PORTA33 — 28.10 - 11.05.2024
28 DE OUTUBRO 2023 — 18h [inauguração]
Seguida de uma conversa entre
Carolina Vieira e Nuno Faria.
PEDRA SOL
CAROLINA VIEIRA
INCENDIAR OS OLHOS NO CORAÇÃO DE UMA PEDRA
Entrevista a Carolina Vieira
Sobre Pedra Sol
Por Susana de Figueiredo
Uma ilha está para um corpo como a pedra irrompida que lhe guarda a luz. É preciso
olhar as pedras
que derramam a luz se quisermos ler o sol de Carolina Vieira e subir até à cegueira que nos abre os
olhos. Primeiro, um pé sobre a terra, ou a mão silenciosa que o surpreende, entrando pela escarpa do
peito que a rocha abriu. Talvez uma dança ancestral levemente enternecida, ou uma aparição que se
ergue do lado de dentro. Uma pedra e a sua densa luz, raio divino transmutado num corpo que ora
sobrevoa ora emerge da carne mais crua da terra, pela sua pele mais primitiva. De laceração em
laceração, batendo a pedra até ao sal. Eis o sol.
Há uma ilha; esta ferida benigna que se espraia nos olhos de quem a toca, na mão munida do espanto,
no ventre da árvore longínqua, no gemido nocturno do mar. Eis a sombra e o seu corpo íntegro, a
infinita língua do tempo, e uma e outra pele sobre a outra. O corpo e o todo. Uma ilha.
Quando Carolina Vieira se instala na Antiga Escola da Vila do Porto Santo, o miolo da casa ainda
estava em construção. Um frigorífico pequeno, algumas camas, a sala de aula servindo de atelier. O
bastante para os primórdios de uma incursão de descoberta e aprofundamento sobre aquele território,
sombra maior para dar à luz. E de resto, tudo; a ilha, a terra sob os pés, o mar como um corpo que
abraça outro corpo. Luz contra luz, escuridão contra escuridão. Contemplar a paisagem e os seus
materiais pela veia mais próxima da indagação, desenhando-lhe a transparência, num movimento
contínuo e interseccional com os elementos que a compõem. “Como é que podemos aproveitar este lugar
para pensar a pintura?” Ao interrogar-se sobre o seu próprio modo de criar, a artista inclina-se
sobre a terra e sobre a água, num exercício imersivo, e algo imprevisível, onde o espanto sucessivo
acaba por ocupar um lugar central, consubstanciado na alegria de uma consentida fatalidade. Nas suas
migrações pela ilha do Porto Santo, nas subidas aos picos, na claridade flamejante, no ardor da
pedra que se não sabia. Observar, colher e esmagar a pedra; um trabalho arqueológico e altamente
sensitivo, que não se esgota no terreno, continua sobre as camadas da pele e por dentro dela, e
depois sobre a tela, num corpo-a-corpo em que nada, absolutamente nada, se perde em vão na narrativa
cromática que o pincel vai ditando. A perda e a falha também são caminho, e ao contrário do que
sucede nas ciências exactas, “no desenho e na pintura não há erros, há expetativas. Tudo pode ser
transformado”, e, na verdade, reside aí a derradeira beleza, naquilo que se descobre por acaso,
quando a mão se desvia, mas não perde o fio da devoção. É mesmo aí, onde, por vezes, não se espera.
Deste processo em atelier, eclodiram formas que a artista transformou em objetos que integram a
exposição. Tornar uma pintura corpo, poder guardá-la nas mãos. Como? A poesia, a meu ver, explica-o,
embora a discrição de Carolina Vieira aponte a luz ao ofício. “Não é tão poético como pode parecer…
São descobertas que acontecem no trabalho de atelier. Por vezes, temos uma ideia muito clara do que
queremos que uma pintura seja, e ela, às vezes, até consegue ser o que imaginámos, mas, na maior
parte das vezes, a pintura é esse mergulho até encontrarmos o lugar onde nos sentimos confortáveis.
Ao trabalhar com transparências, quando há um erro ou um acidente, é difícil voltar atrás, porque a
camada que veio anteriormente vai sempre aparecer, por mais tinta que eu ponha por cima. Havia
muitas partes da pintura que não resultavam, então, comecei a pensar no que iria fazer com esses
bocados de pinturas falhadas. Não podem ir para o lixo, não podiam ser desperdício; e foi do
manuseamento desses recortes que começaram a surgir umas dobras e apercebi-me de que o pano dobrado
era bonito quando a luz incidia sobre ele, ou de que podia fazer sentido conjugá-lo com uma pedra.
Foi uma coisa bastante natural, acho que a maior parte do trabalho é sempre bastante acidental, quer
se queira quer não, e essa é a parte bonita, é por isso que se continua a pintar, senão não valia a
pena”.
Pintar como quem mergulha, sem medo e profundamente. Intimamente e pelo princípio; do fim, também,
da cinza invisível que os dedos devoram até à alumiação, rememorando a terra que se mistura com a
carne. “Isto de construir a pintura em camadas é um pouco como um mergulho, vamos até ao fundo e as
coisas começam a parecer mais densas, mas tudo o que está à volta é leve, é água. Pode ser uma
analogia estranha, mas, para mim, faz sentido. E quanto mais fundo mergulhamos, mais a luz se vai
subtraindo. É isso que acontece com esta sobreposição, temos de pensar sempre em guardar espaços de
luz. Quando trabalhamos com transparências, temos de guardar os espaços que queremos que a luz
atravesse e não colocar muita tinta sobre eles, adicionamos tinta nos espaços em que queremos ter
mais densidade cromática. Isto também acontece no mergulho, a luz desaparece e as cores mudam”. Esta
leitura sensível do território encontra raízes numa travessia que começou, tal como para muitos
madeirenses, na infância. Os verões passados no Porto Santo, em família, eram o encontro com “um
lugar seguro”, uma espécie de embalo materno, de sal morno, de lugar primogénito onde o medo não
entra no escuro, até porque “do escuro podem sair coisas boas; o escuro supõe que há luz noutra
parte”.
Pedra Sol é, assim, a materialização desta dualidade que artista foi trabalhando, durante a sua
estada no Porto Santo, quase como quem respira, uma respiração, por vezes, sustida, também ela feita
de camadas, deambulando entre o desejo e o espanto, entre o intencional e o acidental, entre a luz e
sombra. E é no trespasse desses véus que a beleza ganha terreno. “A sensação de segurança abre
outras portas cá dentro, abre portas para o belo, para o sublime; estamos mais abertos a essas
experiências quando nos sentimos seguros, quando nos sentimos bem num lugar, a acho que as pinturas
transmitem exactamente isso”.
O encontro inesperado com a Pedra do Sol, durante um passeio de barco espoletado no âmbito de um
simpósio de geologia, foi decisivo na forma de pensar a exposição. Se, até então, Carolina Vieira
estava essencialmente focada no solo, nos líquenes, nas pedras e na recolha exaustiva desses
materiais, o desvéu da Pedra do Sol, formação geológica que dá nome à exposição, abre ainda mais o
território a explorar: a intensa luminosidade e os fenómenos ópticos propiciados por uma paisagem
caracterizada, à primeira vista, pela sua aridez. “Num espaço geológico tão restrito como o Porto
Santo, há imensas variações de cores, umas muito subtis, outras muito intensas, e só conseguimos
vê-las quando as separamos. Comecei a pensar mais nas formas do que propriamente no material: nas
formas das pedras, dos líquenes, dos picos, nos desenhos das montanhas, nos desenhos do mar, e as
coisas foram caminhando para um nível menos material. “Do ponto de vista técnico, há uma anulação da
matéria no suporte. Não há marcas de pincel, procurei que estas fossem anuladas para preservar esse
silêncio. O foco está na forma e nas cores e não na marca de quem cria.” Mas Pedra Sol arde nos
olhos que a dissecam drasticamente, nos olhos que a vêem antes, muito antes, dentro do torpor do
silêncio e sob os seus múltiplos véus, pelas mãos do vento anunciando a transparência onde entramos.
E ela entra.
Antes e depois do tempo – Carolina – ou como incendiar os olhos no coração de uma pedra.
CAROLINA VIEIRA
Funchal, 1994. Licenciada em Artes Plásticas pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto
e Mestre em Pintura pela mesma instituição. Assistente da direção artística e serviços
educativos na PORTA33 desde 2019. A sua prática artística utiliza a paisagem para explorar aspetos
materiais da própria pintura - composição, forma, transparência, luz e cor – e por ser uma
linguagem que permite trabalhar conceitos imateriais como o sublime, através da construção de
imagens que podem ser lugares imaginados ou reais. Imagens que usam a paisagem como intenção ou
como narrativa. Expõe desde 2015, destacando-se as exposições individuais Tudo o que foi / tudo o
que será (2023), na Capela da Boa Viagem - Núcleo Difusor de Arte e Cultura Contemporânea e
Alumiar (2020), na Galeria do Mudas – Museu de Arte Contemporânea da Madeira e as coletivas The
Other Side of the Moon (2023), no Buchheim Museum, Na Margem da Paisagem Vem o Mundo (2021), no
Pavilhão Branco – Galerias Municipais de Lisboa, O Sol Marca a Sombra (2021), no Museu de História
Natural do Funchal e Ilhéstico – Um roteiro de Arte Contemporânea para a cidade do Funchal (2019),
na PORTA33.
Exposições coletivas
2023
–
Enseada
, Festival de Artes do Funchal, Funchal (PT)
2023
-
The Other Side of the Moon, Buchheim Museum, Munique (DE)
2022
–
Umbra, Galeria da Fundação Cecília Zino, Funchal (PT)
2021
-
O Sol Marca a Sombra, Museu de História Natural do Funchal,
Funchal (PT)
2021
–
Na Margem da Paisagem Vem o Mundo, Pavilhão Branco, Galerias
Municipais de Lisboa, Lisboa (PT)
2020
-
Pela paisagem dividida, retalhada, Galeria dos Prazeres, Calheta
(PT)
2019
–
Ilhéstico: Um roteiro de Arte Contemporânea para a cidade do
Funchal
, PORTA33, Funchal (PT)
2019
-
Em Viagem, Quinta Magnólia, Funchal (PT)
2019
-
Medir o tempo e contar o espaço, Galeria Ap’Arte, Porto (PT)
2018
-
Diálogos com Amadeo, Galeria Olívia Reis, Espinho (PT)
2018
-
Deslocamentos poéticos, Sala de Exposições Angelita Stefani (UNF),
Santa Maria, Rio Grande do Sul, (BR)
2018
-
Orvalho III, Silo Espaço Cultural, Porto (PT)
2017
-
Boa Hora, Museu da Faculdade de Belas Artes da Universidade do
Porto, Porto (PT)
2017
-
Camélias na cidade, Fundação Escultor José Rodrigues, Porto
(PT)
2016
-
(dis)closer to the end, Museu da Faculdade de Belas Artes da
Universidade do Porto, Porto (PT)
2016
-
Projeções 2016
– O Desenho da FBAUP, Lugar do Desenho – Fundação
Júlio Resende, Gondomar (PT)
2016
-
Sem título. Técnica mista. Dimensões variáveis., Galeria Geraldes
da Silva, Porto (PT)
2016
-
Pro-Aesthésis, Hospital da Prelada, Porto (PT)
2016
-
XXIX Salão de Primavera, Galeria de Arte do Casino Estoril,
Estoril (PT)
2015
-
303 Ímpar, Galeria Geraldes da Silva, Porto (PT)
Exposições individuais
2023
-
Tudo o que foi, tudo o que será
, Capela da Boa Viagem – Núcleo
Difusor de Arte e Cultura Contemporânea, Funchal (PT)
2020
-
Alumiar, Galeria do MUDAS, Museu de Arte Contemporânea da Madeira,
Calheta (PT)
2018
-
Reflexões sobre uma paisagem insular, Galeria Cozinha, Faculdade
de Belas Artes da Universidade do Porto, Porto (PT)
Ensaios, artigos, publicações
Faria, N. (2023).
Pedra Sol
. ts, PORTA33.
Pérez, M. von H. (2021). In
Ilhéstico: Um roteiro de arte contemporânea para a cidade do
Funchal
(pp. 213–214). catálogo, PORTA33.
“Reflexões sobre a Representação da Paisagem na Pintura Contemporânea no Contexto Português”
in
Ponte, S., Gonçalves, S., Loureiro, D., Laranjo, F., Ascenso, A., Postiga, I., Pinheiro,
D., Vieira, C., & Poppovic, M. (2017). Sobre Pintura. (pp. 159 ) Porto: i2ADS.
Isabel Carlos É licenciada em Filosofia pela Universidade de Coimbra e mestre em Comunicação Social pela Universidade Nova de Lisboa com a tese «Performance ou a Arte num Lugar Incómodo» (1993). Crítica de arte desde 1991. Assessora para a área de exposições de Lisboa’94 – Capital Europeia da Cultura. Foi co-fundadora e subdirectora do Instituto de Arte Contemporânea, tutelado pelo Ministério da Cultura (1996-2001). Foi membro dos júris da Bienal de Veneza (2003), do Turner Prize (2010), The Vincent Award (2013), entre outros. Co-seleccionadora do Ars Mundi, Cardiff (2008). Entre as inúmeras exposições que organizou e catálogos que publicou destacam-se: Bienal de Sidney «On Reason and Emotion» (2004), «Intus» de Helena Almeida, Pavilhão de Portugal, Bienal de Veneza (2005), «Provisions for the Future», Bienal de Sharjah (2009). Entre 2009 e 2015 foi directora do CAM_Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa.
Nuno Faria É curador independente e professor convidado na Escola Superior de Design das Caldas da Rainha e na Escola das Artes da Universidade Católica Portuguesa. Trabalhou no Instituto de Arte Contemporânea do Ministério da Cultura de Portugal (1997-2003) e na Fundação Calouste Gulbenkian (2003-2009). Viveu e trabalhou no Algarve entre 2007 e 2012, onde fundou (em Loulé, em 2009) o projecto Mobilehome - Escola de Arte Nómada, Experimental e Independente. Foi diretor artístico do Centro Internacional das Artes José de Guimarães, em Guimarães (2013-2019) e do Museu da Cidade do Porto (2019-2022).