Apresentação do livro e exposição
Bariri, a Garoupa e o recôncavo
Minha relação com a fotografia sempre foi um ato de sobrevivência. Comecei a fotografar logo depois
da morte do meu avô. Eu tinha dezenove anos e havia ganhado uma Pentax MX e resolvi entender o que
era tudo aquilo que vinha nela. Lembro que o primeiro lugar que fotografei com a câmera foi Bariri,
a cidade natal do meu avô Luiz Grigolin.
As fotos nunca foram reveladas, perdi o filme em casa ou no laboratório do Museu Lasar Segal, o
lugar onde fiz meu primeiro curso de fotografia. Depois, na faculdade, enveredei por questões
sociais e passei anos e anos da minha vida usando a fotografia para e com o meu ativismo.
Retratos da Garoupa é um livro lançado em 2010, que demorou três anos para ser realizado. É uma
ficção que nasceu da necessidade de criar o contato com o passado, fazer presente a história de vida
de meu pai, João José Moraes, morto aos 31 anos. Eu tinha apenas sete meses.
João José Moraes (conhecido pelos amigos e familiares como Moraizinho) era catarinense, natural de
Rio Negrinho, nascido em 16 de janeiro de 1949. Ele passou a primeira infância em um sítio em
Congonhas, Camboriú (SC). Aos dez, mudou para Porto Belo (SC) com a família.
Retratos da Garoupa é uma ficção, meu pai nada deixou escrito. Construí
um narrador masculino que tinha um primeiro encontro com a escrita. Também era meu primeiro encontro
como filha com meu pai e com minha escrita ficcional.
Meu pai era um homem de classe média baixa, que viveu no Brasil no final dos anos 1970 em plena
ditadura militar. Ele é personagem e narrador, e é apresentado nas imagens e no texto. A história se
desenrola entre os anos de 1978 e 1980. O livro tem 64 páginas, 20 x 20 (fechado). O narrador
comenta sobre sua vida na cidade de São Paulo, em Curitiba; contudo, suas digressões e flashbacks
remetem sempre à cidade de Porto Belo (SC).
O nome Garoupa faz alusão ao primeiro nome de Porto Belo: Enseada da Garoupa. E a Garoupa do livro é
muito mais uma cidade imaginária à qual o narrador sempre recorre ao escrever suas memórias.
Retratos da Garoupa não é um livro de literatura, apesar de haver texto;
o livro parte do fotográfico.
As lembranças que tenho de meu pai foram construídas por histórias familiares e por duas fotografias
que temos juntos: uma eu, ele e minha mãe, e a outra eu e ele. A segunda sempre foi a mais
significativa e presente todas as vezes em que falavam no nome dele. Uma foto atípica de álbum de
família. Em decorrência de um erro de paralaxe, a imagem parece cortada: apenas a mão do meu pai, e
meu corpo e membros de recém-nascida sem a cabeça. O meu pé e a mão dele estão próximos. Há uma luz
provinda do canto esquerdo da imagem e isso faz perceber que estávamos próximos a uma janela. Minha
tia materna foi a autora da fotografia e lembra que falavam dos meus pés, que seriam grandes.
Por anos, quando via fotos de pais e filhos, essa era a imagem que eu retomava. A foto era um
testemunho de que eu estive com ele, apesar de não saber muito bem como era isso (o estar com ele).
Diferente de Barthes[2], não sinto a minha inexistência nas fotografias do meu pai,
sinto a prova do afeto, um momento quase único, pois logo após houve a morte, a separação e anos de
ausência.
Ao iniciar minhas pesquisas em fotografia, reencontrei esta imagem. A fotografia, até então, tinha
sido uma ferramenta para produzir registros pessoais ocasionais e registros de trabalho. Como
ativista, eu fazia intervenções, publicações e textos, sentia a necessidade de produzir; porém, era
tudo vago, intransitivo e vinculado ao contexto dos encontros, conferências, actividades vinculadas
a uma agenda dos movimentos sociais.
A pesquisa, que culminou em Retratos da Garoupa, teve início em 2007,
quando um dia resolvi mostrar os meus álbuns de fotografia para uma amiga mexicana que estava
hospedada em minha casa. Ao ver o álbum de meu nascimento, minha amiga parou na imagem onde estamos
meu pai e eu, e me disse: “Impressionante, Fer, como essa imagem é impactante”. A frase
dela reatou o vazio, o velho fosso, tudo o que não vivi com meu pai retornou. Imediatamente,
agradeci, e repeti a ela: “De fato, impactante”. Tirei a imagem do álbum e coloquei no
mural junto a bilhetes de amor, fotos diversas, imagens do meu avô, também falecido, e outras
colheitas. Em 2008, depois de uma separação amorosa, ao retornar à casa que sempre foi minha, olhei
para o mural, era como se todas as histórias de afeto fossem a mesma.
No mesmo ano, ao fazer uma pesquisa sobre as relações de arte e ativismo, encontrei os trabalhos da
organização Hijos e, por consequência, o trabalho de Lucila Quieto sobre seu pai, Carlos Quieto,
morto pela ditadura argentina. Uma das frases de Lucila falando do próprio trabalho foi motivadora,
era assim: “Vejo o mar nos olhos do meu pai”. O trabalho dela e a frase simples
permitiram que eu compreendesse muitas possibilidades de fazer uma pesquisa em arte.
Naquele ano em que encontrei o trabalho de Lucila, resolvi passar meses em Porto Belo. Fui
fotografar e entrevistar meus tios e os amigos mais próximos do meu pai. Realizei um total de quinze
entrevistas, revi todas as cartas familiares e as fotos de álbum de família, construí uma primeira
versão do texto e recortei os fatos da vida do meu pai que considerei mais significativos. Fui aos
lugares de que meu pai gostava e busquei personagens que me fizessem lembrá-lo. Soube de histórias,
de momentos, encontrei documentos familiares nunca vistos por mim.
Mas nada daquilo significava tanto quanto a cidade. Porto Belo era o nosso ponto de encontro. Seria
como Ítaca no poema de Kavafis [3]. Para chegar a ela, devem-se enfrentar
“lestrigões” e “ciclopes”.
Porto Belo é a cidade da minha adolescência, dos carnavais, o lugar do sossego do meu pai e nosso
vínculo espacial. E, por mais que soubesse quem fora meu pai e o que tinha construído, nunca havia
aprofundado uma investigação sobre ele. Temia ser considerada vítima por ter sido órfã antes de me
reconhecer como sujeito. Por anos busquei não tocar em algumas recordações, o que causou espanto na
minha família quando iniciei as entrevistas com eles. Fui questionada por um tio: “Por que
agora, depois de quase trinta anos, quer saber de tudo isso?”.
Com a pergunta do meu tio iniciou-se o primeiro impasse e percebi que a resposta ia além do campo do
pragmatismo, da objetividade e de tudo que eu tinha feito até então. Agora eu teria que ir por outro
lugar. Falar do meu pai é, por consequência, falar de mim, da minha família e da cidade de Porto
Belo. A cidade onde vivemos no passado, tanto eu quanto meu pai, seria o lugar de encontro. E assim
começamos a caminhar.
O mais inusitado é que depois de quatro anos do lançamento de Retratos da
Garoupa, do esgotamento do livro, a única foto minha e de meu pai foi retomada em
recôncavo, meu segundo livro, que foi lançado em 2015 [4]. A foto
ocupa um lugar importante na edição de recôncavo, e aparece pequenina no meio de uma
paisagem africana que se abre para conduzir a pessoa à imagem.
recôncavo foi resultado do meu mestrado e, devido a um prêmio de livro de artista[5], consegui
publicá-lo.
Entre Retratos da Garoupa e recôncavo foi construída a minha relação com as pessoas que convidei para estarem na primeira edição da Pretexto. Todos significam algo na minha história com os livros de fotografia e, por isso, foi tão simbólico convocá-los para falarem de seus espaços e protagonismos num espaço tão especial para todos: uma publicação.
Fernanda Grigolin, 2016
in tenda de livros
http://tendadelivros.org/
Notas
[1] Fernanda Grigolin, Retratos da Garoupa. São Paulo: Iara, 2010.
[2] Roland Barthes, A câmara clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
[3] K. Kaváfis, Poemas. Tradução de José Paulo Paes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
[4] Fernanda Grigolin, recôncavo. São Paulo: Ediciones Costeñas, 2015.
[5] Proac de livro de artista de 2014. Secretaria do Estado da Cultura de São Paulo.