PORTA33 — 01.06 - 30.11.2024
MARIANA VIEGAS
PASSAGEM & GRUPO FANTASMA
01 DE JUNHO 2024
18h [inauguração]
Depois da exposição realizada na Escola do Porto Santo, voltamos, agora no Funchal, a ter a oportunidade, rara, de olhar e sermos olhados por estes rostos, projectados num lençol, que parecem emergir da escuridão.
São rostos anónimos de gente que (re)conhecemos, habitantes do Porto Santo, sabemo-lo, várias gerações de pessoas que se relacionaram com a Escola de alguma forma: professores, funcionários, alunos, operários.
Um rosto incorpora várias dimensões, várias complexidades. Situa-se no campo da aparência de uma face mas também da profundidade, do que se esconde para lá de uma superfície, para lá de uma verosimilhança. Um rosto inscreve-se numa temporalidade, numa duração, por vezes muito antiga. E por isso é inquietante, traz consigo a marca do mistério da existência, reflecte as alegrias, as tristezas, as provações da vida. Traz em si, também, as marcas da biografia de cada um, os sulcos do tempo que passa.
O nosso rosto expõe-nos ao juízo dos outros, torna-nos nus perante os nossos semelhantes. É um pacto
ancestral
de pertença, de convivência. Criaram-se sistemas religiosos a partir da poética do rosto.
O rosto de Cristo, feito à imagem e semelhança do Pai, é o possível e consubstancial testemunho da
existência de
Deus — a prova indirecta, como todas as imagens o são.
Na cultura Greco-Romana, transversal aos impérios do Ocidente e do Oriente da tradição cristã, rosto e retrato, rosto e ícone, são duas realidades muito próximas, ao ponto de se indistinguirem.
Passagem. Vídeo e som, 19´40´´. Escola da Vila, 2023
Mariana Viegas agradece a / Mariana Viegas thanks
Graça Olival, Luís Neves, Manuela Faria, Alexandre Lopes,
Tomás Santos, Susana Silva, Dinora Silva, Graziela Velosa,
Nuno Lopes, Magno Velosa, Fátima Silva, Tito Neves, Afonso Ferreira, Paulo Drumond
(Garrafa), José Caldeira, Rose Isabella Silva Santos, Hugo Nóbrega, Cecília Vieira de
Freitas, Bia (Beatriz Câmara), Ana Neves, João Leão, Vera Menezes, Carmo Freitas, Dorisa
Drumond, Sofia Oliveira, Filipe Vasconcelos, Maria José Batista, Ana Ruel, Micaela
Melim, Julieta Ferreira, Dinis Melim, Leonel Nunes, Romão Dias, Francisco Velosa, Graça
Perestrelo, André Velosa, Rui Velosa, Dinarte Santos, Luísa Mendonça, Filipa Leão,
Raquel Azevedo, Diogo Santos, Sónia Freitas, Francisco Ribeiro, Lubélia Melim, Núria
Brito, Duarte Mendonça, Nazaré Cunha, Gonçalo Vares, José Lino da Silva, Maria Inês
Rodrigues, Gustavo Vasconcelos Lopes e Ivo Mendonça.
PASSAGEM
MARIANA VIEGAS
Este livro foi editado por ocasião da inauguração da exposição
Passagem, de Mariana Viegas, na Escola do Porto Santo,
no dia 18 de novembro de 2023.
This book was published on the occasion of the exhibition
Passagem, by Mariana Viegas, at the Porto Santo School,
on November 18, 2023
Edição / Published by
Porta33
Porto Santo, 2023
Texto / Text
Nuno Faria
Tradução e revisão / Proof-reading
José Roseira
Desenho do livro / Book Design
Atelier Pedro Falcão
Edição fotografia e vídeo | Video and Photo Editing
Frandu Almeida/Bodhgaya Films
Impressão e acabamentos / Printing and Binding
Gráfica Maiadouro
ISBN
978-989-33-5387-5
Depósito legal / Legal Deposit
523 718/23
Há uma história que, neste contexto, merece a pena contar por aí se encontrarem retrato e fotografia: a primeira imagem, a verdadeira imagem, é do rosto de Cristo. No caminho para o Calvário, a Via Dolorosa, uma mulher chamada Verónica limpou piedosamente o rosto de Cristo com o véu que trazia à cabeça. A Igreja Católica chamou-lhe o Santo Sudário e guardou-o como uma relíquia na Catedral da Cidade de Turim. Em 1898, encarregue de fotografar o sudário, Secondo Pia, fotógrafo amador, descobriu, com espanto profundo, a imagem em negativo do rosto de Cristo. O milagre consubstanciara-se. A fixação da fotografia permitia assim ver o rosto de Cristo.
A prova fotográfica não seria necessária para sabermos que Cristo existiu. Temos para tal as memórias
de muitas
mulheres e homens que testemunham o encontro com esse grande agitador de espíritos, esse homem raro
que mudou o
rumo da história da humanidade.
O que a fixação da fotografia permitiu, na década de 30 do século XIX, foi de perceber melhor a
poética da
imagem em positivo e em negativo, e as implicações que tal viria a ter na questão do retrato, cuja
prática
existe para nós há mais de 2000 anos.
Dir-se-ia que a fotografia existe desde sempre, pelo menos aquilo a que poderíamos chamar uma intuição fotográfica na relação com as coisas no mundo. Os reflexos em superfícies como a água, a projeção da própria sombra na parede das cavernas que serviam de abrigo aos nossos antepassados, até as alucinações provocadas por estados alterados de consciência, como o sonho, são outras tantas experiências que desde cedo fizeram aceder os humanos a uma percepção fotográfica da realidade, uma percepção feita de imagens.
Por altura do Século XVI, pintura e fotografia cruzaram-se para não mais se separarem. Em busca de uma apreensão mais perfeita ou mais realista da realidade (as pessoas, os objectos, entre outros), os pintores inventaram um dispositivo que teve ampla repercussão: chamaram-lhe câmara clara ou câmara lucida. Esse dispositivo mudou a pintura e sistematizou uma nova forma de enquadrar os assuntos da pintura, trazendo, antes mesmo da fotografia ter sido fixada, um modo fotográfico à produção de imagens.
É preciso conhecer esta história para tiramos consequências profundas da reflexão em torno das
imagens. A
fotografia é mais do que um processo ou um conjunto de técnicas; é uma forma de compreensão da
realidade que nos
abarca, de nós mesmos e da nossa passagem pelo mundo.
E uma das formas mais antigas de registar essa passagem é através da produção de retratos. Há-os de
todos os
géneros, de todos os ângulos, uma longa tradição que convoca desde sempre artistas e aspirantes a
artista. O retrato é uma prática a um tempo comum e sagrada.
Nesta exposição, Mariana Viegas inscreve-se nessa nobre tradição, abrindo o seu arquivo, libertando os fantasmas que por lá repousam e fazendo uma escolha de imagens a ampliar (colocadas no plano vertical) a que juntou impressões de pequena dimensão (colocadas no plano horizontal). Estas fotografias enquadram o conjunto de retratos que podemos ver em projecção no salão, a obra Passagem, a peça central desta mostra.
Este conjunto de imagens dão-nos uma boa amostra daquilo que nos últimos 30 anos tem sido a prática fotográfica de Mariana Viegas, os temas por ela abordados, a maneira como foi definindo os seus interesses, como foi apurando o que chamamos “estilo”. Nelas vemos um leque muito alargado de assuntos, pessoas, paisagens, objectos, lugares, gestos, retratos e auto-retratos. As amizades e as cumplicidades da adolescência, as actividades daqueles que lhe são mais próximos — a fotógrafa desenha um leque de cumplicidades com o seu meio.
No começo do seu percurso, trabalhou com alguns dos cineastas portugueses mais importantes, tais como Manoel de Oliveira, João César Monteiro ou Pedro Costa. Fotografar pessoas, para preparar cenas, para testar o guarda-roupa, para avaliar a relação dos actores e actrizes com a câmara. Também fez muito retrato, fotografando os protagonistas do renovado e florescente contexto cultural português. Não admira que o seu olhar tenha sido moldado pela visão dos autores com quem colaborou e com as figuras que fotografou. A fotografia é sempre uma forma de relação, um ritual iniciático, uma forma de produzir empatia e de troca de energia entre duas entidades.
A exposição tem ainda um espaço performativo, em que um pequeno estúdio foi montado para que os visitantes possam experimentar o ritual do retrato ou do auto-retrato. Na mesma sala, podemos também descobrir desenhos realizados por crianças e jovens em oficinas concebidas e coordenadas por Carolina Vieira, a partir de um diálogo com Mariana Viegas. Usando variadas técnicas de formar e produzir imagens, assim como diferentes materiais, os desenhadores perscrutam o próprio rosto ou os rostos um dos outros, num face-a-face por vezes insólito, outras perturbador, seguramente sempre inspirador a avaliar pelos espantosos resultados.
Nuno Faria
A Prática do desenho como atividade de mapeamento de relações perceptivas com o mundo, a partir da
exposição Passagem & Grupo Fantasma de Mariana Viegas
Porta33 – 1 junho a 30 de Novembro de 2024
1. Começamos a preparação para receber a exposição Passagem & Grupo Fantasma de Mariana Viegas a
folhear livros de fotografia que existem na biblioteca da Porta33. Observamos especialmente os
retratos, foco primário da exposição. A partir deles fizemos composições sobre folhas de acetato que
transferimos para papel realizando impressões de prova única. Foram o ponto de partida para
tentarmos traduzir em linha e mancha as proporções de um corpo, perceber como incidem sobre ele a
luz e a sombra.
2. Depois, o olhar detém-se sobre nós próprios – passamos para a esfera do auto-retrato através de
exercícios de desenho cego e de toque, desenho de memória e de observação ao espelho. Mas olhar-se
ao espelho não implica apenas o foco no cumprimento da auto-representação, implica também o
confronto entre a imagem refletida e a imagem percepcionada interiormente. Discutimos porque se
auto-representam, as pessoas, desde o início dos tempos? Talvez para a preservação da imagem de um
corpo que não terá outro destino que não o da transformação e, depois, desaparecimento.
3. Saímos de nós e passamos a olhar para o outro. Fizemo-lo através de desenhos de observação aos
pares. Pensamos em como é olhar e ser olhado de volta, deixar o controlo da nossa imagem nas mãos de
terceiros. Serão as características que destacamos numa pessoa as mesmas que o representado
identifica como sendo importantes para si?
4. Desenhámos sobre as imagens do livro da Mariana Viegas, Passagem, que reúne retratos de várias
pessoas ligadas à história da antiga Escola da Vila do Porto Santo, através de transferências com um
pentógrafo improvisado e papel químico. Estes exercícios tentaram estabelecer uma ligação direta
entre desenho e fotografia. Ligação essa que existia muito antes do advento da própria fotografia, onde já se usavam métodos de
fixação de uma imagem em movimento através de aparelhos ópticos, como a câmara escura e a câmara
clara. Era importante que entendêssemos as possibilidades que a física permite no trabalho de
criação. Saber aproveitá-las e deixar-se maravilhar com elas durante a prática do desenho ou da
pintura. Entendê-las não como falta de habilidade de quem desenha, mas como ferramentas que ajudam a
traduzir uma realidade tridimensional para um plano bidimensional.
5. Todos os exercícios propostos foram desenvolvidos com grupos regulares de crianças, jovens e
adultos que frequentam livremente as Oficinas de Desenho, assim como por três grupos de crianças de
Centros Comunitários, regidos sob tutela da Segurança Social da Madeira. Estes últimos inserem-se no
projeto Dias Mais Claros, onde crianças e jovens em situação de vulnerabilidade social experimentam
diferentes práticas artísticas. A imaginação e sensibilidade destas crianças, dentro da disciplina
do desenho, são exemplo de que qualquer clivagem social pode ser anulada quando mergulhamos num
ambiente de criação informada e partilhada.
Carolina Vieira
Mariana Viegas
Lisboa, 1969. Usa a fotografia - enquanto documento do real - na relação com o texto e o tempo - propondo a construção de narrativas que se podem revelar esculturas socias e/ou monumentos pessoais. Expõe na Galeria Monumental em 1988, Bienal de Jovens Criadores 1996, Feira do Livro de Frankfurt, 1999, La Villete, 2003, Cluster e Location1 em Nova Iorque, 2006; Centro de Artes H. Oiticica, Rio de Janeiro, 2007; Kunsthaus Bethanien, Berlim, 2008; Gal. Vera Cortês 2007, Appleton Square, 2010, Fundação Leal Rios, 2019, Lisboa, Fundação de Serralves/com Pedro Costa, 2019, Porto e CAV, Coimbra, 2006 e 2021. O seu trabalho está representado nas seguintes coleções: Novo Banco Photo, Fundação Leal Rios, PLMJ, Instituto do Livro, Troia Design Hotel, Fundação Ilidio Pinho, Museu da Imagem, Duvernois Landscape Studio, Museu de Arte do Rio de Janeiro e coleções privadas. Bolseira da Fundação Calouste Gulbenkian para o Location1 em NY 2006/2007. Projeto apoiado pela DGArtes em 2009. Artista residente na Fundação E. Schiele na R. Checa, 2004, em GlougAir, Berlim, 2008 e pela Cidade de Copenhaga para a Fabrikken for Kunst og Design em 2011. Trabalhou na revista Kapa e colaborou com a Assírio e Alvim, Diário de Notícias e Público e com Marie Claire Pt., Grande Reportagem, Le Monde, Libération, Les Inrockuptibles entre outras. Como fotógrafa de cena trabalhou com a Madragoa/Gemini Films nos filmes de Manoel de Oliveira, João César Monteiro, Pedro Costa, Margarida Gil, Raquel Freire, João Botelho, Sharunas Bartas, Werner Schroeter entre outros. Trabalha num projeto de criação/edição e na criação de um programa de residência artística na Arrábida, com o apoio de DGArtes, na quinta onde vive atualmente. Colabora com a cineasta Inês Oliveira no seu próximo filme documental.
Nuno Faria(Lisboa, Portugal 1973), é curador independente e director do
Museu Arpad Szenes - Vieira da Silva, é professor na Escola Superior de
Design das Caldas da Rainha e na Escola das Artes da Universidade Católica
Portuguesa. Trabalhou no Instituto de Arte Contemporânea do Ministério da
Cultura de Portugal (1997-2003) e na Fundação Calouste Gulbenkian (2003-
2009). Viveu e trabalhou no Algarve entre 2007 e 2012, onde fundou (Loulé,
2009) o projecto Mobilehome — Escola de Arte Nómada, Experimental e
Independente. Foi director artístico do Centro Internacional das Artes José de
Guimarães, em Guimarães (2013-2019) e do Museu da Cidade do Porto (2019-
2022).
Paulo Pires do Vale é comissário do Plano Nacional das Artes. Docente, ensaísta e
curador, é
licenciado e mestre em Filosofia pela FCSH, Universidade Nova de Lisboa. Lecionou na Universidade
Católica
Portuguesa, no Departamento de Arquitetura da UAL e na
Escola Superior de Educadores de Infância Maria Ulrich, onde coordenou a Pós -Graduação em Práticas
Artísticas
e Processos Pedagógicos.
Escreveu «Tudo é outra coisa. O desejo na Fenomenologia do Espírito de Hegel» (Colibri, 2006) e inúmeras
ensaios para livros, revistas e catálogos de exposições coletivas e individuais, em Portugal e no
estrangeiro,
focando- se na relação entre arte, educação e sociedade.
Como curador, destacam -se as exposições «Ana Vieira, Muros de Abrigo» (Museu Carlos Machado, Ponta
Delgada, e
Centro de Arte Moderna — Fundação Calouste Gulbenkian, 2010 -2011); «Tarefas infinitas. Quando a arte e
o
livro se ilimitam» (Museu Calouste Gulbenkian, 2012); «Visitação. O Arquivo como memória e promessa»
(Igreja
de São Roque e Galeria de exposições temporárias — Museu de São Roque, 2014); «Júlio Pomar, Tratado dos
olhos»
(Atelier -Museu Júlio Pomar, 2014). Foi curador de «Ana Hatherly e o Barroco» (Museu Calouste
Gulbenkian,
2017) e Museo de las Artes Universidad de Guadalajara (México, 2018); «Do tirar polo natural. Inquérito
ao
retrato português» (com Filipa Oliveira e Anísio Franco, Museu Nacional de Arte Antiga, 2018); ou ainda
«Tarefas Infinitas. Quando a arte e o livro se ilimitam» (SESC e Biblioteca Brasiliana Mindlin —
Universidade
de São Paulo, Brasil, 2018).
Fez parte do júri de prémios como o Prémio Artes Plásticas AICA — Ministério da Cultura, Concurso de
Apoios
Arquitetura, Artes digitais, Artes plásticas, Design e Fotografia da DGArtes ou dos Concursos de Bolsas
da
Fundação Eugénio de Almeida. Foi Membro do Grupo de Consultores da Direção -Geral das Artes para a
seleção de
Lista de Curadores convidados a apresentarem propostas para Representação Oficial de Portugal na 58.ª
Bienal
de Veneza, em 2019. Presidente da AICA — Portugal desde 2015.
Carolina Vieira
Funchal, 1994. Licenciada em Artes Plásticas pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto e
Mestre em Pintura pela mesma instituição. Assistente da direção artística e serviços educativos na
PORTA33 desde 2019. A sua prática artística utiliza a paisagem para explorar aspetos materiais da
própria pintura - composição, forma, transparência, luz e cor – e por ser uma linguagem que permite
trabalhar conceitos imateriais como o sublime, através da construção de imagens que podem ser lugares
imaginados ou reais. Imagens que usam a paisagem como intenção ou como narrativa. Expõe desde 2015,
destacando-se as exposições individuais Tudo o que foi / tudo o que será (2023), na Capela da Boa Viagem
- Núcleo Difusor de Arte e Cultura Contemporânea e Alumiar (2020), na Galeria do Mudas – Museu de Arte
Contemporânea da Madeira e as coletivas The Other Side of the Moon (2023), no Buchheim Museum, Na Margem
da Paisagem Vem o Mundo (2021), no Pavilhão Branco – Galerias Municipais de Lisboa, O Sol Marca a Sombra
(2021), no Museu de História Natural do Funchal e Ilhéstico – Um roteiro de Arte Contemporânea para a
cidade do Funchal (2019), na PORTA33.