"DESPOLETAR" O AGIR
Implicar. Aprender. Cuidar. Incluir. — Práticas para a reinvenção da Escola e sua relação com o lugar
Escola do Porto Santo — Outubro 2022

Incluir

Por Delfim Sardo



A História da Arte é uma história de exclusões. Essas exclusões sempre aconteceram por razões várias: porque os museus (e falo de uma realidade que se reporta ao início do século XIX) foram construídos como glorificações identitárias, a partir de um discurso que assentava na defesa da excelência – a partir de parâmetros de escolha que tiveram, no seu início, um modelo de referência, uma determinada ideia de Clássico – com Winckelman – e um segundo modelo discursivo, a estética, que assentou a sua teoria da sensibilidade na ideia de Juízo.
Para complexificar, a ideia de juízo é, no seu âmago, uma ideia cidadã, porque a capacidade de juízo é inseparável da cidadania, mas também porque a produção de juízo é o que permite o estabelecimento de planos de troca, ou dito por outras palavras, do plano de intersubjetividade que estabelece o plano comunitário.

A pergunta que me parece devemos colocar, em primeiro lugar é sobre as estratégias de reparação que podem hoje ser seguidas para colmatar as distorções históricas, políticas e sociais resultantes dos processos de exclusão sem, no entanto, demitir como impossível o exercício do juízo.
A noção de inclusão é muito ampla, porque se reporta a inúmeras situações diferentes:

Em primeiro lugar, reporta-se à inclusão no campo da fruição, de todos aqueles que, em virtude de quaisquer necessidades específicas, se vêem coertados do livre exercício da fruição, seja por motivos económicos, por descriminações de qualquer tipo, por dificuldades de acesso ou outras, o que merece e deve ser alvo de ações específicas, quer técnicas, quer sociais.
Em segundo lugar, a inclusão reporta-se aos criadores que, em virtude das suas origens étnicas, sociais, económicas, de género, etárias, ou porque são portadores de necessidades específicas se vêem, ou podem ver-se, arredados dos circuitos de circulação artística.
Em terceiro lugar, pode ainda reportar-se a todos os que, por uma qualquer inadequação em relação aos circuitos institucionais de exercício do juízo crítico institucionalizado, têm particulares dificuldades em aceder a circuitos de distribuição.

Isto é, a teia de necessidades de inclusão comporta redes de dificuldades avassaladoras que, no entanto, não podem deixar de ser combatidas mas que, por outro lado, não podem também constituir em si protocolos de procedimento que configurem a atividade artística como genericamente aberta, porque a sua sobrevivência como arte depende, inescapavelmente, do exercício de processos de escolha, portanto, seletivos e concomitantemente, exclusivos. Não podem, por outro lado, ficar reféns de protocolos de necessidade discursiva, tidos como o agenciamento possível em determinados momentos históricos.

Noas últimos tempos tem vindo a ter um eco importantíssimo, quer na comunicação, quer nas políticas institucionais, uma particular atenção aos aspetos da inclusão em termos étnicos e de género. Muito menos em relação a aspetos económicos, frequentemente tomados em conta por parte do acesso dos públicos, mas muito menos em relação aos criadores.

Num artigo recente, o académico britânico Kenen Malik referia este aspeto a que tem dedicado muita atenção: a procura da diversidade nas instituições de ensino superior (e ele fala do Reino Unido) procura uma representatividade do espectro social que é, sobretudo, focada em quatro linhas, a saber, ”género, etnicidade, mobilidade social (que é o termo agora usado para substituir classe) e necessidades especiais. Mas o Reino Unido é também diverso em muitos outros termos: religião, idade, ocupação, origem regional, etc. É muito pouco provável que qualquer instituição possa representar todas estas categorias”, como aliás, parece evidente.
O que é facto, é que o termo diversidade veio a substituir o termo igualdade. Enquanto que o termo diversidade pretende situar-se no campo da representação – por vezes com ambições corretivas – o termo igualdade referia-se a um campo de possibilidade.
Não existe nenhum problema no uso do termo diversidade (como motor de inclusão), mas frequentemente esquece, como o mesmo Malik refere citando o ativista e académico afro-americano Adolph Reed que sardonicamente observou que “esta perspetiva pode levar à conclusão de que uma sociedade na qual 1% da população controla 90% dos recursos pode ser justa, desde que 12% desse 1% seja negra, 12% seja latina, 50% seja feminina e tenha as adequadas proporções de LGBTQ+.
Em suma, as políticas de diversidade não ameaçam a desigualdade, tornam-na aceitável”. Por outro lado, as políticas de diversidade, embora fundamentais na promoção da diferença, encontram-se inevitavelmente cruzadas com dois tópicos, ambos relevantes, mas oriundos de lugares da fala distintos: Paul Gilroy, o sociólogo britânico com a mais relevante voz nos estudos sobre racismo, chama a atenção para o facto de, no discurso ativista, frequentemente se instala uma fala em nome de uma hipotética comunidade entendida como um grupo homogéneo, como se existisse uma delegação fantasma da representatividade do lugar da fala, a que ele chama uma tendência Volkish– portanto identitária e tendencial (e historicamente) derivada de um eixo que une raça, povo e nação. Muito semelhante à figura do Portavoz racial de que fala Reed, permanentemente protetor de uma ficção de cultura reificada e sistematicamente atenta à apropriação.
De um outro ponto de vista, o discurso multicultural, vindo da exterioridade em relação às comunidades de fala, encontra-se balizado em função de dois termos que constituem imperativos morais, benevolentes em si mesmos e auto-fundamentados: o respeito e a tolerância. A questão é que estes dois tópicos são referidos em relação a comunidades minoritárias, tomadas como grupos homogéneos, o que corresponde a categorizações que geram ficções identitárias de grupos (por exemplo migrantes, ou étnicos), tomados como reificados: ou seja, sendo deles apagadas as subjetividades e fazendo-os corresponder a expectativas de desígnios coletivos, dos quais é expurgada a complexidade e é dada uma possibilidade de reconhecimento pela identificação com ficções identitárias, precisamente contra o que se insurgiu recentemente Achile Mbembe numa conferência em Lisboa, no pressuposto de que a putativa homogeneização de quaisquer grupos pode criar a ficção de que, no seu interior não existe diversidade, ou seja, não se geram subjetividades e interesses contraditórios.

Voltemos à questão da inclusão.
Comecei por dizer que a questão da inclusão está indissociavelmente ligada à questão da reparação, palavra com múltiplos sentidos, entre os quais a restituição, o conserto e a consequente reparação. No contexto das instituições culturais, tem sido o primeiro destes sentidos que tem sido outorgado ao termo: reparação como compensação, ou em contextos internacionais como devolução, ambas preocupações que atravessam o espectro da prática curatorial, museológica e a política cultural. Também como correção de práticas de exclusão.
A este nível, é inevitável que a inclusão implique uma boa parte destes procedimentos, nomeadamente a reparação por devolução de coleções e espólios, ou mesmo a compensação de exclusões por práticas de preocupação com os processos de Gatekeeping, tendo, no entanto em consideração que, nos museus de arte, os processos de Gatekeeping são inevitáveis e por vezes decorrentes de contingências económicas, de disponibilidades ou de campos de campos de conhecimento disponíveis. Não se trata, assim, de estabelecer quotas de representatividade que criem uma ficção de inclusão reparadora, mas de estar aberto a processos de miscigenação e de produção de múltiplas narrativas curatoriais. A inclusão deve ser sempre tomada em relação a processos criativos individuais e não tomando os artistas como porta-vozes a quem é cometida uma representatividade de grupo (este artista em nome da sua geração, da sua identidade de género, da sua etnicidade), porque não possui nunca a delegação para tal, mas porque, em si mesma, a proposta artística, na sua performatividade, consegue definir os seus transcendentais, ou seja, as suas condições de possibilidade.
Para utilizar uma outra formulação de Winnicot citado num extraordinário texto pelo nosso colega Jacinto Lageira, trata-se de compreender que os processos reparadores podem ser descritos como:

“o traço específico em que se inscrevem o jogo e a experiência cultural é o seguinte: a existência deste lugar depende da experiência de vida, não de tendências herdadas...ligam o passado, o presente e o futuro; ocupam o espaço e o tempo...sem que por isso entre aí este caráter deliberado próprio das nossas tentativas e erros”

Trata-se, assim, de conceber a reparação através de zonas entre a nossa memória social e coletiva, na produção de objetos mestiços (objetos entendidos na sua primeira aceção, mas também como estratégias curatoriais, dispositivos de instalação, narrativas heterotópicas e heterónomas), sabendo, como diz Lageira, que cada objeto, neste amplo sentido, ocupa um espaço-tempo que, ele também de conflito e espacial e temporal. Como é fácil de compreender, a noção de inclusão para que nos encaminhamos afasta-se de qualquer ideia de representatividade, embora lhe seja inerente o campo negocial da diferença – em oposição a qualquer paixão pela mesmidade, mesmo que no contexto da diversidade, até porque a História só pela História pode ser reparada, até porque a reparação da História pela Arte é, como ainda diz Lageira, “uma contribuição certamente frágil e efémera”, não podendo a reparação esconder nada do que repara.

Podemos reenquadrar também a questão da inclusão sob o guarda-chuva conceptual da Hospitalidade, essa disponibilidade radical e incondicional de que falava Derrida, claramente uma necessidade afetiva num espaço habitado por preceitos, conceitos e afetos diferentes. Num texto de 2017 sobra a Hospitalidade, o filósofo João Maria André estabelece 3 campos inerentes à hospitalidade e ao seu exercício: a construção de uma hermenêutica e uma epistemologia do diálogo, uma antropologia da vulnerabilidade e do diálogo e uma ética do cuidado.
A primeira implica uma antropofagia da diferença e do outro, ou seja, a sua incorporação numa dialógica da relação; a segunda parte do princípio da inescapável diferença, opondo-se à identidade “que encontra a sua metáfora privilegiada na esfera indistinta da coincidência: é monocêntrica nas suas manifestações e, por isso, cria distâncias em relação ao estranho ou ao estrangeiro pela paixão da replicação de si próprio. A identidade é xenófoba, a alteridade é xenófila.” Este pensamento sobre uma antropologia da falta e da finitude é, por isso, também da vulnerabilidade, o que acarreta uma ética do cuidado, ou seja, de estar em permanente atenção face ao o destinatário.
Parece-me, portanto, que a inclusão só faz sentido dentro destes parâmetros: a reparação presente na geração de objetos e dispositivos culturais mestiços e a hospitalidade que realiza um cuidado com o outro, tido como um interlocutor que, como nós, transporta uma ferida.
Finalmente, a questão que levantei de início: como se pode entender, neste campo minado, o exercício do juízo inerente à curadoria?
A prática curatorial não se limita, mas é decorrente de um pensamento crítico. Ora crítica deriva do grego Krinein, que significa diferenciar e distinguir. Ora o ato de julgar é, precisamente, o livre exercício da capacidade de distinguir, situando-se, neste caso, dentro do plano do sensível – o qual evidentemente, não exclui a racionalidade. Fora de uma qualquer utopia da autonomia absoluta do estético, ou seja, do plano da sensibilidade, o juízo cruza-se necessariamente com as questões do mundo (do socio-politico, por exemplo), exercendo-se, ele mesmo de uma forma mestiça (para voltarmos ao termo usado anteriormente) porque os seus transcendentais se situam frequentemente fora de si.

Os processos curatoriais, na sua função mediacional, tratam das condições de possibilidade da existência das obras de arte em situação de disponibilização pública e exercem- se a partir de noções, frequentemente não explícitas (mas sempre patentes) sobre o que faz espoletar uma exposição, mas também sobre as políticas da apresentação da arte.
A curadoria é, portanto, uma actividade que se baliza pela construção de possibilidades de performar o artístico a partir de um acontecimento que performa, também, o espectador. Claro que o século XX foi o momento (e os poucos anos deste século XXI, já agora) no qual o estuto do espectador, teorizado no dealbar da crítica em Diderot, sofreu mais alterações, sendo sistematicamente chamado a performar-se de diversas formas, ou mesmo a diluir-se numa partilha de responsabilidade, quer a título individual, quer como ficção colectiva. Nesse sentido, a curadoria, numa relação intima com os processos criativos dos artistas, veio a reconfigurar-se como uma actividade votada a este processo de permanente reformulação da receção, assumindo uma interna dimensão crítica.
Claro que esta transformação não substitui a crítica, porque o espaço de produção discursiva sobre as obras de arte se manteve, embora com alterações substanciais no entendimento do processo judicativo, que passou de um discurso ancorado em Kant, prescritivo e autocrático, para um discurso interpretativo sucessivamente enformado pela psicanálise, pela antropologia, pela sociologia, pela teoria política, pelos estudos de género ou por aquilo a que dantes se chamava filosofia. E dentro de cada um destes campos de saber, por inúmeros posicionamentos teóricos, frequentemente declarados, outras vezes meramente latentes.
Recuperando uma ideia de Bruno Latour, a crítica, que sempre se afirmou como possibilidade de cisão, de estabelecimento de fronteiras (entre o belo e o feio, o certo e o errado, o interessante e o desinteressante, o avançado e o retrógrado), necessita agora de se estabelecer a partir de procedimentos retóricos e argumentativos que necessitam de ser tomados como protocolos temporários de discurso, produzindo conexões, efectuando suturas ou testando inferências. Talvez por isso, o destino da crítica judicativa moderna parece ser o de se transformar em ensaio compreensivo. Para isso, no entanto, necessita de abdicar da compulsão interpretativa — da ideia de que existe um para-lá —, para se dedicar a tentativas e erros de aproximação aos processos de representação inerentes aos processos artísticos. O seu processo metodológico, assim, reside no uso da palavra, no discurso (que se testa a si mesmo e que reinventa possibilidades judicativas) a que agora é exigido capacidade de contextualização, ou seja, de produção das suas condições de receção. Claro que se pode afirmar que essas exigências já se encontravam presentes na maior parte dos grandes textos críticos da modernidade (em Baudelaire, em Apollinaire, em Karl Krauss, em Clement Greenberg, em Harold Rosenberg e nas extraordinárias páginas de tantos outros). E é exactamente por isso que a prática crítica continua a reverberar sentidos divergentes e a não se poder converter numa negociação em torno das circunstâncias de receção, porque ainda é válida a possibilidade de renovar protocolos, mesmo que temporários e históricos, para o exercício de processos judicativos. Por fim, a tipologia do discurso crítico é Nacheinander (uma linha a seguir à outra, um argumento após o outro), enquanto que a curadoria é Nebeneinander (uma coisa ao lado da outra e, acrescentamos, uma pessoa ao lado de outra e uma pessoa ao lado de uma coisa), como Stephen Dedalus poderia ter dito numa segunda inferência a partir dos seus passos no cascalho da praia, se alguma vez esta menor questão lhe tivesse atravessado e espirito.
E, nesse sentido, a inclusão necessita da crítica e da curadoria, como formas diversas e fecundas do exercício do juízo, pois só o que incluído a partir de parâmetros que são explicitados e testados, pode reivindicar a força política do seu poder.

Delfim Sardo