EVOCAÇÃO DE HERBERTO HELDER
Conversa com António Fournier e Diana Pimentel
moderada por Gaia Bertoneri
leitura de textos por Élvio Camacho e Paula Erra
PORTA33 SÁBADO 14 MAIO 2016 21H:30
1ª parte / 2ª parte

(...)O conceito célebre, celebérrimo, de que o poema é um objecto — bom, tornou-se um lugar-comum, já nem sequer se pensa nisso, di-lo toda a gente: os poemas são objectos —, ora esse conceito estabeleceu-se num terreno móvel, movediço; sim objectos, mas como paramentos, ornamentos e instrumentos: as máscaras, os tecidos, as peles e tábuas pintadas, os bastões, as plumas, as armas, as pedras mágicas. É prático sempre o uso que deles se faz, uma resposta necessária ao desafio das coisas ou à sua resistência e inércia. No entanto, repare, ou actuamos nas zonas do quotidiano de onde não foi afugentado o maravilhoso ou existem outras zonas, um quotidiano da maravilha, e então o poema é um objecto carregado de poderes magníficos, terríficos: posto no sítio certo, no instante certo, segundo a regra certa, promove uma desordem e uma ordem que situam o mundo num ponto extremo: o mundo acaba e começa. Aliás não é exactamente um objecto, o poema, mas um utensílio: de fora parece um objecto, tem as suas qualidades tangíveis, não é porém nada para ser visto mas para manejar. Manejamo-lo. Acção, temos aquela ferramenta. A acção é a nossa pergunta à realidade; e a resposta, encontramo-la aí: na repentina desordem luminosa em volta, na ordem da acção respondida por uma espécie de motim, um deslocamento de tudo: o mundo torna-se um facto novo no poema, por virtude do poema — uma realidade nova.(...)

(...)Não há nada a ensinar embora haja tudo a aprender. Aquilo que se aprende vem do nosso próprio ensino, vem da pergunta: vão-se aprendendo, pelas esperas, pela imobilidade às portas, pela invisibilidade dos rostos depois de vistos tão prometedoramente, pela emenda sucessiva, pela insónia sucessiva dos olhos e das figurações, sempre, vão-se aprendendo sempre as maneiras da pergunta. Uma pergunta em perguntas, um poema em poemas, uma rebarbativa constelação de objectos ofuscantes. Aprende-se que a pergunta se desloca com a luz inerente; ilumina-se a si mesma, a pergunta constelar; ensina a si mesma, ao longo de si mesma, os estilos de ser dotada dessa luz para fora e para dentro.(...)

(...)Conhece aquelas engenhosas “canções de eco” em que o poeta, supostamente num lugar ecoante, um vale rodeado por montanhas, algo assim, profere a palavra, e logo o eco a devolve ou expande? É a confirmação de fora. Claro, trata-se de um artifício formal, pois o poema confirma-se a si mesmo, em si mesmo. O facto de não ser uma voz alheia, de outro, mas, enfim, “ a voz da natureza”, a voz dos vales e montanhas, sugere que a participação não pertence aos homens, que não se estabeleceu uma troca humana. E deste modo a natureza, cercando e confirmando o poema, concluiando-se com ele, torna-o como que centrado em si, monstruosamente solitário.
Todos os poemas são canções de eco, procuram ser confirmados. De que sítio se lança a voz, que género de confirmação se pretende? A confirmação, sempre, do poema a si mesmo e em si mesmo. Mas que recursos se utilizam para obter essa confirmação? A forma é o conteúdo, sabe-se, o estratagema do eco representa a atitude total do autor perante os sentidos do seu poema, os sentidos do poema no mundo, a vida pessoal na vida.(...)

(...)Só é seguro que a pergunta, a procura, o poema reincidente, cristalizam uma grande massa translúcida, um bloco de quartzo. Talvez seja tranquilizador quando olhado defronte, ali, no chão, do tamanho da casa: parece nascer ininterruptamente. A luz vem de dentro, funda e aguda luz terrestre. Excretou-se de nós, a massa cristalina, fundimo-nos nela, carne da nossa carne, casa da nossa casa. E na hora do apocalipse biográfico, quando as águas envolverem a história, a vida, a obra da obra, veremos tudo: morremos daquilo, levados para o abismo pelo irrevocável peso extraído, um peso maior que os trabalhos e os dias. E quem sabe se não veremos então, através do cristal regular, limpidamente, a enfim aplacada confusão do mundo? Isto é uma pergunta, agora. Alimentando-nos dela, também nos alimentamos dela. Aquilo que fazemos, oh sim, é isso que nos faz e desfaz, a vida que fazemos, a nossa vida em pergunta telepática. Morremos dela.

As turvações da inocência
Herberto Helder (auto-entrevista)
Público, 4 de Dezembro de 1990

 

 

 

Biografias (resumo)

António Fournier Crítico literário, tradutor, escritor. Vive desde 1996 em Itália onde é docente de Língua e Tradução Portuguesa e Brasileira na Universidade de Turim, tendo sido anteriormente Leitor de Língua e Cultura Portuguesa pelo Instituto Camões na Universidade de Pisa, e assistente confirmado na Universidade da Madeira. Tem-se ocupado prevalentemente de poesia e de tradução poética e do estudo das relações literárias entre Itália e Portugal. Organizou e/ou traduziu para italiano obras de Albano Martins, João Rui de Sousa, Al Berto e Gastão Cruz. Traduziu Valerio Magrelli e Franco Fortini para a revista de poesia Relâmpago e Guido Gozzano para a revista de tradução de poesia DiVersos. É co-director da revista luso-italiana de estudos comparados Submarino. Coordenou os números monográficos da revista literária madeirense Margem dedicados, respectivamente, aos escritores Ernesto Leal, José Agostinho Baptista e José António Gonçalves, de quem também organizou e prefaciou a antologia poética Arte do voo (2005). É autor de um colectânea de contos ( Ilha portátil, 2010) e co-autor de uma graphic novel ( No Funchal, o maquinista, 2009).

Diana Pimentel nasceu em Lisboa em 1972.  Professora Auxiliar na Faculdade de Artes e Humanidades da Universidade da Madeira, é doutorada em Letras (2008), e mestre em Literatura Portuguesa Moderna e Contemporânea (2000), pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, com uma dissertação sobre Herberto Helder orientada pela Professora Doutora Paula Morão; é também crítica literária e editora. 
Entre 1995 e 1999 integrou a equipa da Fundação Calouste Gulbenkian responsável pelo portal da revista Colóquio-Letras e, entre 1997-1999, foi colaboradora do Instituto Português do Livro e das Bibliotecas / Biblioteca Nacional. 
Tem publicado ensaios e recensões críticas em diversas revistas nacionais ( Colóquio-LetrasRelâmpagoDiacrítica e  Revista de Estudos Literários, por exemplo) e internacionais ( Humanities and Social Sciences Review, I nternational Journal of Arts & Sciences, entre outras). 
Colaborou em volumes colectivos como  Metodologias, Avanços em Literatura e Cultura Portuguesas (Santiago de Compostela-Faro, Através Editora, 2012),  Poesia Experimental Portuguesa: Contextos, Ensaios, Entrevistas (UFP, 2014),  Literatura Explicativa – ensaios sobre ruy belo, Assírio & Alvim, 2015 e  Literatura, Cinema, Banda Desenhada (Edições Húmus, 2015),  HH – Se eu quisesse, enlouquecia (Oficina Raquel, Rio de Janeiro, 2015).
Organizou, entre outras, a antologia  Pontos Luminosos. Açores – Madeira, Antologia de poesia do século XX (Campo das Letras, 2007), o ensaio  Ver a Voz, Ler o Rosto: uma polaróide de Herberto Helder (Campo das Letras, 2007) e  aerogramas (prosa; Edições Guilhotina, 2014). 
Tem no prelo os livros  fogo forte e silêncio – vozes da poesia portuguesa contemporânea (Oficina Raquel, Rio de Janeiro, 2016),  depois não existe antes de Herberto (2016) e  fotogramas – sobre poesia portuguesa contemporânea (2017).
Participou nos documentários “Meu Deus faz com que eu seja sempre um poeta obscuro” – sobre Herberto Helder – (realizado para a RTP 2, em 2007) e “David Mourão-Ferreira: retrato com palavras” (realizado para a RTP 2, em 1996).

Gaia BertoneriDoutoranda em Digital Humanities na Universidade de Génova, ocupa-se da aplicação do conceito de visual studiesà literatura portuguesa e em particular à obra da autora Ana Teresa Pereira. Em 2013 concluiu o mestrado em Tradução com a tese Trabalhar no escuro: tradurre Ana Teresa Pereira. Ensina desde o ano lectivo de 2014/2015 Língua Portuguesa no curso de “Scienze della Mediazione Linguistica” no departamento de línguas e literaturas estrangeiras e culturas modernas da Universidade de Turim. Faz parte do comité de redacção da revista luso-italiana de estudos comparados Submarino e colabora com a revista online RiCognizionie traduziu para italiano o romance L’estate selvaggia dei tuoi occhi (2015) de Ana Teresa Pereira, e vários contos portugueses para as antologias Bestiario Lusitano (2014) e 12 Mesi a Funchal (2008).

Élvio Camacho (Funchal, 1975) Ator e encenador, professor de interpretação, trabalhou, entre outros, com os encenadores: Eduardo Luíz, Mário Feliciano, Fernando Augusto, Bruno Bravo, Carlos Avilez, João Perry, São José Lapa, Jorge Silva Melo e Fernando Heitor em mais de 60 criações. Licenciado em Formação de Atores | Encenadores pela Escola Superior de Teatro e Cinema de Lisboa. Como aluno de mérito desta escola foi ator no do Teatro Nacional D. Maria II (1998). Como bolseiro do Centro Nacional de Cultura (Prémio Jovens Criadores 2000), Ministério da Cultura, Fundação Luso Americana para o Desenvolvimento, Goldfarb Foundation, e da Secretaria Regional de Educação da Região Autónoma da Madeira frequentou diferentes formações de teatro na Roménia, Itália, França, Estados Unidos da América e Inglaterra. Fundou a Teatroteca Fernando Augusto no TEF | Companhia de Teatro onde nasceu para a profissão... continua, entre outras actividades, a exercê-la quer como ator, quer como meta-ator em diversas partes. Em 2013, fundou, com Paula Erra, a Teatro Feiticeiro do Norte.

Paula Erra (Funchal, 1973) Atriz, formadora de teatro e arte-terapeuta, nasceu no Funchal em 1973. Iniciou os seus estudos de Teatro, em 1989, no Teatro Experimental do Funchal. Concluiu o I, II, e III Cursos de Diretores/Encenadores e Atores, promovidos pelo Inatel. Trabalhou com os encenadores: Eduardo Luiz, Mário Feliciano, Fernando Augusto, Élvio Camacho e Carlos Cabral. Destaca, entre outros, Schweyk na Segunda Guerra Mundial, de Bertold Brecht; Greve de Sexo, de Aristófanes; A Nossa Cidade, de Thornton Wilder; Credo, de Craig Lucas; Mééééé... Tudo É Como É, a partir de Alberto Caeiro; Pastéis de Nata Para a Avó, de Fernando Augusto; A Ilha dos Escravos, de Marivaux; A Ilha de Arguïm, de Francisco Pestana. É bacharel em Educação de Infância, licenciada em Ciências da Educação e pós-graduada em Arte-Terapia. Criou e dirigiu o projeto Educação Dramática no Estabelecimento Prisional do Funchal e no Centro de Tratamento da Toxicodependência (Centro de Saúde de Santiago). Em 2013 criou, com Élvio Camacho, a Teatro Feiticeiro do Norte.