RIGO 96
enquanto os golfinhos não voltam ao tejo
Instalação
PORTA33 — Galeria Graça Fonseca, Lisboa

Rigo 96 é o nome com que Ricardo Gouveia assina os seus trabalhos realizados durante o ano de 1996. Rigo é um diminutivo que faz pensar nas tags da street-culture. A data sublinha a circunstância histórica e social concreta de cada intervenção. Rigo — nascido em 1966 na Madeira, uma ilha portuguesa do Oceano Atlântico — é um artista em cujo percurso se inscrevem as marcas de diferentes periferias e sucessivas distâncias e deslocações, com os correspondentes choques e confrontos culturais.
Em primeiro lugar temos a distância da ilha da Madeira, que ocupa ela própria uma situação periférica, em relação a Portugal continental, distância que, por sua vez, amplia a distância de Portugal em relação aos grandes centros da criação artística a nível internacional. Depois, com a deslocação para San Francisco — de acordo com uma forte tradição de emigração das ilhas portuguesas para os USA — cria-se a distância do emigrante cultural, sobredeterminada ainda pela ligação privilegiada a um meio cultural periférico ou “marginal”, onde predominam referências hispânicas e “underground”.
Ao longo da última década, em San Francisco, Rigo frequentou o Art Institute e produziu múltiplos trabalhos de banda desenhada e pintura. Servem de exemplo, para os murais, o “Liberty Ferry” em Richmond, para a banda desenhada, as colaborações no jornal “Filth” ou, para as exposições, uma individual na Southern Exposure Gallery, San Francisco, em 1992 ou, no mesmo ano, uma colectiva na LACE em Los Angeles com Enrique Chagoya, Julie Murray e Manuel Ocampo. Um outro exemplo recente: a intervenção pública “One Tree” na baixa de San Francisco (in “Art in America/Annual Guide 1996/1995 in Review: Public Art”).
Em 1994, na Galeria Porta 33, no Funchal, Rigo cobriu o chão com “calçada portuguesa”, segundo um padrão evocativo do movimento do mar, e pintou as paredes segundo um padrão abstracto evocando igualmente a superfície do mar. Sobre a pintura da parede inscreveu dezenas de nomes de localidades, ruas e sítios da ilha da Madeira, nomes quase todos com fortes ressonâncias históricas ou poéticas. A “calçada portuguesa” é uma forma tradicional de revestimento do chão dos passeios e praças de Portugal. São utilizados pequenos cubos de pedra branca e preta (calcário e basalto) para criar desenhos com padrões de forte efeito decorativo. A realização deste trabalho requer um trabalho manual lento e especializado.
Na sua mais recente exposição em Lisboa, Rigo retoma a uitilização da calçada portuguesa e o padrão da parede, ao qual sobrepõe agora fragmentos de versos de um poeta popular, dando conta das suas viagens através de listas rimadas de nomes de terras — que nos dão uma visão popular, “naif” e fantasiosa da emigração e da vida no mar.
A calçada cobre apenas o chão da primeira metade da galeria. Do lado de lá, entre a calçada e o mural, fica um espaço evocativo de uma auto-estrada, designada por dois grandes sinais de trânsito indicando a proibição de tudo o que não sejam veículos motorizados. Do lado de cá, do lado da calçada, ficam um improvisado moto-triciclo — pequeno veículo de transporte construído a partir de peças e pedaços soltos de velhos veículos for a de uso — exemplo de economia precária e criatividade popular, cedido pelo seu proprietário e, nas paredes, duas telas bordadas pela mãe do artista explicitamente evocativas da infância e da tradição do trabalho manual.
O título da exposição — “Enquanto os Golfinhos Não Voltam ao Tejo” — faz alusão aos problemas ecológicos que fizeram com que deixassem de existir golfinhos no rio que banha Lisboa. A exposição encena a dualidade de tempos, ritmos, signos e valores culturais que hoje em dia atravessam a sociedade portuguesa: uma sociedade que vive em pleno a contradição entre as suas raízes tradicionais ainda muito vivas e o impacto dinamizador da mundialização cultural. Com esta exposição Rigo tenta recriar, no interior de uma galeria, o espaço público onde geralmente instala os seus trabalhos. Ao mesmo tempo, apresenta uma visão de um país atravessado por uma auto-estrada, símbolo do progresso económico, correndo entre bermas onde se acumulam os sinais de abandono e exclusão representados por formas culturais populares e tradicionais ameaçadas de anacronismo e extinsão.
Na parede do fundo, a fantasia de um mar animado por ondas que embalam poemas populares, dá-nos o ponto de fuga poético e imaginário com que Rigo apazigua o seu sentimento de distância e nostalgia.

ALEXANDRE MELO Publicado inicialmente em Artforum International, Abril de 1997

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