“O velho Dragoeiro que existia na Ponta do Garajau caiu ao mar durante uma chuvada intensa de sudeste, ocorrida no equinócio de Outono de 1982.”
A expressão que dá título a este texto é um conceito que Nuno Henrique (Funchal, 1982), que
concluiu o curso de Escultura na FBAUP, e que vive em Lisboa, onde é bolseiro da Porta33 no
Ar.Co, utiliza para descrever a instalação que mostra em 'Linha de partida". A qual é
constituída por uma selecção de espécies da flora existente na ilha da Madeira e na qual o
artista é apresentado como se fosse um explorador munido de instrumentos precisos de medição e
registo e a obra a apresentação de uma viagem, exploratória e iniciática, aos locais mais
escondidos da ilha.
O gesto a que se assiste nesta instalação é duplo: por um lado corresponde ao traçar da
fisionomia da ilha, por outro à integração desses elementos num outro universo de sentido. Um
mecanismo de construção e transposição próprio da ficção que, como se sabe, é uma arte
combinatória: usa o conhecido para dar uma forma, um nome ou uma intensidade ao que náo se
conhece.
As diferentes espécies botânicas que o artista estuda são pontos de partida para a criação de
objectos (calcos feitos de acordo com o vulgar método arqueológico) que depois de colocados na
parede transformam o espaço do museu, num gabinete naturalista: as formas e cores visíveis
documentam o mundo natural, são registos de espécies que o artista desloca para dentro do museu
e que passam a constituir o centro da atenção. Assim, os calcos (que são negativos de inscrições
dos nomes latinos das espécies botânicas) transformam cada objecto fixado na parede num achado
arqueológico, peças que reenviam para uma outra dimensão temporal e espacial.
Mas é enquanto metamorfose espacial que esta obra de Nuno Henrique atinge a sua verdadeira
dimensão. Nela percebe-se a recuperação da ligação entre arte e natureza que depois do séc. XVII
se tem vindo a desfazer. Um vínculo cada vez mais ténue e que aqui se torna intenso e audível. O
sentido desta ligação não é, como numa estética kantiana, estabelecido através da experiência da
beleza, mas é criado através do percurso (que é uma experiência afectiva) que se estabelece
entre a ilha e o visitante do museu.
O interesse do artista na flora madeirense reside não só na forma individual de cada espécie
botânica, mas no estado de receptividade e criatividade que aquele que observa a natureza tem de
possuir. Um estado no qual, diria Wittgenstein a propósito de Goethe, os pensamentos surgem tão
vivos e tão plásticos como a própria natureza e que dá origem à disposição anímica própria
daqueles que fazem poesia. Um estado disposicional que não se caracteriza pelo fazer do poema,
mas por um certo modo de sentir e intuir o mundo que se habita. E é esta disposição que tanto o
naturalista, o poeta e o artista partilham e que Nuno Henrique transporta para o museu
contemporâneo.
Nuno Crespo 2009