Movimento infinito
JOANA PUPO E LUÍSA SPINOLA

para um ritual de observação com o corpo

Olhar em volta. A natureza invocada aqui pela Manon Harrois é que tipo de natureza? Sobressai o olhar da Manon sobre a natureza. Uma questão enorme: mas afinal como é que a natureza vê a obra da Manon? Comment la nature elle-même regarde l’oeuvre de Manon? Receita para um ritual de empoderamento, um ritual para sentir como sentem as plantas, os animais.

Um. Pó de talco sobre a pele. (O gesto da Manon.) Pintar um sinal, um ponto, nos pés e nas mãos, com uma tinta especial. Um risco, muito pessoal, que sai deste ponto: cada um decide onde, no corpo, termina este risco. Todos fazemos. Uma regra: não tocar nesta tinta com a ponta dos dedos. Vamos dando espessura ao ponto e ao traço - tem que ter espessura - enquanto esperamos por todos. “Vocês têm os relógios, nós temos o tempo.” (O som é Awakening, do album Koan, do percussionista Tyshawn Sorey.)

Dois. Estamos em círculo, em pé, estamos prontos. A partir da sensação da tinta, nas mãos e nos pés, sente o teu corpo muito leve agora mesmo. Uma dança da leveza. Pés e mãos, que sobem e fogem pelo espaço, levam-te a ver estas peças com um corpo da leveza. Também a coluna está leve. Pensa nos animais do ar. Insectos, pássaros. Podes ser o animal do ar que tu quiseres, a visitar de novo estas peças. A ver de cima. Ou como animais do ar que voam junto ao chão. Às vezes uma parte do corpo fica mais leve, o nariz, um joelho. Podes mudar de animal do ar. Experimenta. Podes mudar mais. Voltamos a círculo. Já estamos noutro lugar, porque a viagem já começou. Agora afastamos os pés e damos peso à bacia, ela desce, os joelhos dobram. Com a mão esquerda vamos trazer energia do planeta e guardar no nosso centro, junto ao umbigo. Com a mão direita, envia para o ar acima da cabeça. Mais uma vez.

Sobe os dois braços e junta os pés debaixo do centro, estica-te muito e agora, atenção, bem lento, vamos mergulhar!

Três. A ponta dos dedos das mãos e a ponta dos dedos dos pés ficam no chão. Apoia bem o peso nas pontinhas e desce os joelhos, sem tocar o chão. Sente a força, o empoderamento das 4 patas e vamos caminhar um pouco. Para a frente. Para trás. Para o lado. Ver de novo estas peças como os animais da terra. Agora deixamos os joelhos no chão e sentimos a elegância das 6 patas. Tudo é elegante, os braços, as pernas, o tronco, a cabeça. Observa este mundo da Manon, com toda a elegância. Olhamos uns para os outros. Agora vamos juntar a nossa barriga ao chão e observar. Como vêm os animais que rastejam? Vêm junto ao chão? Sobem a cabeça e o tronco? Como de deslocam para ir ver? (Lembro a peça da Manon, num outro catálogo, que, em latex, traça uma árvore, desde a linha em que a árvore toca o chão. Como é ver as peças da Manon desde essa linha?) Quatro. Vamos virar as nossas costas para o chão. Ficamos deitados, de barriga para cima. Como vês deste lugar? (Começa a ouvir-se um som de insectos e animais, da natureza, à noite.) Agora somos plantas. Os insectos e outros animais passam por nós. Como vêm estas plantas, quando estão a nascer? Traz os joelhos e as mãos junto ao tronco. Como a coisa mais pequenina que podes ser. Um bolbo. Uma semente. Vamos esticar as pernas e os braços para o sol, como partes de uma planta, mesmo a cabeça... e recolher. Agora, uma de cada vez, como partes de uma planta, que vão crescendo, cresce, cresce e recolhe tudo. (Começa um som de tambores africanos: Didier Malherbe, álbum Zeff, Drole de Zeff.) Vai começar uma dança, desta planta, cada um ao seu ritmo. Deixa crescer até chegares mesmo a ficar muito alta, o mais alto que conseguires. (O movimento desta dança a falar no espaço. Tantos corpos!) Quando chegares o mais alto que conseguires – talvez uma parte, um tronco, uma flor, chega mais alto que o resto - continua a girar atrás do sol. E agora o pólen. Poliniza tudo. Poliniza estas peças da Manon, poliniza os companheiros ao teu lado, os que estão longe de ti. Envia pólen em todas as direções. Recolhe os braços junto à cabeça. Somos pólen. Gira, gira, com o vento, gira mais. Sente o vento a levar-te, sente o impulso do vento a deslocar-te para outro lugar.

Cinco. Uma paragem. Som de flauta. (Goro Yamaguchi a tocar Sokako Reibo, no álbum do Voyager Golden Record.) De novo no círculo. Estão bem? Abrimos os braços e esticamos o círculo até tocarmos só com as pontinhas dos dedos, uns nos outros. Como um segredo: uma senhora disse-me esta semana, que no Porto Santo havia dragoeiros tão grandes que era preciso mais de 10 homens para os abraçar. Estamos a abraçar o dragoeiro. Sente mesmo o dragoeiro a tocar os teus braços, a tua cara, a barriga e os joelhos... Sete. Relaxamos. Já somos seres mágicos. Seguimos a flauta como seres mágicos. Sem barulho nos pés, nem na língua, mas velozes. Subimos as escadas. Chegamos ao reino da Sara Bichão, ou melhor, do golfinho, onde já circulamos no nosso modo muito especial, capazes de olhar de baixo, de cima, de trás e de frente. Agora, juntamos a este corpo “o olhar vazio e terno” de Fénix, o golfinho verde.

Novo um. Paragem. Olhar em volta de novo. Estas formas. Como a Sara brinca com as formas da natureza para fazer novas formas. Vamos ler estas formas com o corpo. É preciso parar para ler a forma. Congelar o corpo por fora e ficar só a sentir, por dentro, com o “olhar terno”. Onde poisa o olhar quando paro? (Uma música para esta experiência: Reflections on Meditation da Vienna Art Orchestra, no álbum The Minimalism of Erik Satie.) Experimentar esperar que todo o grupo pare a cada forma nova e, quando todos estamos parados, recomeçar a procura de uma nova forma. (Deambulo pelo espaço, entre os corpos, e noto que o golfinho da Sara é como a Gioconda, muda de emoção, dependendo do lugar de onde o vejo.)

Novo dois. Em pares, fazemos um jogo de formas e movimento. Só pode mexer um de cada vez e tem sempre de estar um a mover. No espaço. Lançar uma informação clara com o corpo: a paragem ou o movimento. Depois o mesmo jogo, a tocar sempre o outro com uma mão,os movimentos continuam a ser claros, mas têm que ter em conta a paragem do outro.

Fim: só mais uma palavra para infinito

Por Susana de Figueiredo


O que dizer, agora, da inevitável inclinação sobre o fim? E como poderemos escrevê-lo sobre a pele tão quente do infinito? Sabíamos, desde o princípio, que Cloriphilia resistiria, ternamente, embutida num lugar-tempo, corpo, depois do fim. Cinco meses correram desde a inauguração da exposição de Manon Harrois e Sara Bichão, artistas plásticas que, em diálogo com Maria João Mayer Branco, professora de Estética no Departamento de Filosofia da Universidade Nova de Lisboa, criam, a partir de uma residência artística na Porta 33, uma instalação que se distribui pelos dois pisos da casa e nos convoca para uma espécie de tremor inaugural que se move em direção à origem e nos despe diante da (in)finitude das coisas e de nós mesmos. Ao longo destes últimos meses, Manon e Sara conduziram-nos através das dimensões vegetal, animal e humana, tempo e espaço, revelando-nos como se cruzam estas peles, fúrias e delicadezas, num movimento circular, tão belo quanto violento, que não cessa jamais. Naqueles que serão os derradeiros dias de Clorophilia na Porta 33, abrir-se-á uma outra passagem para o infinito, uma outra pele a tornar o fim impossibilidade. Joana Pupo pega na ponta deste fio para continuar a tecer o "movimento infinito que está dentro da paragem dos nossos corpos"; quem o diz é a própria, a propósito das quatro oficinas que irá orientar na Porta 33, durante a semana de encerramento da exposição, nos próximos dias 25, 26 e 29 de maio. Abertas ao público mediante inscrição gratuita, estas sessões partem do território de Clorophilia, que serve de inspiração a Joana Pupo, para encetar uma experiência afetiva e corpórea, num mundo de insuficiência(s) que carece, cada vez mais, de um pensamento e sentimento de comunhão do ser humano com tudo aquilo que rodeia, ou melhor, que com ele irremediavelmente se interseta; pois enquanto o cerco fecha, o círculo une. Dizendo-se tocada pelas ideias de "infinito, circularidade e quietude", Joana propõe um exercício de observação sobre "o movimento que existe em tudo, mesmo sem fazermos nada (...) o movimento infinito que existe, sem esforço, quando simplesmente reagimos ao mundo à nossa volta, com as nossas sensações, o que nos liga a tudo o que está aí." O desafio, explica, passa por "investigar a inércia" para perceber como, "sem querer, todo o movimento vai desenhando e redesenhando o espaço que habitamos". Na despedida, "fim" é só mais uma palavra para infinito, ou não fosse tudo isto um imperecível renascimento; ou não fosse um corpo, também, e talvez sobretudo, a sua própria morte. Agora como no princípio.

MOVIMENTO INFINITO
por Joana Pupo (com Luísa Spínola)

Atelier de movimento, sensação e filosofia

PORTA33

TERÇA 25 MAIO 18h — 19h30
(para jovens e adultos)

QUARTA 26 MAIO 18h — 19h30
(para jovens e adultos)

SÁBADO 29 MAIO 11h — 12h30 | 15h — 16h:30
(para crianças a partir dos 6 anos)


Inspirada pela exposição Clorophilia, presente na PORTA33, fiquei tocada pelas ideias de “infinito, circularidade e quietude”. Venho propor observarmos o movimento que existe em tudo, mesmo sem fazermos nada. O movimento infinito que está dentro da paragem dos nossos corpos. O movimento infinito que existe, sem esforço, quando simplesmente reagimos ao mundo à nossa volta, com as nossas sensações, e que nos liga a tudo o que está aí. Gostaria que investigássemos a “inércia” e que víssemos como, sem querer, todo o movimento vai desenhando e redesenhando o espaço que habitamos.

JOANA PUPO
Mestre em Teatro/Movimento, pela ESTC/IPL (2011) e Licenciada em Filosofia FCSH/UNL (2007). Escreve a tese “o actor, o corpo e o sentido” com orientação de José Gil. Ecole dês Maîtres (2005). Formação do Ator no Estúdio Nancy-Tuñon, Barcelona (2002). Segue as metodologias de teatro físico “Suzuki e Viewpoints”, com a SITI Company, de Anne Bogart, NY, desde 2010. Esteve, em 2019, no Japão com a SCOT (Suzuki Company of Toga). Trabalha com várias companhias em Portugal, Itália e Espanha e tem um percurso como actriz, criadora e investigadora do movimento aplicado à criação e à pedagogia. Atualmente, tem em cena peças com Marina Nabais Dança e Ritual de Domingo/Sónia Barbosa. Está a encenar “Uma Peça Feliz e Directa Sobre a Tristeza” com a Companhia Caótica. Em 2020, cria a companhia Mente de Cão, com a qual estreará “A Gravidade de Um Pássaro”, uma peça a partir de histórias reais de migração, em Setembro de 2021.

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