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Duarte Belo / Foto: PORTA33, Outubro 2022

DUARTE BELO
Residências para experienciar o lugar,
conhecer a comunidade e o seu território

16 a 23 de Outubro de 2022
15 a 22 de Março de 2023

A Escola do Porto Santo é assumida por Duarte Belo como o ponto nodal da construção de um dispositivo visual baseado em percursos pedestres pelo espaço envolvente ao próprio edifício e que se estendem por toda a ilha de Porto Santo. Percursos fotografados aquando do caminhar, do movimento do corpo sobre a paisagem. O foco das fotografias terá a ambição de mostrar, por um lado a estrutura do território, os principais elementos da organização da paisagem, sejam eles do espaço geológico, sejam relativos ao povoamento humano; por outro lado os detalhes da paisagem, seja ela natural, rural ou urbana.

Duarte Belo (Lisboa, 1968) é licenciado em Arquitectura. Paralelamente à actividade inicial em Arquitectura, desenvolve projectos em Fotografia. Expõe individualmente desde 1989, tendo já participado em numerosas exposições individuais. Está representado em diversas coleções públicas e privadas, em Portugal e no estrangeiro. Já desenvolveu a actividade de docência e participa regularmente em seminários, congressos e mesas redondas.
Da obra publicada poderíamos destacar Orlando Ribeiro — Seguido de uma viagem breve à Serra da Estrela (1999); Ruy Belo — Coisas de Silêncio (2000); O Vento Sobre a Terra — apontamentos de viagens (2002); À Superfície do Tempo — Viagem à Amazónia (2002); Território em Espera (2005); Geografia do Caos (2005); Terras Templárias de Idanha (2006); Olívia e Joaquim – Doces de Santa Clara em Vila do Conde (2007); Fogo Frio - O Vulcão dos Capelinhos (2008); Comboios de Livros (2009); Desenha, produz e fotografa as ilustrações do conto O Príncipe-Urso Doce de Laranja (2009); Cidade do Mais Antigo Nome (2010).

CRATERA


Arte e liberdade como escola
Escola da Vila, Porto Santo

Mapa, viagem, arquitetura

001. Introdução
No dia 16 de outubro de 2022, parti de Lisboa para Porto Santo. Aí permaneci durante uma semana, até ao dia 23. O objetivo era o de fotografar o edifício da Escola da Vila, a sua arquitetura, a forma como os as salas se articulam entre si e como este bloco dialoga com o volume autónomo da cantina, criando um espaço de recreio entre os dois edifícios. O modo como o conjunto edificado da escola se relaciona com o espaço urbano envolvente foi também um tema incontornável do registo fotográfico. O facto de Porto Santo ser uma ilha de dimensões relativamente reduzidas coloca-nos perante um desafio a que é difícil resistir: por não tentar fotografar toda a ilha? A tarefa é ambiciosa e virtualmente impossível de cumprir. A terra revela-se em dimensões de detalhe que não é possível registar. Há uma espacialidade fratal no território, há muitos locais, nas arribas e falésias, que não são acessíveis. Mais do que fotografar tudo, é importante comunicar esse desígnio. Apresentar um conjunto estruturado de imagens que nos falem da extrema diversidade de uma paisagem. A geologia, o coberto vegetal, o povoamento humano, tudo se entretece. Estas imagens são como o registo visual de um movimento performativo sobre a paisagem, linhas que se desenham sobre a geografia de uma ilha fascinante.

Dia 16 de outubro de 2022, domingo
1623 fotografias (dg1175697-dg1177319)
Aeroporto de Lisboa; Aeroporto de Porto Santo; Escola da Vila; Território envolvente à Escola, ao longo do Ribeiro do Tanque; Centro de Vila Baleira; Praia/cais; Escola da Vila.

O infinito fratal entre a ciência e a arte

002. O que é uma escola hoje?
2018 foi o último ano de funcionamento regular da Escola da Vila. No fim do ano letivo foram fechadas as portas. Deixou de se ouvir a voz das crianças. O edifício assumiu as funções de depósito de materiais inúteis, sem ser um armazém estruturado. Foi equacionada a sua demolição para no local ser construída uma superfície comercial.
A ocupação da Escola por uma entidade dinâmica com vasta experiência no campo da arte e da arquitetura, será a marca inconfundível de um projeto de comunicação em construção. Não se vai transmitir conhecimento de um modo tradicional, em que crianças estão sentadas em carteiras a ouvir um(a) professor(a) a debitar matérias previamente determinadas. As crianças, adolescentes e jovens adultos continuarão a ser um destino preferencial desta proposta educativa, mas pretende-se envolver toda a comunidade, independentemente da sua formação prévia, atividade profissional ou idade. Transmitir-se-ão conteúdos que não se encontram com facilidade noutros suportes, como livros ou na Internet, pois resultam do contacto direto com artistas ou o trabalho que deixam, resultado de residências criativas. Serão trabalhos que refletirão, de modo direto ou indireto, o pensamento sobre a escola (entendida material e conceptualmente), o espaço em que se encontra bem como o território da ilha observada como um todo.
Pelo estímulo ao desenvolvimento da reflexão e de fazeres diversificados, manualidades, propõe-se a liberdade criativa e o aprofundamento do entendimento de uma relação profícua com a natureza específica com o lugar, o espaço e o tempo habitados. O desenvolvimento de um juízo crítico e estruturado sobre a realidade, sobre uma postura humana em relação com um mundo de elevada complexidade, será outro dos objetivos deste movimento criativo.

Dia 17 de outubro de 2022, segunda-feira
2861 fotografias (dg1177320-dg110180)
Praia, na direção do porto; Vale do Touro; Capela da Senhora da Graça; Casinhas Vila Baleira; Cais; Praia para poente; Fontinha; Pedras Pretas; Lombas; Regresso por cima (moinhos).

Tempo longo em espaço maior

003. Habitar uma ilha
Uma ilha, sobretudo se habitada e de pequenas dimensões, é um território especialmente apelativo para o estudo da vida, do povoamento e da interação do Homo Sapiens com o meio ambiente. Nesta interação inclui-se a relação com a terra, com o clima, com outras espécies biológicas, sejam elas vegetais ou animais (insetos, répteis, mamíferos). Um território delimitado, rodeado de mar tem, geralmente, um número reduzido de espécies, facilitando o estudo das suas interações. O mesmo se aplica para a compreensão que nós, humanos, estabelecemos com o lugar, com a ocupação e povoamento de toda a terra. O Porto Santo, embora muito próximo da Madeira, é muito diferente, a todos os níveis, daquela ilha maior.

Dia 18 de outubro de 2022, terça-feira
3391 fotografias (dg1180181-dg1183571)
Capela de São Pedro; Pedreira de Ana Ferreira; Pico de Ana Ferreira; Terra Branca; Espigão (vértice Geodésico); Sítio do Lombo; Cabeço do Zimbralinho; Morenos.

Caminhar numa sequência de labirintos

004. O conhecimento da terra

O conhecimento entendido de uma forma abrangente, é um modo de entendimento da realidade, uma poderosa ferramenta para a sobrevivência. Há múltiplas formas de interpretar o visível. O processo de conhecimento é contínuo, cumulativo.
O edifício da Escola da Vila tem uma arquitetura muito qualificada, o que faz do seu espaço uma referência e uma motivação adicional para falar, para comunicar, sobre a importância de habitar sítios onde a arquitetura seja especialmente cuidada. Espaços criteriosamente desenhados aportam qualidade de vida para quem os habita. Que a Escola seja o porto de abrigo para viagens, reais e imaginárias, por todo o território da ilha. Que, a partir das suas salas de aula, ou do espaço do antigo refeitório, se aprofunde o conhecimento da singular e única geologia desta paisagem, que se conheça a história do povoamento humano do lugar, que se estabeleçam pontes dinâmicas com a vizinha ilha da Madeira, simultaneamente próxima e distante, tão diferente em tantos aspetos.

Dia 19 de outubro de 2022, quarta-feira
3067 fotografias (dgdg1183572-dg1186638)
Escola da Vila; Imediações da Escola; Vila Baleira; Pico do Castelo; Pico do Facho; Rocha de Nossa Senhora (Senhora da Graça); Miradouro da Figueirinha do Brito; Casinhas.

Paisagens dentro da arquitetura

005. As questões ambientais
As ilhas são, quase sempre, territórios extremamente sensíveis a essa realidade incontornável que são as alterações climáticas. Porto Santo não foge a este quadro. A possibilidade da elevação do nível médio do mar, num período relativamente curto, trará consequências devastadoras sobre o povoamento humano da ilha. O extenso areal da costa sul da ilha, que estrutura praticamente toda a atividade económica, pode desaparecer. É urgente que estas geografias mais ameaçadas assumam um papel determinante na reflexão e ação sobre a sensibilização sobre as alterações climáticas e as formas possíveis de reverter o processo. No coberto vegetal, os gigantes arbóreo, que por vezes encontramos, são exemplos de conexão, de diálogo com as mais frágeis manifestações da vida. São sistemas orgânicos que se ligam, talvez por todo o vivo ter uma origem comum, partilharem células que, no essencial, são idênticas. Toda a memória viva da terra está guardada, codificada, no interior das células. A vida é como um jogo de regras evolutivas e indeterminadas.

Dia 20 de outubro de 2022, quinta-feira
3473 fotografias (dg1186639-dg1190111)
Detalhes da Escola da Vila habitada; Espaços de trabalho na Escola; Fonte Velha; Fonte da Areia; Areias; Porto das Salemas; Miradouro do Pedregal; Pico Branco.

Um mundo que ergue do caminhar

006. O mapeamento fotográfico do território
Caminhar com uma câmara fotográfica, com o desejo simultâneo de conhecer a terra, a geologia, o coberto vegetal, as marcas, das mais simples às mais variadas e complexas, do povoamento humano. Criar um registo visual, imagético, da maior quantidade possível de elementos, sabendo que é sempre limitada essa capacidade de tudo fotografar. Mas ficarão imagens-metáfora, simbólicas, representativas da realidade visível. Como janelas de infinito que questionam quem sobre elas se debruça, que causam, eventualmente, inquietação, que estimulam formas mais ricas e informadas de interpretar a nossa condição de seres biológicos inseridos numa biosfera de extrema diversidade.

Dia 21 de outubro de 2022, sexta-feira
4018 fotografias (dg1190112-dg1194129)
Detalhes habitados do exterior da Escola; chuva torrencial; Ribeiro do Tanque; detalhes de elementos da natureza, na minha sala; sala da Carolina; cobertura/terraço da Escola; Miradouro da Portela; Porto dos Frades; Cercado; Incão; Morenos; Escola à noite.

Arquitetura mínima de um cosmos

007. A questão da arquitetura

A arquitetura é o projeto e a construção de edifícios para albergar pessoas e comunidades. São as cidades que se elevam como significativos passos evolutivos no contexto da vida do planeta Terra. O facto deste trabalho se desenvolver a partir de um edifício muito qualificado, tem um sentido especial. Há, sem dúvida, uma questão de não-neutralidade. O edifício integra um projeto de conhecimento pela arte. A escola, como lugar de conhecimento e aprendizagem, é um espaço de liberdade. Aprendemos as ferramentas para o conhecimento do mundo. Somos estimulados, mesmo que indiretamente, a escolher um caminho, uma determinada especialidade laboral que nos enquadra o futuro próximo e talvez distante. A arte pode, deve, ter neste processo de formação ao longo da vida, um papel determinante.

Dia 22 de outubro de 2022, sábado
2474 fotografias (dg1194130-dg1196603)
Miradouro da Portela; Pico Maçarico; objetos relacionados com a atividade da Escola; exposição na cantina; caminhada em torno do Pico do Facho; caminhada à Frecha da Dona Beja; Escola à noite, com cinema.

A exposição de um rosto

008. Uma dimensão de singularidade
Um legado que se quer deixar, um modo de elevada intensidade de relação com a terra, com a paisagem, com a arquitetura. É importante a noção de que qualquer trabalho é o esforço de alguém, representa a expressão de uma condição individual, que transporta consigo uma história própria e condições específicas. Esse trabalho enquadra-se noutros por mim desenvolvidos. Há uma prática continuada, neste caso de mapeamento fotográfico do espaço português, iniciada há quatro décadas. Neste processo de fotografia da terra, da geologia, do coberto vegetal e do povoamento humano, há um corpo que se desloca pela superfície, pelo solo, com uma câmara fotográfica. Os anos passam e acontece algo paradigmático. Ao mesmo tempo que, a partir de uma determinada idade, as capacidades físicas do caminhante se vão degradando, há uma capacidade de leitura, de visão, de atenção aos detalhes, que se vai tornando cada vez mais fina e clarividente. Estamos no coração de um processo dinâmico que nos define como vida. Porto Santo foi, talvez, o culminar de um movimento obsessivo, de recolha fotográfica levada a um nível de exaustão. Ou o jogo de duas impossibilidades em diálogo: a limitação do tempo, para fazer mais, a incapacidade física de um corpo orgânico em esgotamento físico. Fica como possibilidade a sublime delicadeza das palavras, do pensamento como expressão de uma arquitetura imaterial. A Escola da Vila como lugar irradiante, quase epifânico. Fica aqui uma ideia de arquitetura, para trás vamos deixando uma cidade, os rasto dos nossos passos em imagens fixadas, efémeras, a construção da memória, do indeterminado caminhar. Na impossibilidade de conhecer toda a terra, mergulho, em pensamento, noutros lugares do meu arquivo, outras ilhas, maiores, como a Madeira ou o Pico. Procuro, em lugares aparentemente simples, toda a terra. O mar é um horizonte de partida para o entendimento da vida.

Dia 23 de outubro de 2022, domingo
873 fotografias (dg1196604-dg1197476)
Madrugada na Escola da Vila; Zona semi-abandonada junto ao porto; Aeroporto de Porto Santo; fotografias aéreas; Aeroporto de Lisboa.

Nomear a memória da terra

009. Projeto para uma exposição
Mais do que mostrar um conjunto de fotografias relativamente limitado, há o desejo de mostrar todo o trabalho realizado. Escolher 20 ou 30 imagens que representem uma súmula do trabalho desenvolvido, talvez apontando mesmo para uma seleção temática, como o estrito recinto da escola, parece redutor. As tensões urbanas e de relação com a paisagem são importantes para estimular uma reflexão sobre a arquitetura, o território e o modo como o ocupamos. Mais do que mostrar obras de arte em paredes brancas, o que se propõe é mostrar uma grande quantidade de fotografias, espelho e reflexo da complexidade que nos envolve. Há aqui o enorme desafio de expor uma grande quantidade de informação. Ao mostrar a totalidade das 20.000 imagens colhidas não se pretende que quem visite a exposição dê atenção a cada uma das fotografias. Não. Pretende-se criar uma mancha visual que funcione como um todo, como um papel de parede, com um padrão abstrato, que, ao aproximarmo-nos, reparamos no seu impressivo detalhe, como um perturbador labirinto que se abre em múltiplas direções.

010. Nota final
Cratera. Não há crateras na ilha de Porto Santo. Mesmo tratando-se de uma ilha de génese vulcânica, o tempo apagou essas singulares formas associadas ao abatimento das chaminés de transporte de magma após as erupções. O pico de Ana Ferreira é um exemplo de um vulcão há muito extinto. Numa escala temporal alargada a ilha não é muito antiga. No entanto, os seus cerca de 14 milhões de anos, já permitiram a formação de rochas sedimentares. Uma cratera é uma superfície côncava que nos isola do exterior e nos mostra o céu. Porto Santo é o contrário de uma cratera. De quase todos os pontos da ilha conseguimos ver o mar, apesar de ter uma geografia com vários picos. A cratera é a Escola da Vila. Um lugar de paragem. Quando saímos das suas antigas salas de aula, temos um interminável mundo para descobrir. Com a ciência em pensamento e a arte como ferramenta operativa, daremos passos renovados sobre uma paisagem cintilante. Uma ilha para conhecer o mundo.

Aditamentos
111. O exercício da recolha fotográfica não deixa de ser, aqui, um movimento performativo. Há uma experiência de vida, intensa, de concentração, de foco pleno. Ao mesmo tempo é ausência de um quotidiano funcional, de múltiplas respostas a solicitações concretas. Um trabalho disruptivo, contaminado por pensamentos dispersos que abarcam todo o passado vivido, o presente e a projeção do futuro breve, da construção de artefactos de comunicação em que se inscreve aquele movimento específico. Cada viagem, cada caminhada é diferente de todas as outras. Há sucessivos sedimentos de memória que dialogam entre si.

112. O trabalho de mapeamento fotográfico do território, da paisagem e da arquitetura, desenvolve-se, não raras vezes, em exaustão física. A grande quantidade de imagens produzidas resulta da ansiedade de tudo querer fotografar, de não perder nada, tudo registar, quando, simultaneamente, tudo foge, se escapa, como a água que tentamos reter nas nossas mãos. Paradoxalmente, não há um sentimento de perda, tal é o envolvimento, a integração num universo significante, afastado dessa sim, ânsia de resposta a códigos sociais. Habito, momentaneamente, uma indizível liberdade. Estas palavras são uma aproximação a essa procura, à expressão, à tradução, de uma realidade noutra diferente, mediada.

113. Tudo se liga num mar de informação. Criamos com as fotografias, com a linguagem, sucessivas, adicionais, camadas de realidade. A entropia avança. A matéria inventou a vida. A vida ergueu-se em sucessivos desdobramentos, como a célula, a memória, a linguagem, os organismos complexos, a morte. Somos, Homo Sapiens, a espécie biológica mais bem sucedida na história da vida na Terra. Às invenções da vida adicionámos, ou desenvolvemos como antes não havia sido feito, a linguagem simbólica e a tecnologia.

114. A arte, o que significa? Ao contrário do que muitas vezes se propala, sobre a inutilidade da arte, esta é profundamente útil. Tudo, no sistema Terra/vida tem um princípio, um desenvolvimento lógico experimental desenvolvido de baixo para cima, em ajustes permanentes, em que não falta o erro. Tentativas de adaptação a um meio sempre em mudança. A arte responde a esta lógica. Tudo na vida, onde se incluem os Sapiens, responde a critérios biológicos. Que a arte nos ajude a entender a vida, num caminho convergente com a ciência. A realidade só se pode alinhar, de modo fértil, com a verdade. As possibilidades de continuação são virtualmente ilimitadas, mas um caminho que não siga a lógica da matéria, da energia, do espaço e do tempo, as leis fundamentais do Universo, estará, naturalmente, destinado a um beco sem saída.

115. Percorremos, desejamos percorrer, toda a terra. Alguma coisa falha. Há um tempo que passou e não volta. Apercebo-mo-nos de um limite, de uma incapacidade. Há uma rutura com a própria leitura do território. O confronto com o fim da viagem, o regresso a casa. Arrumam-se as botas, semelhantes àquelas que tinham sido de Orlando Ribeiro, que eu fotografara na sua casa de Vale de Lobos, há vinte e cinco anos. Era como se nesse passado tivesse desenhado o meu próprio destino. O fim de uma caminhada, símbolo de toda a vida vivida até esse presente. Talvez este momento de viragem corresponda ao esgotamento de um modelo de mapeamento fotográfico do território. As limitações de tempo e espaço não permitirão ir mais além, nomeadamente na possibilidade de fazer mais fotografias. Nada aqui é direto, como se fosse tomando conhecimento do mundo através de portas entreabertas, algo que não se observa diretamente. A essência do universo chega-nos como um dano colateral. Mundo quântico, errático e imprevisível. O cérebro é uma representação do Universo. A vida humana é uma viagem ao conhecimento de si própria, num específico momento de uma linha evolutiva, nas condições concretas de um suporte, no planeta Terra. Um dia poderemos entender as cidades no enquadramento biológico da vida, da matéria, como se em nada fossemos diferentes de qualquer outra forma de vida. O movimento é uma condição biológica de sobrevivência.

116. Fixar a efemeridade da passagem, da visualidade das viagens em fuga. Reencontramos breve, o movimento em campo, na tentativa de tudo fotografar, em que já não é só a luz que se dilui na direção da noite, é também a capacidade física do fazedor, do fotógrafo, que se esgota. Vemos partir algo que já não temos possibilidade de agarrar. Não há a angústia da perda. Serenamente, procuram-se outras soluções para continuar. Quando uma linha se perde, há outras geometrias que surgem. Somos fragmentos em movimento aleatório pelo universo. A vida é o movimento da matéria em busca de um sentido inexistente.

117. Uma leitura do tempo que passa, de um fim que se vai aproximando, que se manifesta nas transformações do corpo, da leitura de sinais óbvios. Há uma evidente dureza nesta atividade em campo aberto, muitas vezes em solos de acentuado declive onde o clima pode oscilar entre o frio acentuado e o calor extremo, em diferentes épocas do ano. A falta de água é uma presença regular. Convivemos, a partir de um determinado momento, com a gradual perda de resistência física. Em nada há drama na lenta aprendizagem do fim.

118. Porto Santo foi uma viagem extrema, um desejo de fotografar toda a terra. Um território limitado, uma ilha, mas de elevada complexidade, onde a terra fala, onde há um povoamento humano evolutivo, onde parece estar presente todo um retrato da contemporaneidade, da relação do homem com a natureza. Há uma escola, a tentativa de transmissão de conhecimento, já não em programas de ensino convencionais. Partilhar saber através da arte, do diálogo de diferentes expressões gráficas, no enquadramento de uma instituição que longamente tem trabalhado na expressão artística e poética, nas suas ramificações para o pensamento do mundo.

119. Este trabalho fotográfico opera num território híbrido. Por um lado o levantamento, o registo visual da geografia, da geologia de uma ilha, das formas do povoamento humano. Por outro lado há um olhar que não é neutro, apesar de um desejo de objetividade. Nada é absolutamente concreto. A fotografia opera seleções do visível, por vezes milimétricas, na alteração de um ponto de vista, que altera drasticamente a significação, a leitura da imagem. Fazer arquitetura com as fotografias.

120. Da arquitetura de uma escola, um espaço referencial de partilha e de conhecimento da realidade, para o mundo. A arquitetura assume o carácter simbólico, a súmula de uma condição humana. É o assumir de um passo evolutivo determinante, a construção de um habitat complexo, o corte progressivo com uma natureza intacta, dura, violenta, hostil. A Escola da Vila, do Porto Santo, é um estranho objeto de modernidade numa ilha conservadora, ao seu tempo, que rompeu com modelos arquitectónicos do passado e assumiu linhas renovadas de entendimento do espaço e do futuro.

121. As fontes deste trabalho são a terra e uma bibliografia de leituras dispersas, sobretudo em áreas científicas como a física, a química e a biologia. A matemática é a linguagem do universo e uma fascinante e infinita descoberta humana. Daqui deriva todo o saber. Não vamos renegar todo o caminho humano até ao presente, uma história bela, tão profundamente sedutora quanto inquietante, do altruísmo ao ódio e violência extrema. Tudo nos ajudou na confluência do presente, tudo contribuiu para o sucesso que abruptamente revela fragilidades.

Duarte Belo (Lisboa, 1968) é licenciado em Arquitectura. Paralelamente à actividade inicial em Arquitectura, desenvolve projectos em Fotografia. Expõe individualmente desde 1989, tendo já participado em numerosas exposições individuais. Está representado em diversas coleções públicas e privadas, em Portugal e no estrangeiro. Já desenvolveu a actividade de docência e participa regularmente em seminários, congressos e mesas redondas.
Da obra publicada poderíamos destacar Orlando Ribeiro — Seguido de uma viagem breve à Serra da Estrela (1999); Ruy Belo — Coisas de Silêncio (2000); O Vento Sobre a Terra — apontamentos de viagens (2002); À Superfície do Tempo — Viagem à Amazónia (2002); Território em Espera (2005); Geografia do Caos (2005); Terras Templárias de Idanha (2006); Olívia e Joaquim – Doces de Santa Clara em Vila do Conde (2007); Fogo Frio - O Vulcão dos Capelinhos (2008); Comboios de Livros (2009); Desenha, produz e fotografa as ilustrações do conto O Príncipe-Urso Doce de Laranja (2009); Cidade do Mais Antigo Nome (2010).

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