A FAZER: ELEMENTOS DA ARTE CONTEMPORÂNEA
Ana Godinho
A arte dita contemporânea, podemos dizê-lo de imediato, para lá da sua legitimação ou da sua crítica, da incompreensão ou de todas as razões que se podem aduzir, é um acontecimento. Fora do tempo e simultaneamente nele é, de certa maneira, paradoxal.
Será o nosso contemporâneo um tempo problemático que funciona como indutor de forças favoráveis ao pensamento e à criação? Há, em todo o caso, uma especificidade deste tempo coevo, que ainda assim não elimina a estranheza, um certo sem lugar em todos os lugares do planeta.
Podemos pensar que todos os presentes passados foram contemporâneos. Mas, de forma singular, da circunstância deste tempo sai uma arte que tem o seu nome já inscrito e diz-se: arte contemporânea.
Mesmo indefinível, com ar de qualquer coisa que não chega a ser, sendo outra, numa espécie de consistência inconsistente, esta contemporaneidade porosa, que faz uma certa arte, admite muitas possibilidades de tempos actuais e virtuais, de espaços sem coordenadas fixas, escalas múltiplas, acelerações e lentidões inabituais, experiências díspares. Entra pela vida quotidiana, já lá estando, com todos os meios e materiais, coexiste para lá dos tempos e dos espaços. Traça linhas, sem passado, sem presente e sem futuro, aparentemente sem contexto, com um material complexo que não se encontra numa “coisa qualquer”.
Gostaria de falar sobre alguns aspectos do trabalho artístico. Para aí chegar, pode perguntar-se: o que é que mudou com a e na arte contemporânea? O que é que a linguagem dela ainda não diz que precisa ser dito? Que perplexidades são essas que nos deixam diante de uma arte ou de uma obra e nos obrigam a parar e fazem nascer um embaraço, um desconforto, uma espécie de indiferença ou insensibilidade, às vezes mesmo, uma impossibilidade maior de aplicar categorias e critérios que antes funcionavam e agora já não. Ou ainda, por essa mesma impossibilidade, continuar a julgar e a criticar sabendo da inconsistência ou da vulnerabilidade do que está a acontecer: dizer que uma coisa é bela quando já não é isso que ali está em jogo, porque é outra coisa, talvez indefinível; ou não poder dizer que é bela, sentindo-o de outra maneira, apesar de tudo. Mas dizer o quê do indefinível?
Claramente, hoje não se aplicam os princípios e os critérios que antes se aplicavam, pelo menos à primeira vista: “verdadeiramente, o desconcerto criteriológico parece tão mais forte quanto está doravante inscrito no próprio coração da definição do domínio: […] a diversidade das obras e a disparidade das experiências que elas suscitam constituíram a definição paradoxal de uma arte “des-definida”, para retomar o termo de Rosenberg. Se nós não temos mais nada a ver com uma experiência estética coerente mas com uma pluralidade de experiências, quais podem ser na verdade as condições do juízo estético? Como julgar a arte quando já não estamos certos da sua definição?”
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Não obstante, parece que continuamos a olhar para as obras com critérios que podem ser: o do conhecimento que vem da história de arte e se reflecte em tal ou tal obra, o grau de pesquisa e crítica, o comprometimento do artista com o seu “fazer”, a longevidade na apreciação da obra, o mercado da arte, o “ar” dos tempos, o desejo de encontrar qualquer coisa diferente e única ou de viver uma experiência singular.
Na arte contemporânea pode pensar-se que não faz sentido falar de movimentos ou correntes. O próprio estilo será um anacronismo. Cria-se com todos os materiais, trabalha-se em, e com todas as disciplinas. Partiram-se os elos e as conexões dos objectos uns com os outros. Que arte contemporânea é esta?
Aparentemente ou realmente caótica, pluralista, híbrida ou polivalente, não parte de nenhum ponto comum determinado, parecendo começar sempre pelo meio, desenvolve-se para parte incerta, em múltiplas direcções que não coincidem necessariamente.
Procuramos algumas características pregnantes, comuns a tanta heterogeneidade. Começamos com elementos dispersos: o quotidiano, a matéria ou os materiais, os artistas, os objectos, as origens e os legados.
O quotidiano banal mistura a arte e a vida. O mais próximo na rotina de todos os dias parece estar aqui demasiado perto, demasiado envolvido. É nele mesmo que se baralham as referências que já não temos, a quantidade e a qualidade misturam-se num meandro impensável, e constantemente fazemos um exercício impossível, tentamos tomar distância para viver outra vida e entender esta arte. Uma parte da nossa vida, na relação com o quotidiano repetitivo, mecânico e caótico, procura separar-se deslocando-se para irromper na sua novidade máxima. Mas como fazer distância desse tão próximo? Como tornar próximo o que não sabemos onde está? Ou, aproximarmo-nos do que nos já é tão próximo sem pôr a vida em risco? A arte contemporânea é talvez um meio privilegiado de nos unirmos e separarmos ao mesmo tempo, fazendo ressoar os extremos até ao intolerável contraditório, ambíguo ou ambivalente. A vida quotidiana enxerta-se inevitavelmente nela.
A matéria - as obras, os objectos, expõem-se numa matéria feita de materiais “assistidos” (no sentido do ready-made assistido, quer dizer, sempre construídos ou refeitos pelo homem que os vive, como por exemplo, Pencil shaving de Tom Friedman, 1992). Materiais que se deslocam e transportam para qualquer lugar. Que matéria é essa?
Viva e singular à sua maneira, todo o material pode ser aqui essa matéria. Ela, vinda de todos os espaços e de todos os tempos, abre um espaço de tensão entre todos os tempos e espaços. Sujeita aos procedimentos mais violentos, às técnicas mais demolidoras, resiste porque é sempre recuperável. As suas forças são inesgotáveis. E não deixamos de procurar singularidades nela. Misturando e enxertando a arte na vida (e a vida na arte) deixamos que as próprias matérias e materiais se misturem e proliferem. As matérias vivem e alimentam-se do equívoco.
Matéria estranha, coexiste nos materiais quotidianos (todos, da pastilha elástica, pasta de dentes, sabão, aspirina, até aos pêlos e ao lixo ), é feita deles, sempre prestes a entrar e a sair do caos imprevisível e a aparecer-nos, às vezes light, efémera, sem qualidades, outras vezes, acrítica, absurda, visceral, intolerável, e a deixar-nos perplexos, incapazes de a captar, compreender, medir ou comparar. Levada ao extremo, numa escala grotesca, num mau gosto e decadência insuportáveis ou numa imperceptibilidade extrema, que quase poderíamos considerar bela. Uma desterritorialização sem fim, quebra as formas, desloca e decompõe, dissocia os materiais. As matérias tornam-se sofisticadas, desmaterializam-se. Esta matéria é a vida orgânica e a “vida inorgânica” como diria Deleuze. Tudo o que existe pode tornar-se potencialmente material artístico, hoje.
A arte contemporânea que trabalha nas bordas do sentido, nos extremos, encontra uma matéria vital, no presente e no espaço quotidiano, social e político, nos corpos, na Terra, nas paisagens, no cosmos, nos restos ínfimos banais ou insignificantes. Parece, pois, ter encontrado uma forma de dar uma nova presença objectal aos objectos.
Os artistas, chamemos-lhes polivalentes, são neles mesmos uma mistura, já não são de um só tipo, de uma só arte (tornaram-se plásticos, não pintores ou escultores, ou escritores... mas poderão ser poetas e técnicos, fotógrafos, produtores e músicos e muitas coisas ao mesmo tempo), são artistas de uma arte de múltiplas faces: imagens, escritas, fotografia, vozes, movimentos, performance, objectos todos, nada e quase nada, misturas e um informe a bifurcar sem cessar. Não apagam a diferença de natureza mas instalam-se numa diferença contemporânea. “Bifurcam e não cessam de bifurcar. São génios híbridos, que não apagam a diferença de natureza, nem a suprem, mas, pelo contrário, utilizam todos os recursos do seu «atletismo» para se instalarem nessa mesma diferença, acrobatas esquartejados num perpétuo esforço supremo"
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O artista é outro ou outros nesta arte sem sentido fixo, a cada instante instável, efémera, o artista é muitos e aparece de uma outra maneira, talvez nova. Desterritorializado desliza em planos heterogéneos e parece dissolver-se como se dissolvem as matérias com que trabalha.
E mesmo mais: dissolve-se no seu métier, no seu grupo de assistentes, na vida, torna-se ele mesmo o staff e o crítico e faz muitas outras coisas, ensina, obtém diplomas em ciências e humanidades, torna-se investigador, produtor, organiza e divulga os seus objectos, os procedimentos e as técnicas, torna-se especialista informático, cientista, está totalmente misturado na vida. Dissolve-se, já não é o mesmo, atravessa e é atravessado por outros.
E neste imenso caos, caos infinito, os artistas “navegam” e dele arrancam as matérias vitais e necessárias para as suas produções e para a sua própria dissolução: “dissolvo-me até ao infinito”, diz Kiefer (numa entrevista em 2007, a propósito da exposição no Grand Palais, Paris, in
Artpress, 334, p.32). Submersos por informação, comunicação e conhecimento, por uma diversidade e variedade que vai a uma velocidade impossível de conter, relativizam-se. A proliferação torna-se rizomática, os arquivos quase infinitos. As condições inéditas de durabilidade e expansão simultaneamente efémeras, demasiado circunscritas e prestes a cada momento a desmoronarem-se dissolvem o artista e o espectador. Parece que não podemos mais assimilar o que é produzido mundialmente.
Nesta dissolução fazem-se percursos pessoais, desterritorializados, na imperceptibilidade e invisibilidade ou na máxima exposição e mediatização. Persiste ainda um elemento irredutível, de que não se dá conta, se não já o “génio”, então um acaso ou um caos, e é ele que parece fazer o acontecimento que é a arte contemporânea. Os artistas encontram ainda lugares absolutamente novos de cada vez. Dissolvido o artista, o que pode então aparecer com as matérias e os materiais?
Objectos - novos eventos sonoros, visuais, tácteis, conceptuais, fluxos, vestígios de coisas, ideias de objectos, corpos estranhos, máquinas, objectos- trajectos, ready-mades deformados, transformados, metáforas de ready-made retornadas agora, vindas de nenhum espaço-tempo a ocupar o espaço inteiro, a deslizar e a proliferar, a expandir-se numa escala até o próprio excesso já não poder mais. Confusões, misturas, híbridos, mínimas transparências até ao desaparecimento. Objectos esquizofrénicos a aparecerem nos limites. A saírem por todos os poros, objectos-corpos, objectos ausentes, fendidos, amalgamados, isolados, desaparecidos. Já não só descontextualizados, mas sem lugar num outro espaço, algures, nunca bem dentro do seu próprio corpo, mal na sua pele, tornados inquietantes “contentores de vida” onde pode nascer erva, “criaturas” que nos afectam, atingem e nos tornam vulneráveis, prestes a ser apanhados, à queima roupa.
Objectos como os de Ron Mueck. Por exemplo, em
Two Women,2005: dois corpos no espaço, em escala reduzida, detalhe máximo. Dois corpos próximos, isolados em si mesmos, de braços cruzados, fechados sobre si, como qualquer um de nós quando cruza os braços. Juntas e simultaneamente separadas, ausentes, numa solidão quase comovente, com uma espécie de tristeza vinda do fundo dos olhos, um vazio vindo do mesmo sítio. O olhar parado, para dentro, também ausente, desconcertante. Duas mulheres num não encontro, dois corpos que não se aproximam jamais, isolados, afastados na estranheza que os cobre inteiramente como uma película transparente. Quase podiam ser reais, quase se podiam confundir com pessoas.
Ausentes como os seus olhares e por momentos, num instante, numa cumplicidade de uma não ligação que as atravessa, o nosso olhar cruza-se. O nosso olhar também ausente e parado. Qualquer coisa (de não humano) da humanidade inteira converge ali.
Dissolvido o artista,
como se nenhum plano se pudesse mais definir e todos os objectos se pusessem a circular e a aparecer. A vida é então a vida dos objectos sem artista. São os objectos ou a ideia deles que vem de forma acelerada para a vida que resta. E a vida mais do que ligar-se à arte confunde-se com ela, e pode ser força favorável à criação. Os objectos ganham vida e desmultiplicam-se ao infinito, viajam, deslocam-se, têm energia própria. O espaço inteiro da vida é preenchido, em todas as escalas, na maior velocidade, os extremos da violência e da serenidade tocam-se, um formigueiro de inquietações e estranhezas abalam o quotidiano. Estão aí por todo o lado e fazem a arte contemporânea. Quase incaptável, desdobra-se infinitamente até deixar de o ser.
Retomemos Ron Mueck, as suas figuras humanas, os seus corpos, mesmo em escala monumental são tão vivos que se confundem com os corpos vivos. Inquietante estranheza que irrompe desse limiar infra-fino entre o humano colossal e os nossos corpos medianos. É aliás, nessa fronteira que trabalham muitos artistas e a arte contemporânea em geral. Inquietante estranheza das duas mulheres velhinhas, que nos olham a nós, supostos espectadores que devíamos olhá-las e contemplá-las como esculturas. Acabamos por ser nós os olhados. Olhados por aqueles outros seres e pelos humanos vivos que no mesmo espaço nos olham por se sentirem também olhados. Na fronteira entre o masculino e o feminino, o humano e o não humano, entre o olhar e o ser olhado, entre a escala do quase médio e do médio normal um indefinível não deixa de avançar.
As origens e os legados: porque haveríamos de voltar a Duchamp?
Para tentar compreender a razão da sua presença constante, quer no trabalho dos artistas contemporâneos como em inúmeros ensaios, textos de e sobre arte contemporânea. Duchamp aparece como referência incontornável. Citado, retomado, representado, vezes sem conta. Os seus objectos estão em todo o lado. Há, ainda hoje, em Duchamp uma novidade irrecusável.
Numa selecção não sistemática (dada a extensão da bibliografia e a sua diversidade) e para dar conta desta importância por demais conhecida referiremos alguns exemplos:
Jimenez: “Dada e Duchamp resistem às tentativas de extermínio e reaparecem aí mesmo onde não os esperamos”
e um pouco mais adiante: “Duchamp morre em 1968. Durante 2 anos os seus ready-mades foram reconstituídos e as cópias circulam, algumas estão assinadas. Raros foram os movimentos, as correntes, ou simples tendências que puderam escapar à influência daquele que André Breton chamava, não sem admiração «o grande perturbador».
A herança parece inesgotável e a ressonância do ready-made, segundo a expressão pertinente de Thierry de Duve, faz-se entender de forma durável, de tal modo que a arte dita «contemporânea» não acabou nunca de explorar a galáxia duchampiana.”
Ou Didi-Huberman que no seu livro
La Ressemblance par Contact, a propósito do problema da definição da noção de situação actual, afirma: “«partir da situação actual», não é somente dar conta do estado de uma certa ordem do discurso. É também confrontar esta ordem do discurso com os objectos que ele pretende tratar. Ora, há um que funciona, de todos os pontos de vista, como um operador comum, de um lugar cardinal para onde convergem as principais linhas de tensão. Trata-se do trabalho de Marcel Duchamp : ainda mais comentado, ainda mais utilizado que o texto benjaminiano sobre a reprodutibilidade técnica da obra de arte”
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Ainda, Michaud: “o génio de Duchamp foi o de introduzir com os ready-mades, com esses objectos já feitos, completamente feitos ou prestes a serem usados, estratégias de produção que operam sobre todos os factores constitutivos da arte (autor, modo de exposição, público, objecto) até transformar, no fim de uma série de acções e de acontecimentos, uma coisa qualquer mas maduramente escolhida numa obra que era também uma não-obra”
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Enfim, em 2008 a
Art & Today dedica num grande volume sobre arte contemporânea todo um capítulo a Duchamp. Pretendendo o livro mostrar o dilema de que não se sai: como é possível ter uma visão da arte contemporânea numa época de um aparente pluralismo anárquico? Examina-se o impacto revolucionário de Duchamp, cujos ready-mades desafiaram a definição de arte como uma espécie de objecto distinto da vida quotidiana, e salienta-se a extensão da sua influência que vem até hoje.
Porquê então Duchamp?
Já vimos, há nele uma novidade máxima, uma resistência ao tempo e no tempo, os seus objectos inevitavelmente trazem um “coeficiente” de inesgotabilidade, ressoam, duram, têm um potencial desconhecido de transformação e de devir.
Concentremo-nos num ponto complexo:
O impacto de Duchamp vem de certa maneira do ready-made. Talvez seja certo, estes não-objectos mudaram mesmo uma certa definição de arte. Se os objectos de arte eram distintos da vida quotidiana deixaram com Duchamp de ter fronteiras tão nítidas. Foram mesmo virados do avesso, saíram do seu centro e adquiriram uma energia e movimento que antes não tinham, a vida e a arte pareciam formar um só plano.
Os ready-made verdadeiros, segundo Duchamp, deviam conservar certas características: nem belos, nem feios, nada neles de “particularmente estético”. A sua escolha não foi para resultar num prazer estético, a estética seria mesmo “queimada”. Pretendia-se uma indiferença visual e uma ausência de bom ou mau gosto. Uma anestesia completa. Essa era a condição essencial para se poder escolher. Duchamp não escolhia um objecto pelas suas qualidades refinadas mas porque ele não tinha quase nenhuma qualidade. A dificuldade era encontrar um objecto com estas não-categorias, sem nenhuma espécie de encanto estético, escolher um objecto que tivesse a menor possibilidade de ser amado. Atingir a neutralidade, isolá-lo, singularizá-lo, deixá-lo na solidão máxima, destruir as referências espacio-temporais, deixá-lo na desterritorialização absoluta.
“Comprei nesse dia um ‘porte-bouteilles’ no Bazar do Hotel de Ville e levei-o para casa, e isso foi o primeiro ready-made. E o que me interessou então foi dar-lhe nessa escolha uma espécie de bandeira ou de cor que não tinha saído de um tubo. Esta cor, obtive-a inscrevendo sobre o ready-made em questão uma frase que deveria ser, ela também, de essência poética, e frequentemente sem sentido normal, chegando a jogar com as palavras…”
A escolha e a inscrição vão então desfazer o processo de criação habitual.
O momento subjectivo (inconsciente) indeterminado e arbitrário da criação desaparece. Há uma inversão dos meios habituais do artista, o que significa dirigir em sentido contrário o movimento primeiro. Abolir os sentimentos, com um relogismo, pela escolha da hora, com toda a demora, através de uma espécie de encenação onde se dá o afastamento da realidade. Produzindo uma anestesia é já um outro o que entra em cena, apagando as sensações, não as vivendo realmente. Alta precisão, relogismo, faz com que no instante, sem esperar, se deva encontrar o objecto que não poderia ser ele a conceber, despojando-se da subjectividade, do gosto, da sensibilidade.
Cria-se assim um plano onde se garantem totalmente as condições de fabricação de um objecto. Duchamp extrai assim dos objectos o espaço e o tempo (ready-made), fazendo-os desaparecer. Os ready-mades aparecem para não existir. Tinha encontrado essa “matéria” vital que existe e fluí, como vimos, entre e nos limites, nas fronteiras, no infra-fino – aqui, por entre a arte e a não-arte. Esta matéria, como sugere Didi-Huberman
é a “matéria rose” de “Rrose c’est la vie” (Rose Sélavy). É o próprio Duchamp que diz que esta “matéria” faz nascer na obra de arte essa capacidade de não ser só um objecto para os juízos de gosto, mas uma ocasião para a “Vie en Ose” (texto dedicado a Man Ray):
“La Vie en Ose
on suppose
on oppose
on impose
on appose Man Ray
on dépose
on repose
on indispose et finalement une dose de ménopause
avec repose
sclérose
et ankylose
mais la chose qui ose"
Nesta matéria (“rose”) vital, a diferença ínfima é extraída da redução máxima, desfaz-se o trivial para se chegar ao livre não-objecto, esse que como disse Duchamp a Pierre Cabanne não se encaixava em nenhuma das categorias aceites no mundo da arte. A liberdade da indiferença saía da ruptura completa, do plano de composição que assim traçava, das “ideias felizes” que dizia que às vezes lhe apareciam vindas de pequenos aspectos técnicos, de preparação, de misturas, de “receitas”. O seu plano de composição era também um plano técnico, um plano material, o plano da vida.
Do ponto de vista técnico e intelectual o ready-made sai de um trabalho muito meticuloso, minucioso, elaborado sistematicamente, com grande precisão. Por outro lado, os objectos sem manipulação ou quase, são limitados no seu número e a escolha do momento de criação é bem determinada e calculada até ao mais pequeno detalhe. São criados num plano técnico (sem mãos) e de composição muito preciso. Eles eram, diz Duchamp, uma maneira de se libertar de toda a espécie de programa, poder sair dos eixos, evitar os trilhos. Querer ser livre e querer quase libertar-se de si mesmo. A sua singularidade estava no desejo de dissociar as suas ideias de si mesmo.
Um ready-made é uma obra de arte sem artista para a realizar, como diz Duchamp. Uma decisão que leva tempo, um objecto impessoal quase esquizofrénico (quase, porque há o humor), objecto que escapa aos constrangimentos das outras obras, que põe em causa o sério da obra, retirando-a de um centro, deixando-a algures no universo, no cosmos. Fabricar é o gesto. E a criação do ready-made é um gesto de uma fabricação inquietante e estranha - a decisão inscreve-se na matéria. O ready-made será o contrário do intensivo. Ou o seu avesso.
O ready-made “coisa” feita, zero de intensidades, não é atravessado por nenhuma, isolado, sem que nenhuma força se exerça sobre ele. Mas, se se pode pensar um plano tal como o faz Deleuze, plano de intensidade zero onde circulam intensidades máximas, pode também experimentar-se pensar o ready-made num plano diferente, no avesso deste plano. Este avesso do plano de imanência de Deleuze não é um plano de intensidade zero mas de intensidade máxima onde circulam objectos e seres esvaziados de energia retiniana. Zero de intensidade dos corpos e objectos conseguido com uma matéria “rose” e com os mais variados procedimentos, mas deixando circular no plano de composição intensidades que se manifestaram e manifestam até hoje, no campo artístico e fora dele, por contágio, proliferação, aliança ou crítica.
A grande descoberta de Duchamp foi a de mostrar que há um espaço intervalar entre as coisas anestesiadas – o infra-fino – de onde pode nascer vida. Os objectos da arte contemporânea retomam sob um outro regime a intuição de Duchamp. O plano de composição, atravessado por uma energia máxima, é o plano da nossa vida virtual tecno-científica em que se procura reduzir toda a natureza a objectos artificiais. Mas o artista contemporâneo tirou do seu trabalho nos limites – no infra-fino dos híbridos, dos interiores iluminados dos corpos, da fronteira entre morte e vida, do limiar entre o real e o virtual - a possibilidade de um novo regime de criação.
Assim a arte contemporânea prolonga e transforma Duchamp. O legado é complexo.
Por um lado pode parecer que o gesto de Duchamp queria dizer que qualquer coisa pode ser arte, mas ainda que a arte não seja diferente de qualquer outra coisa no mundo, e venha para a vida de todos os dias os ready-made não são “n’importe quoi”, e hoje os objectos da arte contemporânea também não são. Mas como os ready-made pareciam sê-lo também os da arte contemporânea parecem poder sê-lo. Se parecem sê-lo é por efeito de uma extrema visibilidade das obras actuais, boas e más, vinda da massificação, da facilidade de circulação e exposição, assim como do alargamento do mercado da arte. Factores que não dependeram necessariamente de Duchamp. Muitos cruzamentos se fizeram entretanto.
É verdade que parece quase impossível escapar à influência ou ao legado como muitos lhe chamam. Podemos pensar ainda que não é ingenuamente que se reutiliza Duchamp. Como temos de considerar que nem todos os objectos se convertem em ready-made. O ready-made, verdadeiro, implicava um processo de anestesia para que a escolha pudesse ser totalmente desinvestida de emoção. Ora, aparentemente, o que hoje acontece é precisamente o contrário, um excesso de pathos aparece em muitos objectos expostos. Excesso que vai da impressão mais violenta, extrema, nos limites do suportável, mesmo para além dele, inquietante, estranho, grotesco, até à mais light, “gira”, ou simplesmente um “gosto”, “não gosto”, ou ainda numa modalidade inexistente, embaraçosa do nada a ver, uma incompreensibilidade, uma perplexidade pelo imperceptível, pelo ínfimo que é “engraçado”. Não era isto o que Duchamp queria - para ele a ruptura tinha de ser completa senão era inevitável que ao fim de um certo tempo se ficava a gostar ou a detestar os objectos. Ora, a arte contemporânea parece não fazer essa ruptura, voltando mesmo ao juízo de gosto.
Mesmo a redução ao banal levou a um equívoco. O banal paradoxal tem de ser como o próprio Duchamp o diz - só o vulgar indispensável: “encontrar a vulgaridade
indispensável de tal modo que ela perca a sua tonalidade vulgar”. Ora o banal da arte contemporânea pode guardar a tonalidade vulgar.
Foi a convergência da redução do ready-made ao objecto banal (que Duchamp se diverte a confundir com a obra de arte), com a proliferação imensa dos objectos light e kitsch, que levou a que se avaliasse global e indiscriminadamente a arte contemporânea como “produção de n’importe quoi”.
Afirmação que é ironicamente o legado de um equívoco - como os ready-mades, os objectos da arte contemporânea não são “objectos quaisquer”, mas objectos da “Vie en Ose”: desterritorializadas são “coisas que ousam”...