Este livro chama-se Passagem.
Foi editado por ocasião da exposição
com o mesmo título,
realizada na Escola do Porto Santo.
Mariana Viegas é uma artista portuguesa.
O livro tem fotografias da sua autoria.
Rostos olham-nos de frente.
São figuras que emergem da escuridão.
Todas estas pessoas, de diferentes idades,
têm uma relação com a Escola da Vila.
Invisíveis, as memórias circulam no ar.
São atmosféricas.
O que nos diz um rosto que nos olha?
Esta é uma interrogação que as mulheres
e os homens têm desde
há muito tempo.
O género do retrato é tão antigo como
a história da humanidade.
Um retrato é a imagem de uma pessoa (real ou imaginária),
reproduzida por pintura, desenho ou fotografia.
Mariana Viegas tem vindo, desde há muitos anos,
a usar a fotografia (e o vídeo)
no seu trabalho artístico.
É uma forma de ver o mundo.
Ela mostra-nos:
— como o mundo pode ser estranho e enigmático; e
— como o tempo faz intimamente parte da
nossa vida.
E, no entanto, sabemos como é difícil dizer
o que é o tempo de forma simples.
Durante dias, Mariana Viegas fotografou,
retratou essas pessoas.
As sessões aconteceram numa sala da Escola.
Fazer um retrato é uma forma de relação.
Relação é sinónimo de semelhança,
de parecença.
Alguém, no passado, chamou ao rosto a janela da alma.
O rosto, nas palavras dos filósofos,
é uma lembrança de que somos humanos.
Somos porque os outros são.
Como num espelho, vemo-nos no rosto do outro.
Mariana Viegas interessa-se pelas diferentes
formas de relação.
Ela mostra-nos que:
— um rosto pode ser tão amplo e profundo
como uma paisagem; e que
— reconhecemos o outro pelos seus traços
fisionómicos mas também pela memória do seu
rosto; e que
— reconhecemos também o outro no movimento,
na passagem do tempo.
Um livro é um objecto que se segura entre mãos.
Manuseamos e folheamos um livro: é uma forma
de contacto.
A palavra contacto faz parte do léxico
da fotografia.
Em fotografia, a prova de contacto corresponde à imagem
positiva obtida pela exposição do contacto dos negativos com
a folha de papel.
Contacto implica toque, encontro, proximidade.
Como muitos artistas, incluindo os que
trabalham com fotografia, Mariana Viegas
interessa-se pela memória.
A memória é uma forma de ligação ao passado,
aos seres e aos lugares.
O que liga tudo nas nossas vidas é a relação.
Relação significa uma acção de dar em retorno.
Mariana Viegas sabe que a vida é uma passagem.
Tudo é movimento. Um retrato é movimento.
Como muitos artistas, ela apaixonou-se
pel´a espantosa realidade das coisas.
Se olhássemos mais atentamente o rosto dos
outros, e o nosso ao espelho, não haveria
tantas guerras.
Seria impossível haver.
Como escreveu Alberto Caeiro:
A guerra, como tudo humano, quer alterar.
Mas a guerra, mais do que tudo, quer alterar e alterar muito.
E alterar depressa.
(…)
Deixai existir o mundo exterior e a humanidade natural!
Paz a todas as cousas pré-humanas, mesmo no homem.
Paz à essência inteiramente exterior do Universo!
Há dois mil anos, no Egipto Antigo, foram criados
os retratos mais antigos de que há memória.
São retratos de rostos, simplesmente.
Rostos que nos olham. Olham-nos em serenidade.
Em paz.
Olham-nos em vida.
Foram encontrados em escavações realizadas
na região do Fayoum.
Por isso lhes chamamos os retratos do Fayoum.
Foram encontrados em túmulos e serviam
de rosto para os corpos mumificados.
Eram retratos de pessoas cujo nome não mais
saberemos.
Contudo, estranhamente, quando os olhamos
parecem ser próximos de nós.
Parecem ser-nos íntimos.
Mariana Viegas conhece os retratos do Fayoum.
Assim como todos os retratos de todas as
épocas, de todos os lugares. Pode imaginá-los
porque existem na memória da humanidade.
Os retratos que realizou na Escola do Porto
Santo serão um dia, daqui a dois mil anos,
vistos pelos porvindouros.
E serão reconhecidos.
Não pelo nome, mas porque lhes parecerão
próximos e íntimos.
Porque neles, nestes retratos,
se reconhecerão.
Nos reconheceremos.
Enquanto anónimos, que somos.
Nuno Faria