doze anos, não conseguiríamos controlar mais do que esse número de colaboradores.

Já tiveram alguma discordância mais acesa?

Temos imensas, sempre, todos os dias [riso]. O bom de sermos irmãos é que discordamos por causa de um parafuso e, em cinco minutos, estamos aos berros um com o outro. Mas, um minuto depois, já estamos a combinar onde vamos jantar. Podemos discordar violentamente um só segundo, e isso não tem consequência nenhuma; talvez levemos mais tempo a decidir onde vamos jantar [riso]. Mesmo a dar aulas, por vezes, discordamos. Estamos a falar com os alunos e cada um de nós acha uma coisa diferente. Houve uma fase em que achámos que talvez devêssemos ter algum cuidado, mas rapidamente percebemos que não havia problema algum nessa divergência, bem pelo contrário, era muito salutar. Temos é de chegar a uma opinião, porque as opiniões, em arquitetura, procuram-se, e depois há uma evidência que dá a resposta. O processo constrói-se no próprio processo, na discussão. O fiel da balança é o aluno, nós estamos ali para obrigá-lo à reflexão, e este caminho é, para nós, muito gratificante. Os alunos percebem que não há uma só opinião, mas sim uma procura. As questões estão contidas no próprio processo, não há ninguém que tenha uma razão, pode é ter uma dúvida, e é a dúvida que é interessante, enquanto alavanca de uma investigação.

Quais são as grandes questões, as grandes dúvidas de um arquiteto?

A arquitetura trabalha sobre a pergunta. Cada projeto constitui uma pergunta; quando alguém nos pede um projeto está a fazer uma pergunta, e nós procuramos a resposta para essa pergunta. Estudamos os contornos e a precisão da pergunta: o que é o programa, o que é a pessoa, o que é culturalmente usado, o que é que, culturalmente, vem da pessoa, quais são as possibilidades técnicas, enfim, tudo o que envolve uma pergunta de arquitetura, quer do ponto de vista mais cultural, quer do ponto de vista mais prático. Depois, a resposta, e a precisão dessa resposta, são sempre únicas. O nosso trabalho é esse. Para cada pergunta, encontrar a resposta justa.

 

“Uma coisa que o arquiteto deve sempre reivindicar,
muito violentamente,
é o direito ao erro.”

 

A arquitetura é, sobretudo, esse exercício intensivo da dúvida?

A dúvida é fundamental, porque a certeza só se constrói a partir do preconceito, e o preconceito gera uma standardização da resposta, no entanto, a standardização da resposta nunca é a mais adequada. Nesse sentido, se formos à raiz, a dúvida é que é essencial. É ela que gera a inquietação que facilita ou permite a procura.

É perfecionista? Tem medo do erro?

Uma coisa que o arquiteto deve sempre reivindicar, muito violentamente, é o direito ao erro. Se nós não tivermos direito ao erro, só fazemos um projeto. E o direito ao erro é a liberdade de procurar; não podemos procurar se não pudermos errar. Refiro-me, claro, ao erro da carga poética, não ao erro da carga prática. Não se trata de um engano na construção, mas de um engano naquilo que está a propor.

E como define essa carga poética? É a poesia que distingue a mera construção da arquitetura?

Sim, é. A poesia é a diferença entre a vulgar forma de escrever e a expressão desigual dessa forma de escrever. A arquitetura é partir da vulgar forma de construir para a expressão desigual da forma de construir. Trata-se exatamente a mesma coisa.

A arquitetura é, então, uma forma de arte.

Não tenho qualquer dúvida disso. A arquitetura que me interessa é arte. Não é uma arte finita, a arquitetura não se termina, precisa da vida para se terminar, ao contrário da pintura ou da escultura, por exemplo. É uma arte que permanece no tempo, sobre a qual se pode evoluir mantendo esse caráter. É também uma arte cuja matéria mais importante é o problema. Simplificando, para um escultor, a matéria é a pedra; para um arquiteto, a matéria é o problema. E o que é interessante, para o arquiteto, é transformar a certeza do problema numa parte da solução.

 

“A nossa sociedade é uma sociedade que se trincheirou
num reacionismo muito grande em relação à arquitetura (…)”

 

Muitas vezes, os projetos de arquitetura são projetos morosos, que podem demorar anos a ser concluídos. E, ao longo desse período, o arquiteto vai sendo outro(s). É possível impedir o desfasamento entre o tempo da obra e o tempo do seu autor?

A boa arquitetura resiste ao tempo. É aquilo que permanece como um legado, um legado que pode ser adaptado. Um bom edifício é sempre readaptável. Temos, na Europa, o exemplo mais comum, o convento. Depois de ser convento, foi escola, hospital, universidade, hotel. E isso é extraordinário. A qualidade da arquitetura é a resposta à possibilidade de uma multiplicidade de funções. Quando um edifício é bom, pode ser muitas coisas.

Atualmente, na sociedade portuguesa, podemos falar de um espaço para a reflexão sobre a arquitetura? Qual é o real contexto da arquitetura na cultura das cidades?

A arquitetura tem muito pouco peso na cultura comum. É verdade que, hoje, há um interesse maior, mas as pessoas não têm, ainda, muita abertura para a disciplina. A nossa sociedade é uma sociedade que se trincheirou num reacionismo muito grande em relação à arquitetura, com medo da má qualidade, que é um medo natural, e como não sabe distinguir, no novo, o bom do mau, é reacionária, no sentido em que não permite a transformação. Estamos, neste momento, sob uma gigantesca demanda pela liberdade dos costumes, mas, ao mesmo tempo, sob um reacionarismo enorme sobre o ambiente físico, o que é compreensível, partindo da total incultura e da impossibilidade do julgamento. Trata-se de um movimento ‘acultural’. Bloqueado.

E o que pode ser feito para contrariar essa tendência?

A única coisa que os arquitetos podem fazer é continuarem a fazer bons projetos, para que as pessoas possam perceber a diferença entre os bons projetos e a vulgaridade. Porém, nós não estamos num tempo em que a sociedade procura a excelência. Se olharmos para os meios audiovisuais, aquilo que é mais divulgado não é a excelência, em nenhuma área. O mais divulgado é a vulgaridade. Os arquitetos não têm de ter outro tipo de intervenção que não seja a de persistir na procura, fazendo bons projetos. Depois, cabe aos agentes culturais pegarem nesse trabalho dos arquitetos, divulgá-lo e referi-lo como exemplo.

O que gosta mais de desenhar são casas. A casa é, aliás, o grande elemento identitário dos Aires Mateus. Porquê as casas? Porque são elas que estão mais próximas da vida?
Sim. A casa é muito perto. Uma casa não tem discussão programática. Uma casa é uma casa, todos nós sabemos o que é uma casa [desde que não nos perguntem muito] [riso]. As casas têm o fator humano, e são muito reais, na maneira como nos tocam.

Estão, também, muito ligadas à infância. Às primeiras das memórias.

Nós usamos, de facto, essa imagem poética da infância, que é uma imagem muito bonita. No fundo, aquilo que é interessante na arquitetura, como arte, é a ideia de individualidade, daquilo que é pessoal. E tudo aquilo que é pessoal está muito ligado ao ‘eu’, à memória, a tudo o que nos fabricou. A ideia da infância é muito bonita enquanto primeira parte da fabricação das nossas memórias. Mas, na verdade, aquilo que é importante no trabalho do arquiteto é que ele vá fabricando as suas memórias. O nosso grande problema, hoje, o nosso grande desafio, é fabricarmos, em contínuo, memórias. Hoje em dia, os sistemas são todos muito gastos, quase não fabricam memórias.

É importante que a memória se vá cumprindo a par da vida, e em dois sentidos, do antigo para o novo e do novo para o antigo.

Esse raciocínio é importante, porque, efetivamente, as memórias não são de trás para a frente, são da frente para trás. O arquiteto constrói de uma forma difusa as várias aproximações ao projeto, que se vai construindo da frente para trás; vamos justificando memórias, conhecimentos, história, teoria, para trás. Construímos tudo isto retroativamente, partindo do desejo de futuro. E nesse desejo de futuro, procuramos o conforto do passado. A memória nunca é raiz, é justificação. Ou serve de raiz numa fase inconsciente, e, depois, voltamos a ela numa fase consciente. As minhas propostas de arquitetura são sempre recomposições de coisas já conhecidas, experimentadas. São uma remontagem de um pré-conhecimento.

 

“O arquiteto não desenha só o lado físico, desenha também
uma possibilidade de relação afetiva com o lugar.”

 

O que foi e o que é, para si, a casa?

Para mim, a casa é onde está a família. A casa não é física. São as pessoas que fazem a casa, e não o contrário. Esta ideia é uma ideia que atua na arquitetura de uma forma muito interessante, que passa por nós percebermos que aquilo que podemos propor como casa é a possibilidade de um lugar onde as pessoas possam fazer casa. Não propomos a vida às pessoas, mas propomos uma fisicalidade, um suporte para essa vida. O arquiteto não desenha só o lado físico, desenha também uma possibilidade de relação afetiva com o lugar.
Um corpo e uma alma.
Exato. Essas duas dimensões é que estabelecem a relação, e é essa relação que interessa potenciar.

 

“Há muita construção, mas há
muito pouca arquitetura.”

 

Uma casa não é muito mais do que só pedra e cal.

É muito mais do que isso. Aliás, não é fundamentalmente isso. A pedra e a cal são só uma necessidade que a casa tem para ser tudo o resto.

A arquitetura a mover-se no sentido todo da vida…

A arquitetura constrói-se no sentido da vida. A arquitetura teve, infelizmente, uma mediatização que a ligou muito à ideia da imagem, mas a arquitetura tem que ver com vida, com possibilidade de utilização, e essa possibilidade de utilização tem que ver com aquilo que se contorna fisicamente. Temos de olhar para a arquitetura a partir da vida.

E a arquitetura nunca corre o risco de falhar nesse seu movimento no sentido da vida?

Hoje, há um problema: chama-se arquitetura àquilo que é construção. Há muita construção, mas há muito pouca arquitetura. A arquitetura é aquela que não falha nisso. A construção falha, falha muito

Isso desilude-o?

Não. Em toda a história, sempre se construiu muito, e muito poucas coisas tinham qualidade. Mas só ficaram as construções de qualidade, as outras desapareceram. Só me interessa olhar para aquilo que se constrói bem. Eu acho é que a arquitetura tem um papel importante: influenciar positivamente mesmo aquilo que é banalmente construído.

O seu trabalho é reconhecido e premiado dentro e fora do País. Em 2017, ganhou um dos mais importantes galardões nacionais, o Prémio Pessoa. Que importância atribui a este tipo de distinção?

Há prémios muito importantes, que são os prémios para jovens, porque esses prémios obrigam os mais novos a persistir. Depois, há outros prémios que têm um significado maior para a sociedade do que para o autor. Por exemplo, ao atribuir-se a um arquiteto o Prémio Pessoa é muito interessante o que está a transmitir-se à sociedade, em termos da relevância conferida à arquitetura. Contudo, os prémios não se procuram, agradecem-se. Criam um grande impacto quando se é novo; quando se é mais velho, creio que não criam um grande impacto, mas claro que nos ajudam a ser exemplos, nos dão forças para continuar a lutar, e aumentam as nossas obrigações para com a disciplina.

 

“Um dos grandes problemas da arquitetura é necessitar que o problema seja o contraditório, mas o crescimento da própria força reivindicativa de um arquiteto pode levar a que o arquiteto já não precise desse contraditório, podendo passar por cima dele. E se o fizer, morre intelectualmente. O meu medo maior é este.”

 

O seu pensamento está permanentemente ocupado pela arquitetura? O homem nunca se abstrai do arquiteto?

Esta é, obviamente, uma profissão muito absorvente, mas tenho uma vida banal, com mulher, filhos, amigos… Não vivo em contemplação [riso]. Mas é verdade que tudo me desperta para a arquitetura. Como é uma profissão muito ligada à vida, é inevitável que assim seja.

Diz que o seu maior medo é, um dia, ter de assinar o último projeto.

[Pausa] É mais ou menos seguro que isso acontecerá… Se olhar para a história da arquitetura, verá que são muito poucos os arquitetos que resistiram, até à sua morte, com o desejo de investigação e de busca. A esmagadora maioria cresce nesse desejo, até que há um momento em que, inconscientemente, creio eu, começa a repetir-se e a ter um lado mais banal. Portanto, se me pergunta se eu tenho medo que isso me aconteça, respondo-lhe que tenho. É um medo justificado. Os italianos têm um trocadilho divertido, muito interessante, que, traduzido diretamente para o português [em italiano soa melhor], é o seguinte: “os arquitetos não morrem de fome. Morrem de fama”. De alguma maneira, isto é verdade. Um dos grandes problemas da arquitetura é necessitar que o problema seja o contraditório, mas o crescimento da própria força reivindicativa de um arquiteto pode levar a que o arquiteto já não precise desse contraditório, podendo passar por cima dele. E se o fizer, morre intelectualmente. O meu medo maior é este.

O medo de morrer da fama.

Exato. Repare, é evidente que, à medida que se cresce, o contraditório tem menos força, por muitas razões, a maior parte delas erradas. Os arquitetos são chamados por questões económicas e de marketing, por outro lado, têm um maior poder de influência sobre os decisores, e estas são todas más razões, mas são razões que, no fundo, dão ao arquiteto uma maior capacidade de se abstrair do próprio problema, e este é um caminho muito perigoso. É o caminho da morte do arquiteto, e é um caminho muito comum. Portanto, pode acontecer-me a mim. Só espero que, se assim for, alguém me avise, na altura [riso].

Quão biográfico é o seu trabalho? Nele, vemos muito do que vai por dentro do arquiteto?

Não sei [pausa]. O que eu imagino… aquilo que eu gostava é que a minha arquitetura refletisse a minha aspiração. Eu gosto muito desta máxima: podemos desejar a perfeição, porque é garantido que não chegamos lá. Ou seja, temos trabalho para a vida toda [riso]. A arquitetura deve ser feita a partir das dúvidas, das aspirações, das ambições, sabendo que não chegamos lá, mas que morremos tentando. Cada projeto é uma morte tentando, tentando no máximo. E cada projeto é aquilo que conseguimos.