Amy Yoes e Fernanda Fragateiro
A SOMBRA DAS NUVENS DO MAR
Por Inês Pedrosa
Só nos livros o amor racha corações em relâmpago.
Dinamene tomava vagares e quando atingia o sobressalto do sossego do acordo consigo mesma, o seu
corpo mudava-se. De negro, fazia-se branco, de branco doirado, e depois moreno espesso. Talvez fora
da ilha o tempo voltasse e Dinamene pudesse conquistar a efémera angustia de uma identidade de
mulher. Tentara barcos e pássaros, as ondas e depois o fundo do mar, mas as águas e os ares
devolviam-na repetidamente. Queria morrer e flutuava. Queria amar-se e mudava. Acordava sem saber de
si, o sangue em forma de pedra, as pernas de âmbar, os cabelos de cedro velho e o rosto de mogno com
uma mobília de palácio.
A mágoa das matérias – pedra ou barro – chorava em círculos pesados dentro dela. Se ao menos tivesse
memória. Olhava e tudo o que via era beleza: encostas verdes carregadas de flores, uma cidade cor de
rosa encostada a navios grandes que à noite iluminavam o mar a toda a volta. Mas nem estas coisas
simples Dinamene chegava a nomear. Quando se aproximava das palavras o seu corpo transfigurava-se e
era como se a vida recomeçasse de um princípio que ela já conhecia mas nunca chegava a aprender. De
qualquer maneira as pessoas ficavam a contemplá-la. Diziam: “Coitadinha! Tão bonita!” e ela sentia
um fio de água (ou de seiva, ou lama, ou ouro, dependendo do dia, descer-lhe pelo rosto. Sonhava que
era uma rapariga como as outras, com uma só pele para envelhecer devagarinho e colecionar
fotografias e remorsos. Havia no sonho uma voz fatalista: “Serás sempre uma árvore apaixonada pelos
barcos, é essa a tua maldição”, e quando ela queria perguntar porquê o sonho acabava e o espelho
mostrava-a outra, cada vez mas condenada à eternidade, que é o sítio de onde todas as recordações
desapareceram. Olhava para as barrigas redondas das mulheres cheias, efémeras, íntimas e distantes
como brinquedos, olhava-as com tal ausência que as comovia. As mulheres pegavam na cabeça loura e
negra de Dinamene e encostavam-na à pele estoirada dos seus ventres. O som monótono da mortalidade
deixava-a com saudades de ser feliz.
Dinamene nascera um dia, experimentara o terrível prazer da precariedade. Às vezes, os olhos dos
homens traziam-lhe um violento odor a lenha e leite, uma coisa que escaldava como sangue a jorros de
pulsos abertos. Tentara rasgar a pele com uma tesoura funda, e de imediato ela se lhe mudara em
granito escuro, brilhante. Meteu-se-lhe então na cabeça que a ilha havia de ter um buraco, um lugar
por onde a queda pudesse ser definitiva. Há muitos anos, na escola, Dinamene aprendera a fugir de
poços, grutas e covas porque no centro da terra ficava o inferno, mas agora ela não tinha qualquer
ideia do que fosse uma escola. Correu a ilha toda muitas e muitas vezes, e quanto mais corria mais o
seu corpo se afastava da terra. Pisava orquídeas e elas voltavam-se para o sol, como se em vez de
pisadas tivessem sido acariciadas pela brisa do mar. Correu tanto que acabou por provocar os ventos
e congregar as nuvens que andavam lá longe pelos continentes do mundo. A ilha pôs-se a baloiçar como
uma alma confusa e entornou Dinamene para dentro de uma fortaleza de pedra roubada ao tempo dos
piratas. A primeira sala parecia uma caixa de fósforos gigante, onde os fósforos desenhavam um
labirinto de andaimes. Ao fundo da sala havia uma enorme mesa de madeira, daquelas de desenhar
cidades ou meditar sobre o esplendor da verdade. Dinamene acabou por reparar que sempre que
suspirava um dos fósforos caía e aparecia um desenho na mesa do fundo, que podia ser de frades ou
arquitectos ou poetas. Queria tocar-lhes, mas os desenhos esfumavam-se, desfaziam-se em giz nas mãos
dela. E o giz marcou o caminho da segunda sala, que era depois de uma ponte estreita, e quando ela
entrou na segunda sala começou a nevar lá fora. Dinamene olhou para as mãos porque de repente o seu
corpo fazia um barulho de livro desfolhado, e a pele desatou a encarquilhar-se muito depressa, até
ficar cor de pergaminho, como os velhos ou os recém-nascidos. Não havia ali espelho que confirmasse
a situação de Dinamene. De qualquer modo, Dinamene era imune aos espelhos. Só a água lhe reflectia
os contornos, em dias de controlada luz. Deitou-se no chão, ao lado de uma espiral de flores que ali
havia, e deixou-se cobrir pelas pétalas brancas e vermelhas, que lhe imitavam o frio da neve e o
sabor metálico do sangue.
E então Dinamene lembrou-se. As imagens acudiam-lhe em tropel, recortadas em riso, assimétricas,
numas cores ferozes de vida. Tinha um enorme cravo vermelho no cabelo em forma de estrela do mar e
as suas mãos pequenas, pacientes, construíam uma cidade de fósforos. Crescera em volta daquela
cidade. Quando acabou de crescer verificou que a sua cidade estava rodeada por uma verdadeira
muralha de papel. Pegou na primeira folha e leu o que estava escrito. Amor, amor, amor, ah, minha
Dinamene, eternamente. Soltou uma gargalhada e caiu do céu uma luz que se ateou aos fósforos e
reduziu a cinzas a sua infância inteira. Dinamene decidiu esquecer. Coleccionou fotografias até
inventar uma família que lhe ficasse bem. Às vezes deixava-se arruinar, às vezes bordava panos para
os barcos que partiam. Quando se cansou de imaginar começou a copiar gestos e sentimentos dos
romances. Não corria o perigo da seriedade, porque tinha um guarda-roupa faustoso dentro da cabeça.
Nada era para sempre, nada merecia o empenhamento de uma existência, tudo fogo que arde. Era a única
mulher que gostava de envelhecer. Entediava-a a ideia de acordar todos os dias da vida com a mesma
pele lisa dos objectos sem passado. Amava as imperceptíveis corrosões do tempo, talvez por isso
parecia cada dia mais nova. Ganhou fama de bondosa por alheamento, tão determinada se apresentava
sempre a estudar a sombra das nuvens no mar. Intrigava-a a persistência que as pessoas punham nos
actos, para o bem como para o mal. Por isso mesmo, desencadeava paixões furiosas. Troçava da
persistência das guerras e dos sentimentos, vivia o poder absoluto da indiferença material. Nunca
saíra da ilha, que é o mesmo que dizer que jamais lhe pertencera, porque tinha todos os sentidos
pousados nas substâncias passageiras. Divertia-a o jogo das intensidades, donde começou a
murmurar-se que mentia. Numa hora beijava, na seguinte enxotava e ria. Até que os limites humanos do
desengano coincidiram com os limites físicos da ilha, e a colecção de apaixonados transbordou numa
multidão de revoltados.
Dinamene foi convidada para uma festa no alto do monte, num palácio onde morrera um rei estrangeiro.
Quando ela entrou, com um vestido da cor do Tempo, todos – homens e mulheres – suspiraram de desejo
e pavor. Avançaram para ela com uma garrafa cheia de um líquido dourado e pediram-lhe que bebesse
aquele néctar feito de propósito para ela. Dinamene bebeu e rejuvenesceu. Parecia que aquela bebida
continha a fórmula da felicidade eterna. De certa forma, era verdade. Naquele jarro estavam as
lágrimas de todas as pessoas que a tinham amado. De madrugada, a pele de Dinamene desatou a
escurecer. Como se o corpo tivesse decidido preencher-lhe todos os espaços em branco da vida.
Foi assim que Dinamene passou da vida à arte, de ser humano a parecer literal: a alma encheu-se-lhe
de estruturas precárias, o corpo esvaziou-se-lhe em sucessivas acumulações de cor. Até ao instante
em que, deitada sob pétalas, Dinamene se lembrou de tudo e depois esqueceu-se e nasceu a chorar.
Inês Pedrosa
Este livrinho de imagens, com uma história de Inês Pedrosa, foi publicado como lembrança de A SOMBRA DAS NUVENS NO MAR, um projecto de Amy Yoes e Fernanda Fragateiro no Funchal, de 10 de Dezembro de 1993 a 15 de Janeiro de 1994. Na Galeria Porta 33, à Rua do Quebra Costas, as artistas expuseram desenhos e sombras. No Museu de Arte Contemporânea da Madeira, ao Forte de São Tiago, cada uma realizou uma instalação, em duas salas geminadas.