28 DE OUTUBRO 2023 — 18h [inauguração]

Seguida de uma conversa entre
Carolina Vieira e Nuno Faria.

PEDRA SOL
CAROLINA VIEIRA

Instalação, acrílico, algodão e pedras, 2023

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Sem título, acrílico sobre algodão, 2023

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Pintura-objecto, acrílico sobre algodão, 2023

Pico do Facho, acrílico sobre algodão, 2023

INCENDIAR OS OLHOS NO CORAÇÃO DE UMA PEDRA

Entrevista a Carolina Vieira
Sobre Pedra Sol

Por Susana de Figueiredo

Uma ilha está para um corpo como a pedra irrompida que lhe guarda a luz. É preciso olhar as pedras que derramam a luz se quisermos ler o sol de Carolina Vieira e subir até à cegueira que nos abre os olhos. Primeiro, um pé sobre a terra, ou a mão silenciosa que o surpreende, entrando pela escarpa do peito que a rocha abriu. Talvez uma dança ancestral levemente enternecida, ou uma aparição que se ergue do lado de dentro. Uma pedra e a sua densa luz, raio divino transmutado num corpo que ora sobrevoa ora emerge da carne mais crua da terra, pela sua pele mais primitiva. De laceração em laceração, batendo a pedra até ao sal. Eis o sol.
Há uma ilha; esta ferida benigna que se espraia nos olhos de quem a toca, na mão munida do espanto, no ventre da árvore longínqua, no gemido nocturno do mar. Eis a sombra e o seu corpo íntegro, a infinita língua do tempo, e uma e outra pele sobre a outra. O corpo e o todo. Uma ilha.

Quando Carolina Vieira se instala na Antiga Escola da Vila do Porto Santo, o miolo da casa ainda estava em construção. Um frigorífico pequeno, algumas camas, a sala de aula servindo de atelier. O bastante para os primórdios de uma incursão de descoberta e aprofundamento sobre aquele território, sombra maior para dar à luz. E de resto, tudo; a ilha, a terra sob os pés, o mar como um corpo que abraça outro corpo. Luz contra luz, escuridão contra escuridão. Contemplar a paisagem e os seus materiais pela veia mais próxima da indagação, desenhando-lhe a transparência, num movimento contínuo e interseccional com os elementos que a compõem. “Como é que podemos aproveitar este lugar para pensar a pintura?” Ao interrogar-se sobre o seu próprio modo de criar, a artista inclina-se sobre a terra e sobre a água, num exercício imersivo, e algo imprevisível, onde o espanto sucessivo acaba por ocupar um lugar central, consubstanciado na alegria de uma consentida fatalidade. Nas suas migrações pela ilha do Porto Santo, nas subidas aos picos, na claridade flamejante, no ardor da pedra que se não sabia. Observar, colher e esmagar a pedra; um trabalho arqueológico e altamente sensitivo, que não se esgota no terreno, continua sobre as camadas da pele e por dentro dela, e depois sobre a tela, num corpo-a-corpo em que nada, absolutamente nada, se perde em vão na narrativa cromática que o pincel vai ditando. A perda e a falha também são caminho, e ao contrário do que sucede nas ciências exactas, “no desenho e na pintura não há erros, há expetativas. Tudo pode ser transformado”, e, na verdade, reside aí a derradeira beleza, naquilo que se descobre por acaso, quando a mão se desvia, mas não perde o fio da devoção. É mesmo aí, onde, por vezes, não se espera. Deste processo em atelier, eclodiram formas que a artista transformou em objetos que integram a exposição. Tornar uma pintura corpo, poder guardá-la nas mãos. Como? A poesia, a meu ver, explica-o, embora a discrição de Carolina Vieira aponte a luz ao ofício. “Não é tão poético como pode parecer… São descobertas que acontecem no trabalho de atelier. Por vezes, temos uma ideia muito clara do que queremos que uma pintura seja, e ela, às vezes, até consegue ser o que imaginámos, mas, na maior parte das vezes, a pintura é esse mergulho até encontrarmos o lugar onde nos sentimos confortáveis. Ao trabalhar com transparências, quando há um erro ou um acidente, é difícil voltar atrás, porque a camada que veio anteriormente vai sempre aparecer, por mais tinta que eu ponha por cima. Havia muitas partes da pintura que não resultavam, então, comecei a pensar no que iria fazer com esses bocados de pinturas falhadas. Não podem ir para o lixo, não podiam ser desperdício; e foi do manuseamento desses recortes que começaram a surgir umas dobras e apercebi-me de que o pano dobrado era bonito quando a luz incidia sobre ele, ou de que podia fazer sentido conjugá-lo com uma pedra. Foi uma coisa bastante natural, acho que a maior parte do trabalho é sempre bastante acidental, quer se queira quer não, e essa é a parte bonita, é por isso que se continua a pintar, senão não valia a pena”.
Pintar como quem mergulha, sem medo e profundamente. Intimamente e pelo princípio; do fim, também, da cinza invisível que os dedos devoram até à alumiação, rememorando a terra que se mistura com a carne. “Isto de construir a pintura em camadas é um pouco como um mergulho, vamos até ao fundo e as coisas começam a parecer mais densas, mas tudo o que está à volta é leve, é água. Pode ser uma analogia estranha, mas, para mim, faz sentido. E quanto mais fundo mergulhamos, mais a luz se vai subtraindo. É isso que acontece com esta sobreposição, temos de pensar sempre em guardar espaços de luz. Quando trabalhamos com transparências, temos de guardar os espaços que queremos que a luz atravesse e não colocar muita tinta sobre eles, adicionamos tinta nos espaços em que queremos ter mais densidade cromática. Isto também acontece no mergulho, a luz desaparece e as cores mudam”. Esta leitura sensível do território encontra raízes numa travessia que começou, tal como para muitos madeirenses, na infância. Os verões passados no Porto Santo, em família, eram o encontro com “um lugar seguro”, uma espécie de embalo materno, de sal morno, de lugar primogénito onde o medo não entra no escuro, até porque “do escuro podem sair coisas boas; o escuro supõe que há luz noutra parte”.
Pedra Sol é, assim, a materialização desta dualidade que artista foi trabalhando, durante a sua estada no Porto Santo, quase como quem respira, uma respiração, por vezes, sustida, também ela feita de camadas, deambulando entre o desejo e o espanto, entre o intencional e o acidental, entre a luz e sombra. E é no trespasse desses véus que a beleza ganha terreno. “A sensação de segurança abre outras portas cá dentro, abre portas para o belo, para o sublime; estamos mais abertos a essas experiências quando nos sentimos seguros, quando nos sentimos bem num lugar, a acho que as pinturas transmitem exactamente isso”.

O encontro inesperado com a Pedra do Sol, durante um passeio de barco espoletado no âmbito de um simpósio de geologia, foi decisivo na forma de pensar a exposição. Se, até então, Carolina Vieira estava essencialmente focada no solo, nos líquenes, nas pedras e na recolha exaustiva desses materiais, o desvéu da Pedra do Sol, formação geológica que dá nome à exposição, abre ainda mais o território a explorar: a intensa luminosidade e os fenómenos ópticos propiciados por uma paisagem caracterizada, à primeira vista, pela sua aridez. “Num espaço geológico tão restrito como o Porto Santo, há imensas variações de cores, umas muito subtis, outras muito intensas, e só conseguimos vê-las quando as separamos. Comecei a pensar mais nas formas do que propriamente no material: nas formas das pedras, dos líquenes, dos picos, nos desenhos das montanhas, nos desenhos do mar, e as coisas foram caminhando para um nível menos material. “Do ponto de vista técnico, há uma anulação da matéria no suporte. Não há marcas de pincel, procurei que estas fossem anuladas para preservar esse silêncio. O foco está na forma e nas cores e não na marca de quem cria.” Mas Pedra Sol arde nos olhos que a dissecam drasticamente, nos olhos que a vêem antes, muito antes, dentro do torpor do silêncio e sob os seus múltiplos véus, pelas mãos do vento anunciando a transparência onde entramos. E ela entra.
Antes e depois do tempo – Carolina – ou como incendiar os olhos no coração de uma pedra.

Sem título, acrílico sobre algodão, 2022

CAROLINA VIEIRA
Funchal, 1994. Licenciada em Artes Plásticas pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto e Mestre em Pintura pela mesma instituição. Assistente da direção artística e serviços educativos na PORTA33 desde 2019. A sua prática artística utiliza a paisagem para explorar aspetos materiais da própria pintura - composição, forma, transparência, luz e cor – e por ser uma linguagem que permite trabalhar conceitos imateriais como o sublime, através da construção de imagens que podem ser lugares imaginados ou reais. Imagens que usam a paisagem como intenção ou como narrativa. Expõe desde 2015, destacando-se as exposições individuais Tudo o que foi / tudo o que será (2023), na Capela da Boa Viagem - Núcleo Difusor de Arte e Cultura Contemporânea e Alumiar (2020), na Galeria do Mudas – Museu de Arte Contemporânea da Madeira e as coletivas The Other Side of the Moon (2023), no Buchheim Museum, Na Margem da Paisagem Vem o Mundo (2021), no Pavilhão Branco – Galerias Municipais de Lisboa, O Sol Marca a Sombra (2021), no Museu de História Natural do Funchal e Ilhéstico – Um roteiro de Arte Contemporânea para a cidade do Funchal (2019), na PORTA33.

Exposições coletivas

2023Enseada , Festival de Artes do Funchal, Funchal (PT)
2023 - The Other Side of the Moon, Buchheim Museum, Munique (DE)
2022Umbra, Galeria da Fundação Cecília Zino, Funchal (PT)
2021 - O Sol Marca a Sombra, Museu de História Natural do Funchal, Funchal (PT)
2021Na Margem da Paisagem Vem o Mundo, Pavilhão Branco, Galerias Municipais de Lisboa, Lisboa (PT)
2020 - Pela paisagem dividida, retalhada, Galeria dos Prazeres, Calheta (PT)
2019 Ilhéstico: Um roteiro de Arte Contemporânea para a cidade do Funchal , PORTA33, Funchal (PT)
2019 - Em Viagem, Quinta Magnólia, Funchal (PT)
2019 - Medir o tempo e contar o espaço, Galeria Ap’Arte, Porto (PT)
2018 - Diálogos com Amadeo, Galeria Olívia Reis, Espinho (PT)
2018 - Deslocamentos poéticos, Sala de Exposições Angelita Stefani (UNF), Santa Maria, Rio Grande do Sul, (BR)
2018 - Orvalho III, Silo Espaço Cultural, Porto (PT)
2017 - Boa Hora, Museu da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, Porto (PT)
2017 - Camélias na cidade, Fundação Escultor José Rodrigues, Porto (PT)
2016 - (dis)closer to the end, Museu da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, Porto (PT)
2016 - Projeções 2016 – O Desenho da FBAUP, Lugar do Desenho – Fundação Júlio Resende, Gondomar (PT)
2016 - Sem título. Técnica mista. Dimensões variáveis., Galeria Geraldes da Silva, Porto (PT)
2016 - Pro-Aesthésis, Hospital da Prelada, Porto (PT)
2016 - XXIX Salão de Primavera, Galeria de Arte do Casino Estoril, Estoril (PT)
2015 - 303 Ímpar, Galeria Geraldes da Silva, Porto (PT)
Exposições individuais 2023 - Tudo o que foi, tudo o que será , Capela da Boa Viagem – Núcleo Difusor de Arte e Cultura Contemporânea, Funchal (PT)
2020 - Alumiar, Galeria do MUDAS, Museu de Arte Contemporânea da Madeira, Calheta (PT)
2018 - Reflexões sobre uma paisagem insular, Galeria Cozinha, Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, Porto (PT)

Ensaios, artigos, publicações
Faria, N. (2023). Pedra Sol . ts, PORTA33.
Pérez, M. von H. (2021). In Ilhéstico: Um roteiro de arte contemporânea para a cidade do Funchal (pp. 213–214). catálogo, PORTA33.
“Reflexões sobre a Representação da Paisagem na Pintura Contemporânea no Contexto Português” in Ponte, S., Gonçalves, S., Loureiro, D., Laranjo, F., Ascenso, A., Postiga, I., Pinheiro, D., Vieira, C., & Poppovic, M. (2017). Sobre Pintura. (pp. 159 ) Porto: i2ADS.

Isabel Carlos É licenciada em Filosofia pela Universidade de Coimbra e mestre em Comunicação Social pela Universidade Nova de Lisboa com a tese «Performance ou a Arte num Lugar Incómodo» (1993). Crítica de arte desde 1991. Assessora para a área de exposições de Lisboa’94 – Capital Europeia da Cultura. Foi co-fundadora e subdirectora do Instituto de Arte Contemporânea, tutelado pelo Ministério da Cultura (1996-2001). Foi membro dos júris da Bienal de Veneza (2003), do Turner Prize (2010), The Vincent Award (2013), entre outros. Co-seleccionadora do Ars Mundi, Cardiff (2008). Entre as inúmeras exposições que organizou e catálogos que publicou destacam-se: Bienal de Sidney «On Reason and Emotion» (2004), «Intus» de Helena Almeida, Pavilhão de Portugal, Bienal de Veneza (2005), «Provisions for the Future», Bienal de Sharjah (2009). Entre 2009 e 2015 foi directora do CAM_Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa.

Nuno Faria É curador independente e professor convidado na Escola Superior de Design das Caldas da Rainha e na Escola das Artes da Universidade Católica Portuguesa. Trabalhou no Instituto de Arte Contemporânea do Ministério da Cultura de Portugal (1997-2003) e na Fundação Calouste Gulbenkian (2003-2009). Viveu e trabalhou no Algarve entre 2007 e 2012, onde fundou (em Loulé, em 2009) o projecto Mobilehome - Escola de Arte Nómada, Experimental e Independente. Foi diretor artístico do Centro Internacional das Artes José de Guimarães, em Guimarães (2013-2019) e do Museu da Cidade do Porto (2019-2022).

Inauguração — Pedra Sol

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CONTRIBUTOS PARA A ESCOLA DO PORTO SANTO E O SEU TERRITÓRIO