Desenhos e Pinturas
RUI CARVALHO — ARCO´05 MADRID
Universos Paralelos
Um percurso singular e itinerante pela banda desenhada e pela pintura
RUI CARVALHO PORTA33, Funchal (Até 9 de Julho 2000)
Rui Carvalho é praticamente desconhecido entre nós. Nascido no Funchal em 1964, aí se tornaria amigo
de
Rigo e António Dantas, com eles passando a colaborar nas realizações de fanzines e em algumas
exposições
colectivas que tiveram lugar em Lisboa, sobretudo nos últimos anos da década de 80. Foi por essa
altura
que organizou a mostra colectiva "Do Atlântico para a Costa Oeste", com passagem pela Artist's
Television Acess (São Francisco 1988), onde colaborou com uma série de pranchas de BD em que o traço
infantil e grotesco, não naturalista, forjava já uma crítica mordaz e irónica à vivência da
cidade.
Muda-se pouco depois para Zurique, mas é em Berlim que se iria fixar até 1998, articulando durante
esse
período a prática do desenho entendida como exorcismo de inquietações pessoais, temperado por um
colorido intenso e feérico, e com circulação restrita ao círculo de amigos, com a elaboração de
pranchas
de BD que pontualmente viria a publicar juntamente com outros criadores portugueses.
É o caso da fanzine "Besta Quadrada", deixada agora à consulta na livraria da Porta 33, na qual se
folheia um dos episódios da sua série "Paredes Ocidentais" (92), mostrando-se ainda no mesmo espaço
as
pranchas originais dos novos desenvolvimentos que a historia iria conhecer nos anos seguintes, com o
título entretanto alterado para "Muros Ocidentais", possivelmente numa alusão mais explícita à queda
do
Muro de Berlim.
Nos desenhos realizados ao longo dessa estadia ou exílio intencional, e a que a presente exposição
confere um acertado destaque, esse posicionamento crítico que já encontrávamos nas suas tiras
desenhadas
revela-se bastante mais voraz, frenético até, porque embora resulte de um mesmo processo cumulativo
e
sincrético de referências, reinventando a uma escala emocional e simbólica a paisagem urbana e os
seus
habitantes, superlativiza pela a estridência visual das suas composições ficcionadas, chegando a
adivinhar-se um preenchimento compulsivo do papel, como se de um grito enfim solto se tratasse. E é
nesse registo expressionista, que nalguns casos chega a lembrar o traço incisivo de Ana Cortesão,
que
desfilam os vícios e costumes das suas personagens, as suas angústias pessoais, por vezes numa
intensidade existencial próxima de um auto-retrato ou numa denuncia viperina dos círculos de poder,
como
um Nixon retratado deixa supor.
Outros aglomerados urbanos e rostos anónimos, muitas das vezes vigiados por discretos soldadinhos,
confirmam o trânsito de motivos e obsessões entre os desenhos autónomos e as bandas desenhadas,
seguindo
uma estratégia de contaminação e revisitação que as suas pinturas recentes, produzidas já no âmbito
desta exposição, tentam recuperar sem mais-valias. Perdem nessa quase trasladação a intensidade e o
invento que notabilizam alguns dos seus desenhos mais antigos, estes sim plenos de curiosas
vibrações
onomatopeicas e analogias epidérmicas, esfuziantes na sua abordagem do vegetal e do animal, como as
flores de onde desabrocham arranha-céus, os corpos humanos convertidos em escamas, ou os peixes que,
num
semblante enigmático, nos olham das suas constelações aquáticas.
E é nessa coabitação de registos tão díspares nas suas intenções e resultados que encontramos ainda
as
vistas quase pitorescas que Rui Carvalho tem vindo a pintar e a vender nas ruas da capital lisboeta
ao
longo dos últimos dois anos, numa atitude sincera que só vem confirmar a progressiva demissão de
propósitos e soluções a que os seus trabalhos mais recentes se viram votados, já só com breves
rasgos
dessa compulsão criadora que irradia dos seus desenhos berlinenses. São eles que nos prendem e nos
surpreendem, pelo modo pujante e singular com que distorcem ou filtram as realidades de onde partem,
dando sentido e significado a esta arriscada aposta.
LÚCIA MARQUES
Expresso, 17 JUNHO 2000