EVOCAÇÃO DE HERBERTO HELDER
Conversa com António Fournier e Diana Pimentel
moderada por Gaia Bertoneri
leitura de textos por Élvio Camacho e Paula Erra
PORTA33 SÁBADO 14 MAIO 2016 21H:30
O continente Helder

Estávamos em 1989, tinha vinte e dois anos e achava-me são de mente, ainda imune às abelhas venenosas da sua poesia. Foi durante uma aula de Teoria da Literatura que ouvi pela primeira vez o seu nome. Pensei que se tratasse de um pseudónimo, a afortunada sequência vocálica não parecia ter nada de casual. Frias Martins falou-nos de um livro com um título insólito – Photomaton & Vox – escrito por um poeta que ainda por cima era originário, como eu, da Madeira. Foi assim que descobri Herberto Helder. Aquele que me tirou a vontade de escrever versos. Lê-lo foi como se um comboio lançado a toda a velocidade tivesse passado por mim e me desse conta, com espanto, de ainda estar vivo.

Helder era já então o único mito vivo da poesia portuguesa. Invisível, misterioso, obscuro. Vivia apartado, não dava entrevistas e não se deixava fotografar. Vim a saber que frequentava um pequeno café no Bairro Alto, em Lisboa, onde conversava com amigos sobre literatura. Com um pouco de sorte era ali que alguém que não pertencesse ao seu círculo, poderia encontrá-lo. Suponho que muitos dos jovens amantes de poesia de então (anos 90) se reconhecerão neste gesto: entrava-se com o embaraço de ter de fazer de conta que se estava ali por acaso. Pedia-se uma bica e tinha-se receio de olhar para trás. Sentado a dois passos estava Herberto Helder em pessoa, no dizer de muitos o mais importante poeta português do século XX, depois de Fernando Pessoa.

Photomaton & Vox é um livro difícil, fundamentalmente indecifrável. Rosto e escrita sobrepõem-se numa espécie de autobiografia compósita que é, ao mesmo tempo, uma personalíssima arte poética. Dir-se-ia querepresenta, para citar Gastão Cruz, um desses pontos de obscura intersecção entre a vida do poeta e a vida da poesia. Eis Photomaton, a minha porta de entrada no continente Helder. Sentei-menuma cabina onde se tiravam fotos instantâneas. Fechei a cortina, premi o botão e fui fulminado: comecei a sonhar. Recordo um território alucinado e o desconcerto perante imagens destiladas em ácido puro. Recordo a queimadura de cada vez que tentava tocar a sarça ardente. Recordo a queda de cada vez que tentava trepar até ao cume de um sentido inalcançável. E recordo também a sensação de me reconhecer nalguns dos textos mais visionários, como “(uma ilha em sketches)”, que mostrava «uma ilha em forma de cão sentado, com a cabeça inclinada para perscrutar o enigma da água».

Passaram-se pouco mais de quinze anos desde que também eu fui à procura de Helder naquele café. Convidou-me a sentar à sua mesa e falou-me, no seu inconfundível sotaque madeirense, da sua própria infância. Muito haveria para dizer sobre a infância nas ilhas. Sobretudo para quem vive depois longe delas e fica para sempre «prisioneiro da passagem», como afirmou uma vez José Barrias, glosando Foucault. E na infância de Helder todos nós, madeirenses, nos reconhecemos, como recorda por sua vez José Tolentino Mendonça no conhecido poema “A infância de Herberto Helder”. A infância e a adolescência nas ilhas, um dos temas obsessivos do autor de Os passos em volta. Tratado sem nostalgia ou sentimentalismos mas como um tempo mítico em que a inocência se mede com descobertas fecundas que deixam tatuados a fogo na memória os símbolos mais indeléveis. Não terá sido por acaso que Helder escolheu para texto de abertura de Servidões, um dos seus últimos livros, a evocação do regresso à ilha, para fechar o círculo da sua vida, como se fosse o alfa e o ómega, o princípio e o fim da sua poesia.

Photomaton & Vox fornece-nos alguns indícios para compreender aquele que seria o destino de Helder, como anacoreta e xamã da poesia, entre esse alfa e esse ómega. O livro fixa um retrato em movimento de um poeta que a meio da vida, considerava ter conseguido finalmente apreender «a caligrafia extrema do mundo» num «texto apocalipticamente corporal». Longe da Europa, Helder via então a cultura ocidental como uma espécie de «moral da imaginação» que empobrecia a revelação e «restringia prudentemente a excessiva abertura da linguagem». Por isso se interessou pela magia primitiva e traduziu poesia ameríndia, inspirado nos estudos de antropologia cultural e nas colectâneas de etnopoetics organizadas por Jerome Rothenberg. Também por isso perseguiu tenazmente a suprema ambição de «ser o mais obscuro dos enigmas vivos, e aplicar as mãos à matéria-prima da terra».

Consta que esta iluminação terá sobrevindo em África, para onde seguira, como Rimbaud, em busca de novos territórios para acrescentar à sua própria mitografia («É um pouco assustador sentar-se para escrever uma NOTA PESSOAL em 1971. Estou agora em África, e torna-se mais fácil entender as coisas»). Nunca a convicção do poeta no poder das suas faculdades criativas pareceu tão lúcida e assertiva: «O autor é o criador de um símbolo heróico: a própria vida»; «o estilo é a criação da dignidade». Photomaton & Voz conta com enorme pujança esse percurso errático, feito de «imagens precárias», dispostas numa sequência aparentemente aleatória por uma potentíssima «gramática sonhadora»: «Quanto mais subtil, furtiva, secreta, desapercebida, complexa e ambígua for a montagem, mais penetrante e irrefutável será a sua força hipnótica».

Esta força hipnótica que emana da escrita herbertiana, diga-se, é irredutivelmente hostil àquele vício hermenêutico que tão bem conhecemos, de tentar desvendar a todo o custo o sentido do texto, o qual, esse sim, mata qualquer revelação e acaba por estrangular, com a presunção de explicá-la, a tal «excessiva abertura da linguagem». Por isso, relembrando as marabuntas da interpretação esfaimada ou as hordas de gafanhotos incinerados pelo sol, com que Helder escalpelizou os alegados exegetas que rondavam a poesia de Cesariny ou de Bettencourt, a última coisa que se espera que aconteça à sua obra é o que aconteceu com a de Pessoa: roída até o tutano por uma legião de especialistas agarrados cada um a uma porção da cauda do cometa para beneficiarem de um pouco do seu fulgor.

Por isso, há também que partir do mito Helder, porque o mito, se não explica (e ainda bem) a poesia, aproxima muitos leitores dela. Soube-o muito bem Tabucchi quando divulgou o mito Pessoa em Itália, usando essa estratégia para dar a conhecer a sua obra, de que foi, como se sabe, um dos maiores tradutores. Em Portugal, pelo contrário, qualquer tentativa de interceptar aquele «ponto de obscura intersecção entre a vida do poeta e a vida da poesia» ainda é considerada um atentado contra a privacidade de um autor. Parece-me tão falacioso quanto a asserção de que o texto poético está à espera da inteligência superior de um demiurgo que o desvende para uma comunidade de leitores ávidos da sua sabedoria. Photomaton & Vox, na sua irredutível indecifrabilidade, é talvez a melhor prova. Será preferível uma relação mais transitiva com o texto herbertiano, como é a do tradutor, que vai traçando o seu plano inclinado, socorrendo-se de todos os elementos à disposição, na tentativa de escalar a montanha Helder. Sabendo que há muitos outros percursos, todos eles legítimos porque todos eles falíveis.

A hipótese de leitura que aqui proponho é a de um leitor, neste caso madeirense – como imagino ser a maior parte do público que assiste a esta “Evocação de Herberto Helder” na Porta 33, no Funchal, cidade natal do autor, – que se identifica com as imagens da ilha e da infância que alimentam boa parte da sua obra. Parece-me que «perscrutar o enigma das águas» ou «mergulhar em escafandros no interior de muitas águas, para trazer as mães embrulhadas como polvos nas mãos» foi a forma particularmente original que autor encontrou a certa altura, como interpretação pessoal do mito de Orfeu, para descer até «à raiz mais fria de uma ilha» e de um tempo que sabia ter perdido para sempre. Este é o meu caminho de conhecimento no continente Helder: a busca de Euridice. Entrei há mais de vinte e cinco anos naquela cabina e continuo a procurar o «fabulosamente vazio enigma do mundo» de que a primeira leitura de Photomaton me deixou vislumbrar uma frincha. Somos muitos a procurá-lo nessa autêntica Atlântida da poesia que é o continente Helder, mas já sei que, felizmente, ninguém o há-de encontrar.

António Fournier