PINTURA / DESENHO
PORTA33 — 27.10.1992 — 20.11.1992
19.
Franqueei as áleas, a passagem entre os caules.
Que nome darão a estes bosques, à clareira súbita
se me atrevo?
Um relance de cedros, plátanos, um cântico que sobe
do cais —
é de alguém que parte, este murmúrio;
é uma vertigem de pedra isto que fere o ar, uma
ruga o que embranquece as águas.
Flores do mar,
flores da mágoa, regressai às florestas de sal.
Sois como um perfume dorido, algo que se arranca aos
campos,
as corolas que entardecem na alma, nos seus jardins.
Vagueio pelo porto e pela encosta,
enlouqueço pelas alamedas, procuro os degraus onde começa o lodo,
demoro-me —
como dizer-te, ó viajante, as horas de quem fica,
dedos nos dedos,
lábios nos lábios,
laços em que me desfaço?
Cedros, plátanos, áleas que irrompem, arcos que nos retornam à saudade,
heras em que me enredo,
uma única noite que aplacasse a ausência,
uma única noite de clara alegria,
uma única morte —
talvez.
JOSÉ AGOSTINHO BAPTISTA (Autoretrato, 1986, Assírio & Alvim)
O QUE HÁ-DE VOLTAR A PASSAR
À distância, para lá da curva da estrada, ladrou um cão. Às vezes, depois, quanto tempo depois?,
a figura de um homem parecia recortar-se na opacidade do dia. Era quase como de noite.
Aproximava-se, talvez, mas era como se estivesse imóvel, sempre caminhando, ligeiramente
inclinado para a frente, é talvez o peso de qualquer coisa que traz atravessada sobre os ombros
(uma mochila? um molho de lenha? um animal doente?).
Finquei os cotovelos na janela, a voz da minha mãe gritou qualquer coisa na cozinha, o homem,
imagino, continua a avançar com uma regularidade inquietante, a mão direita segurava um volume
(uma trouxa? um fardo? um saco de viagem?). Observava-o fixamente, cravava nele o olhar,
desejando surpreender-lhe o traço de um sobressalto, teria medo de mim?, pergunto-me, mas eu, o
que fica, o que se debruça da janela para ver quem passa, seria temível?, poderia dizer-se que
inspirava receio a alguém?.
Mais perto de mim, agora mais perto, o homem não fazia nada, apenas caminhava, era um movimento
quase mecânico, somente a figura se movia, podia não ser um homem, nem ninguém, apenas uma forma
por dentro da noite, traz no rosto uma matilha de cães indiferentes, ele aos cães, os cães, e eu
debruço-me sobre a obscuridade, gostaria de a poder afastar como uma cortina, ficar de dentro
com a mão a segurar as pregas, e a ver, lá fora, o homem que vai a passar.
Então, quando chegava mesmo em frente da janela, havia um brusco momento de pânico. Eu recuava
dois passos, metia-me para dentro, o homem passava, sem me ver, sem olhar para mim, e era essa
estranha indiferença que me apavorava, todos os dias, à mesma hora, porque todas as coisas
passam sem nos ver, e nós a elas, sabemos que estão ali e gostaríamos de as termos para nós,
evidentemente vistas, mas as coisas são alheias, tudo será apenas o rasto do que passou e a secreta esperança de que volte a passar,
para uma vez mais percebermos que não conseguimos ver o que julgamos conhecer de cor. Mesmo
vasculhando na memória, não consigo dizer se era de noite ou de dia o tempo que o homem levava a
passar. Mas é de noite que melhor imagino os seus gestos, o ladrar dos cães, o volume sobre os
ombros, o chapéu caído sobre os olhos. De noite, é quando o sonho melhor.
Com os anos, a obra de Ilda David' ganhou opacidade. Perdeu a clara transparência da linha e da
luz, empastelou-se na cor e nas massas, adensou-se como a ameaça de uma tempestade. Como uma
ameaça. É uma qualidade maior este escurecer do dia claro em que pintava, em que pintou, porque
tudo se torna assim mais visível, porque é no escuro que se pode ver melhor.
A impressionante série de desenhos que aqui se apresenta é uma das mais inquietantes viagens até
hoje ensaiadas pela pintora. Há um esforço para ver claro, para ver, mas esse esforço não se
realiza na simples representação, antes há-de resultar de um exercício aturado de decifração do
negro original, da absoluta cegueira do pintor, à qual, por decapagem, Ilda David' arranca as
formas, ou antes, as protoformas que são vestígios de alguma memória anterior que porventura a
tenha habitado. É daí lhe vem a visão.
São paisagens enganosamente nocturnas, porque o que Ilda David' parece propor é que se leia a
pintura ao contrário do mundo, de baixo para cima, isto é, do mais escuro para o mais claro. Mas
esta claridade não é luz, é apenas o que das formas podemos aperceber, alguma coisa que se move
contra um fundo indecifrável, uma quase imperceptível oscilação na paisagem imutável que é o
mundo, tal qual julgamos vê-lo. E é a esse mundo imóvel que arrancamos as figuras da nossa
imaginação.
Há dois curtos versos de Wallace Stevens que apetece murmurar: The night is of the colour / of a
woman's arm. Isto é: encobre-se. Mas des- -cobri-la, a cor de um braço de mulher, é assunto de
poetas e pintores, que procuram arrancar ao segredo o seu segredo, e dizer as formas que a noite
desenha, porque as obscurece.
A visão de Ilda David' tem tudo a ver com esta busca obsessiva de uma forma primordial que
irrompesse do breu, e que só ele nos pode revelar. E podia até perseguir todas as combinações de
negro, como aqueles pintores medievais que cultivavam a cor absoluta numa espécie de exercício
alquímico, procurando no preto de preto a pureza absoluta e fatal, a partir da qual toda a
aparição de outras cores seria ouro de revelação
e esperança.
De facto, se alguns dos desenhos de Ilda David' sugerem, à primeira vista, o resultado em Papel
da aplicação de técnicas de gravura, é porque a pintora parece trabalhar por desocultação,
sulcando na cega materialidade do suporte o oco onde nenhuma tinta pode chegar, ou,
inversamente, e se a metáfora técnica é permitida, utilizando uma espécie de sgraffito para
acentuar a esplendorosa opacidade dos seus trabalhos, raras cintilações de branco a surgir
através da camada densa de negro, que só existe para que se possa ver o que lhe está por trás.
O homem que atravessa estes desenhos de Ilda David' não regressa, assim, às trevas de onde
pareceu emergir, sugiram elas a desolação de Van Gogh ou o desespero de Munch. Não porque o seu
caminho o conduza para qualquer ponto luminoso; mas porque ele é ave nocturna, porque no escuro
o mínimo rasto de luz é uma pista, porque por dentro da noite é mais fácil ver os contornos que
o dia apagou. O homem só existe dentro do negro, e, se lhe roubarem a noite, é anjo cego, mera
silhueta a boiar na pavorosa solidão do dia.
O pintor é como o homem que há-de voltar a passar: segue por dentro da noite, para ver o que o
dia obscurece na ilusão da luz.
Novembro de 1991
ANTÓNIO MEGA FERREIRA
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