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O SUBLIME OU O DESTINO DA ARTE
AS CONTROVERSAS EM TORNO DA ARTE CONTEMPORÃNEA
António Guerreiro
“Existem ainda critérios de apreciação estética?” No início da última década do século XX, esta questão desencadeou de maneira espectacular e inesperada, sobretudo em França, aquilo a que se chamou nos círculos da crítica “a crise da arte contemporânea”. Durante mais de dez anos, controversas, polémicas e debates virulentos opuseram marcaram a oposição entre os dois campos em luta: os defensores e os detractores da arte contemporânea.
Interrogar as normas de avaliação e de apreciação estéticas que permitem o juízo sobre as obras de arte não tem nada de excepcional. A questão é mesmo pertinente porque vai ao encontro de reacções muito comuns do grande público, tantas vezes desorientado e até hostil em relação a obras da criação artística actual que não consegue compreender. Que os critérios artísticos dos séculos XVIII e XIX já não sejam válidos não tem nada de espantoso. A modernidade artística do século XX aplicou-se com zelo em desqualificar as categorias estéticas tradicionais. Pelo contrário, a hipótese de um desaparecimento puro e simples dessas categorias é mais surpreendente. Ela torna particularmente incompreensível a complacência de que a arte contemporânea é objecto por parte dos profissionais do campo da arte (artistas, críticos, curadores). Com efeito, apesar da frequente perplexidade do público perante manifestações cujo sentido lhes escapa, a arte contemporânea beneficia largamente, pelo menos nos países europeus que funcionam como “potências artísticas”, de subvenções concedidas pelo Estado. Seja como for, a polémica ora acesa ora latente centrou-se inicialmente sobre o tema da decadência da arte contemporânea. Um conjunto de potenciais “culpados” foram postos em causa: o Estado, que subvenciona uma arte “oficial”, embora por princípio rebelde em relação às normas e aos valores sociais mais partilhados; os artistas que – diz-se – tendem para a complacência; a perda de um saber ligado ao saber fazer, à técnica; os media e as solicitações do sensacionalismo; as experiências mais iconoclastas das vanguardas históricas , das quais Marcel Duchamp é o exemplo mais representativo.
Esta crise da arte contemporânea é, de facto, a vários títulos, paradoxal. Desencadeou-se tardiamente e de forma inesperada. Depois do cubismo, da abstracção, das vanguardas, da pop art, do minimalismo, da arte bruta, dos happenings, das instalações, etc., podíamos imaginar que o mundo artístico era impermeável à sucessão desenfreada de provocações. Os famosos ready-made, tal como a roda de bicicleta, a garrafeira e o urinol, elevados por Duchamp à dignidade de objectos artísticos não tinam afinal, como se pensava, imunizado a esfera artística contra todo o tipo de intempestividade no domínio da arte? Uma tal disputa sobre os critérios estéticos declarados obsoletos desde há tantas décadas não reveste um aspecto anacrónico tendo em conta os movimentos que ocorreram na arte ocidental desde o impressionismo?
Um outro paradoxo reside na própria natureza de um debate que se exerce sobre uma questão susceptível de interessar o público não especializado. As controvérsias sobre a arte contemporânea desenvolvem-se à margem dos artistas, mesmo daqueles que estão directamente implicados nela. As suas obras propriamente ditas são raramente citadas e ainda menos analisadas. Os protagonistas deste processo contra a arte contemporânea (pelo menos aquele que ganhou uma dimensão maior e mais violenta, ocorrido em França) limitam-se a alguns críticos de arte, a comissários de exposições e a historiadores de arte. Todos eles lançam gritos de escândalo contra “a situação da arte contemporânea”.
Como compreender estes paradoxos? A história de arte ocidental não é, afinal, balizada por disputas incessantes e querelas recorrentes cujas feridas mal saradas influenciam ainda a nossa percepção e a nossa compreensão das formas de criação actuais? Em que é que a querela mais recente é diferente das precedentes? Se se fizesse hoje um balanço, mesmo que provisório, constataríamos provavelmente que as obras sempre triunfaram, pelo menos aquelas que escaparam ao esquecimento da história. Veríamos também que a arte sempre soube afirmar a liberdade de criação contra todas as formas de constrangimento, dogmas, convenções, tradições, tutelas diversas, sejam elas religiosas, políticas, ideológicas, económicas que permanentemente se opõem à vontade de transformar o mundo. Mas será este um argumento válido? Não é seguro que assim seja.
Conhecemos as querelas célebres antigas. No entanto, a modernidade modificou profundamente o sentidos dos enfrentamentos. A expulsão da tradição torna-se cada vez mais radical e a rejeição do “antigo” efectua-se de maneira muito mais sistemática. A experiência do novo infiltra-se em todos os aspectos da vida quotidiana. Ela transforma a representação da “vida moderna” mesmo antes de esta dar lugar a realizações concretas. Desde o primeiro terço do século XIX, Hegel pressente a emergência da arte moderna, quando ainda não tem diante de si nenhum exemplo de “modernidade” artística. Será Baudelaire a cantar e definir a modernidade. Transgressões, escândalos e provocações sucedem-se a um ritmo muito rápido e destituem pouco a pouco a autoridade, certamente já então a declinar, mas ainda com alguma firmeza até ao fim do século, do academismo e do conservadorismo.
Sabendo nós que o alargamento do quadro institucional e a expansão contínua da esfera artística são traços específicos da arte ocidental, podemos talvez considerar que a arte contemporânea responde a este processo? É pouco plausível que assim seja, a querela da arte contemporânea parece ser de outra natureza e não deve ser confundida com as disputas e as controvérsias do passado. A crise das belas-artes tradicionais – que começa a partir do impressionismo – o nascimento da abstracção, as vanguardas, a irrupção de objectos industrializados no campo artístico, em suma, a modernidade, não conseguem dar conta totalmente do mal-estar actual. Contrariamente a uma ideia feita, a arte moderna não explica a arte contemporânea. Ou, dito de outra maneira, não se pode subscrever a tese, tantas vezes retomada nas controvérsias recentes, que estabelece uma relação de causa/efeito entre as perturbações causadas pela modernidade e a pretensa decadência da criação artística desde há mais de trinta anos.
É verdade que a denominada “arte contemporânea” nasce efectivamente num terreno preparado de longa data pela desagregação dos sistemas de referência, tais como a imitação, a fidelidade à natureza, a ideia de beleza, a harmonia, etc., e pela dissolução dos critérios clássicos. As vanguardas e a arte moderna, até ao seu apogeu nos anos 60, contribuíram largamente para este abalo devido, em parte, às misturas e às hibridações das práticas e dos materiais. A unidade das belas-artes – desenho, pintura, escultura, arquitectura – que legitimou durante dois séculos a elaboração de classificações eruditas pelos historiadores e os filósofos da arte, quebra-se e abre-se então um vasto domínio de inovações, de experimentações, de correspondências inéditas e de polivalências em busca de uma nova coerência. Todavia, diferentemente da arte moderna, marcada pelo “frenesi do novo” e empenhada em romper com os cânones académicos e os valores artísticos tradicionais, a arte contemporânea muda profundamente a significação da transgressão. Já não se trata, como no tempo da modernidade, de romper os limites do academismo ou das convenções burguesas com vista a uma aproximação entre a arte e a vida. O ready-made tornou-se uma prática corrente, e os seus numerosos
remake desde Duchamp anulam a fronteira entre a arte e a não-arte, isto é, entre a arte e a realidade quotidiana. No momento em que o artista goza de uma pretensa liberdade total, a transgressão e a provocação, cínicas ou desabusadas, tornam-se uma espécie de jogo obrigatório, de moda destinada a seduzir momentaneamente o mercado ou então uma pose deliberada com o intuito de seduzir uma minoria de iniciados. De facto, a questão que a arte coloca desde há mais de trinta anos não é tanto a das fronteiras ou dos limites atribuíveis à criação artística, mas mais a da inadequação dos conceitos tradicionais – arte, obra, artista, etc. – a realidades que, aparentemente, já não lhes corresponde.
As recentes querelas revelaram o quanto as já clássicas teorias da arte e a crítica da arte, ainda válidas para dar conta da arte moderna, constituem o mais das vezes um parco recurso para analisar, explicar ou legitimar as formas muitas vezes desconcertantes da criação actual. O que valia para a esfera das belas artes no sistema kantiano, a saber, que todo o objecto considerado como arte é colocado
ipso facto sob o regime da beleza, já não é válida a partir o momento em que a unidade das belas-artes entrou em falha e que as normas e os critérios tradicionais de julgamento foram quebrados.
Esta situação particular, inédita na história da arte ocidental, corresponde ao que o teórico e crítico de arte americano Harold Rosennberg chamou justamente “des-definição da arte”, isto é, uma perda de sentido que afecta tanto a noção de arte propriamente dita como a noção de obra de arte, que é um conceito ameaçado de cair em desuso. A multiplicação dos textos sobre a arte ao longo dos anos 90 do século passado testemunha uma vontade de encontrar algumas referências fiáveis numa conjuntura em que toda a gente parece ter perdido a bússola para se orientar. A ausência de referências e de chaves de interpretação reforça seguramente o sentimento de que a arte contemporânea pode ser “qualquer coisa”, como dizem muitas vezes os seus detractores.
Será então possível redefinir as condições do exercício do juízo estético face às obras contemporâneas? Mesmo supondo que elas são “qualquer coisa” podemos ter sobre elas um discurso argumentado e crítico? Ainda que a questão dos critérios de avaliação estética tenha estado na origem da querela da arte contemporânea, ela não trouxe qualquer resposta a estas duas interrogações cruciais. O problema é árduo. Como julgar a qualidade artística de objectos e de práticas a partir do momento em que já não existem critérios e normas de referência? Se é verdade que o problema da apreciação das práticas artísticas actuais interessa ao público, devemos reconhecer que as condições do exercício do juízo estético foram profundamente modificadas ao longo das últimas décadas. Pode-se mesmo falar de uma mudança radical do estatuto da crítica da arte, na medida em que a noção de arte foi também ela posta em causa.
É certo que a teoria estética tradicional, preocupada com a qualidade das obras, pode dificilmente dar conta das novas relações existentes entre a arte, a instituição, a obra e o público. Preocupada em fazer valer a necessidade do juízo estético, e persuadida de que a arte e as obras exercem uma função crítica – social, política ou ideológica -, esta teoria, herdeira do século XVIII, parece obsoleta. É um facto que ela surge desfasada em relação a um contexto cultural no qual tudo parece permitido. Como interpretar aquilo que foi chamado “des-definição” da arte? Será possível medir os papéis que desempenham agora as instituições e o público na promoção artística, por vezes inesperada, de coisas a priori sem interesse?
Trata-se de questões às quais as especulações filosóficas e estéticas, surgidas no contexto da arte contemporânea, tentaram responder. A uma situação inéditas, essa teorias respondem com a tentativa de renovar os modos de interpretação tradicionais e propõem novos paradigmas. Assim, mais do que se interrogar em vão sobre o que é a arte e adaptar bem ou mal a sua definição cada vez que surge uma coisa aparentemente incongruente, a filosofia analítica e pragmática toma em conta as profundas modificações que afectam o estatuto da arte e do artista. Já não se trata de fazer referência a uma essência universal e intemporal da arte. A questão “O que é a arte?” – que se tornou não pertinente – foi substituída pelo filósofo americano Nelson Goodman, desde os anos 70 do século passado, por uma outra: “Quando é que há arte?”. Tratava-se assim de procurar os factores que permitem a um objecto qualquer de ser percebido ou de “funcionar” como obra de arte. Para Goodman, o pretenso valor intrínseco da obra, as qualidades artísticas, a sua capacidade de suscitar sentimentos, são considerados não pertinentes para uma definição eventual da obra de arte.
Os debates sobre a arte contemporânea concluem-se geralmente com um discurso fechado entre iniciados. Parecem sintomáticos de uma verdadeira distorção entre a legitimação institucional desta arte e o modesto reconhecimento público de que beneficia. Esta distorção traduz também, e sobretudo, o fosso crescente entre o mundo da arte, os especialistas da arte contemporânea e o público. A lógica cultural à qual obedece hoje a arte contemporânea resulta da combinação das novas técnicas, dos media e do mercado. Deste modo, a arte contemporânea, mesmo a mais provocante, já não parece capaz de adoptar uma posição crítica, verdadeiramente distanciada, face a este sistema. Todavia, esta ideia de uma arte e de uma cultura tornadas consensuais, não críticas, isentas de toda a implicação nos negócios do mundo é errónea porque essa mesma lógica deixa entrever novas perspectivas. As fronteiras da arte nunca pararão de se alargar.
O SUBLIME OU O DESTINO DA ARTE
António Guerreiro
“O Sublime está na moda”: é a frase de abertura de um ensaio de Jean-Luc Nancy. “L’offrande sublime”, publicado inicialmente na revista Poésie e incluído depois num volume colectivo intitulado precisamente “Du Sublime”. Nesta afirmação, insinua-se uma pequena provocação que terá, logo a seguir, uma resposta esclarecedora. Nancy refere-se evidentemente ao facto de, nos últimos anos, a categoria do sublime se ter tornado um objecto insistente tanto no discurso da crítica e da estética, como entre os próprios artistas – de resto, uma situação de que esse mesmo livro é um sintoma. A vaga de comentários que, nos últimos anos, sobretudo em França, suscitou a Crítica da Faculdade do Juízo (nomeadamente o Segundo livro, a “Analítica do Sublime”) confirma, sem reservas, o diagnostico de Nancy. No que se refere a este aspecto, o exemplo maior é, sem dúvida, o de Jean-François Lyotard que, na sequência das reacções ao seu livro sobre “La condition posmoderne”, 1979, fez uma reivindicação do sublime kantiano – que, segundo ele, é o ponto de partida da arte moderna e o lugar onde as vanguardas vão procurar os seus axiomas – para designar a pós –modernidade não como algo que vem depois da modernidade, mas como “reescrita” da modernidade.
Mas, para Lyotard, o conceito de sublime não respondia apenas ao interesse que lhe suscitava a arte moderna. Muito mais do que isso, considerou-o como um lugar obrigatório da filosofia, hoje, seja em relação à arte, à política ou à ética. De um modo geral, seja em Lyotard, em Jean-Luc Nancy ou em Philippe Lacoue-Labarthe (para citar apenas três nomes da constelação mais vasta que, em França, procedeu a uma releitura da Terceira Crítica de Kant), a estética do sublime preserva sempre uma força que irrompe e faz entrar em crise o lugar canónico do pensamento, o filtro espácio-temporal a que é submetido o lugar da representação. A tese kantiana que afirma que o belo é intensificação da vida, enquanto o sublime é crítica da existência, ganha aqui uma justa ressonância.
A “moda” do sublime a que se refere Nancy não designa, pois, uma situação em que este se teria tornado um produto conveniente e sujeito a actualizações com vista a conformá-lo facilmente ao espírito do tempo, na sua dimensão mais superficial; e também não é entendida como indicador de um momento de crise, como por vezes se julgou (por exemplo, Baldine Saint Girons, na sua monumental monografia sobre o sublime, “Fiat lux”. “Une philosophie du sublime”, sublinha a coincidência de a noção ter sido elaborada em momentos cruciais e críticos da história). O que Nancy, pelo contrário, está interessado em sublinhar é que desde a tradução e o comentário, por Boileau, do tratado de Longino sobre o sublime, a estética e todo o pensamento sobre a arte nunca mais puderam prescindir, implícita ou explicitamente, da questão do sublime, e nunca mais deixaram de ser interrogados por ela.
Mostrando a relação estreita e necessária entre o destino moderno da arte e aquilo que, tendo como motivo o sublime, abre a estética a um novo campo de questões, Nancy conclui: “Não há pensamento contemporâneo da arte e do seu fim que não seja, de uma maneira ou de outra, tributário do pensamento do sublime, quer se refira expressamente a ele ou não” (Nancy, 1988:39). Este destino moderno a arte anuncia-se em algo que, nela, a ultrapassa e a suspende, a faz vacilar, como dizia Adorno, desestabilizando os “limites”, inclinando-se para o lado do ilimitado e, desse modo, subtraindo-a ao alcance do belo que, como lembra Nancy, está do lado da limitação, da forma e do contorno. Na “moda” do sublime podemos – e devemos – também ver uma forma de reintroduzir o sentido do prazer estético, já que todo o discurso sobre a beleza foi banido do juízo estético e não tem lugar senão no discurso corrente e banal.
No entanto, o ilimitado não é, para Nancy uma grandeza; não é um resultado, mas a própria acção, o “gesto do infinito” pelo qual se dá a formação de uma ausência de forma, de um informe. É um movimento de “ilimitação” diz Nancy, interpretando Kant e, implicitamente, dialogando com Lyotard e deslocando um pouco a definição que este dá do sublime kantiano enquanto apresentação não do inapresentável – do que de nenhum modo pode ser representado – mas do facto de que existe o inapresentável: “La présentation (de ceci) qu’il y a de l’impresentable”. Assim: “No sublime está portanto em jogo a próxima apresentação: não algo a apresentar, ou a representar, nem algo de inapresentável, nem sequer o facto de que qualquer coisa se apresente a um sujeito, e por sujeito (a representação), mas o facto de que isso se apresenta, e como isso se apresenta: isso apresenta-se na ilimitação, apresenta-se sempre no limite. Esse limite, em termos kantianos, é o da imaginação” (Ibidem: 54).
É então, necessário perceber que a importância que a categoria do sublime adquiriu na estética e na filosofia contemporâneas é a resposta a uma experiência artística que interroga a arte no seu próprio acontecimento, no seu aqui e agora pré-reflexivo e não codificável, aquilo que excede toda a retórica do espelho, do reflexo, do mimético. Foi sob a égide do sublime que o Romantismo procedeu à exploração de um continente em grande parte por reconhecer. Um continente que não pode ser habitado sem riscos porque se situa no horizonte do informe, do terrível, do que provoca um comprazimento doloroso e destitui a soberania do sujeito, interrompendo a possibilidade de uma estável conciliação com o mundo, como é aquela que o belo proporciona. É este fundo negativo e este conflito entre as exigências da razão e as da sensibilidade que a arte moderna vai radicalizar. Mas agora não se trata já daquela “indeterminação” onde os românticos queriam aprender a presença do infinito e do absoluto, mas antes da imediaticidade e imanência da obra, do seu próprio acontecer como única coisa que nela acontece. É nisto que consiste a grandeza – e o enorme alcance – da abstração de um Malevitch, de um Rothko, de um Barnet Newman. E se estes três nomes são muitas vezes mencionados a propósito do sublime, é porque eles próprios sentiram necessidade de produzir um discurso paralelo à sua obra, onde a questão do sublime ganha uma enorme importância. Leia-se, neste sentido, o autêntico manifesto que Barnett Newman escreveu em 1948 (precisamente no ano em que apresentou o famoso quadro “Onement I”), intitulado “The Sublime Is Now”; ou a carta de Malevitch ao amigo Matiutchine, no Verão de 1913, durante o trabalho que ambos estavam a realizar para “A Vitória sobre o Sol”, onde explica como o sublime que importa para a sua obra está para além de todo o pretenso “irracionalismo”: “Chegámos a rejeitar a razão, mas fizemo-lo porque outra espécie de razão cresceu em nós. Comparada com a que refutámos, podemos chamar-lhe “além-razão”, também ela dotada de lei, construção e sentido, e apenas sabendo isto poderemos fazer obras baseadas na lei da nova, verdadeira “além-razão” (...). Estou a começar a compreender que nesta “além –razão” existe também uma dura e severa lei que fornece às imagens, aos quadros, o seu direito de existir. E nem uma linha deve ser tirada sem a consciência desta lei; só assim seremos vivos” (citado em Carboni, 1989:68).
Até ser tornado a pedra de toque da arte moderna, a noção de sublime construiu-se historicamente ao longo de um percurso sincopado, cheio de inflexões e de mudanças de perspectiva, tornando difícil fazer com que ele adquirisse a constância de uma ideia ou o estatuto de uma categoria. Foi sempre impossível fixá-lo numa definição canónica.
O texto fundador, aquele onde se desenha pela primeira vez uma verdadeira problemática do sublime é o Tratado do Sublime, atribuído a Longino (é longa e cheia de percalços a história desta atribuição ao filósofo e retórico grego, do século III; refira-se apenas que, a partir do século XIX, essa atribuição foi definitivamente considerada falsa, o que não impediu que o autor anónimo do tratado, à falta de um verdadeiro autor certificado, continuasse a ser nomeado como Longino ou, por vezes, Pseudo-Longino). Com Longino, o sublime é definido como um objecto de estudo do âmbito da retórica e da poesia. Trata-se, assim, de analisar as técnicas discursivas através das quais pode ser produzido o sublime, isto é, o estilo elevado: “porque tudo o que é verdadeiramente Sublime tem a propriedade de elevar a alma, quando o escutamos”, diz Longino no capítulo V do seu tratado. E logo a seguir acrescenta: “A marca infalível do Sublime é quando sentimos que um discurso nos faz pensar bastante, que ele tem um efeito sobre nós a que é muito difícil, para não dizer impossível, resistir” (Longino; 1995:81-82).
Circunscrevendo o sublime ao discurso e, portanto, procurando o seu objecto de estudo nos processos estilísticos que permitem produzir o efeito de sublime, Longino não faz senão lançar as bases daquilo que começa por parecer uma retórica do sublime, mas que se revela depois, muito mais, uma poética. É no capítulo XIII, sobre as imagens, que surge explicitada uma oposição entre poesia e retórica, para distinguir o uso que das imagens faz o poeta e aquele que faz o orador. E é precisamente à poesia que Longino vai buscar os exemplos que provocam “o espanto e a surpresa”, pois a verdadeira poesia – sugere Longino – partilha com o sublime uma mesma fonte: a “grandeza da alma”. A distinção entre poesia e retórica, tal como é feita, introduz um primeiro obstáculo para que o sublime longiniano possa ser considerado, sem ambiguidades, um efeito produzido por um conjunto de características técnicas e, nessa medida, facilmente codificável e submetido a regras do discurso. Tal ambiguidade torna-se ainda muito mais evidente quando Longino defende que o Sublime consiste não na “amplificação” , mas na “altura e elevação” que podem estar num “simples pensamento” (capítulo X). Ao remeter o sublime para fontes tais como a simplicidade e a “grandeza da alma”, Longino estava a afastá-lo de uma possibilidade de definição. Boileau, que, com a sua tradução do tratado de Longino, em 1674, se tornou responsável pelo ressurgimento moderno do sublime, é sensível a este aspecto e fala de um “je-ne-sais-quoi” que nos encanta e sem o qual “a própria beleza não teria graça nem beleza”.
Procurando, assim, um princípio de transcendência como fonte extra-retórica e extra-poética do sublime, Longino não deixou por isso - e esta é a sua importante contribuição - de retirar o sublime da esfera natural ou divina em que ele se inscrevia. A sua ideia de hypsos é a secularização de um significado religioso-metafísico, originário, do conceito.
A tradução francesa do Tratado do Sublime, por Boileau, vai permitir uma enorme difusão das teses de Longino (não apenas em França) e uma apropriação do conceito de sublime pelo classicismo francês no final do século XVII. É verdade que, secularizando e racionalizando o sublime, Longino inscrevia-o directamente na linha do ideal clássico. Mas, como já vimos, várias ambiguidades habitam o conceito para que ele se possa dissolver numa concepção estilístico-retórica. Por isso, pretender que Boileau, no prefácio à sua tradução e, de maneira mais desenvolvida, nas suas reflexões críticas, entende o sublime longiniano como superlativo do belo para o manter na esfera do ideal clássico de harmonia, ordem e equilíbrio da poética, esquece o quanto o poeta francês foi sensível às enormes ambiguidades do legado de Longino. É prova disso a necessidade que sentiu Boileau de criar uma distinção essencial entre o estilo sublime e o sublime. Tal distinção responde não apenas ao privilégio que Longino concedeu à simplicidade como característica do sublime, por oposição ao discurso enfático e pomposo (aquilo que Boileau traduz por “enflure”), mas, de maneira mais geral, à consciência de que pouco serve o recurso ao aparelho de uma retórica para o apreender. Escreve Boileau no prefácio à sua tradução de Longino: “É necessário, então, saber que por sublime, Longino não entende aquilo a que os oradores chamam estilo sublime: mas esse extraordinário e maravilhoso que nos toca no discurso e faz com que uma obra enleia, enleva, arrebata. O estilo sublime necessita sempre de grandes palavras; mas o Sublime pode encontrar-se num só pensamento, numa só figura, num só tour de palavras. Uma coisa pode ser no estilo sublime e não ter nada de extraordinário nem de surpreendente” (Boileau, 1995:70). Devemos reparar que Boileau utiliza, nesta passagem, três verbos quase sinónimos: “enleia, enleva, arrebata (enleve, ravit, transporte). O sublime residiria então naquilo que é capaz de raptar o indivíduo e levá-lo para um outo mundo que não é o habitual. O que está aqui em causa é a identificação do sublime não com questões puramente poéticas, mas com o efeito que ele provoca no sujeito. Para Pierre Hartmann, este é um passo muito importante na história do conceito de sublime: “A partir do momento em que a consideração de efeito produzido se torna o principal, a teoria não pode, de facto, deixar de se inclinar insensivelmente para uma proposta de natureza psicológica, no sentido mais lato do termo. Trata-se ainda, é certo, de uma subtil deslocação, mas que abre uma direcção nova, com a qual o século seguinte se irá comprometer”. (Hartmann, 1998:28). Boileau interpretando Longino num sentido que anuncia já o Enquiry de Edmund Burke: eis o que, explicitando, significam as palavras de Hartmann.
Aquilo que para Boileau começa timidamente a surgir como uma questão importante e inevitável é a de saber onde reside o sublime. Na verdade, é essa questão que começa a germinar no excerto citado do prefácio ao “Tratado do Sublime” e que determina o exemplo que Boileau discute imediatamente a seguir – as palavras da Criação no início do Livro do Génesis. Este exemplo do fiat lux bíblico já aparecia em Longino e tornou-se o exemplo canónico do sublime, o seu emblema supremo. Ora, o que discute Boileau no fiat lux é se o sublime reside no acto da criação ou nas palavras de Moisés, prolongando assim a relação instituída por Longino entre sublime e natureza (“princípio e arquétipo de toda a nossa criação”), que mostra que o sublime não é redutível a simples artifício linguístico.
Referindo-se à distinção entre sublime e estilo sublime, Jean-Luc Nancy concede-lhe um alcance insuspeitado, que não se conforma de modo nenhum à ideia de que Boileau, através de Longino, teria introduzido o sublime como uma peça da poética clássica. Diz Nancy: “A partir daí (da distinção entre o estilo sublime e o sublime, apreendido de maneira absoluta), o que dantes, sob os nomes de hypsos ou de sublimitas tinha sido uma categoria retórica – o discurso especializado nos assuntos de grande elevação – tornou-se uma questão, uma exigência, uma adoração ou um tormento mais ou menos confessados, mas sempre presentes, da filosofia da estética e da filosofia na estética” (Nancy, 1988: 38). Dito de outra maneira, em polémica com as interpretações canónicas da história literária e da história da estética: já em Boileau, já no auge do classicismo, o sublime não pode ser apreendido meramente como um superlativo do belo. É também nesta perspectiva que Louis Marin, num texto incluído no mesmo livro que recolhe o de Jean- Luc Nancy, analisa um quadro de Poussin onde se representa uma tempestade. Aí, Marin mostra como o pintor leva a representação clássica a um limite (Nancy diria: a uma “ilimitação”) que o faz defrontar-se com a própria transgressão da representação. O que surge não é então o equilíbrio e a limitação das formas finitas, mas uma espécie de vertigem: a beleza em estado de enlouquecimento, aquilo que realiza o belo mas ao mesmo tempo o ameaça e o supera. Louis Marin cita uma carta Poussin a um outro pintor: “tentei representar uma tempestade em terra, imitando o melhor que pude o efeito de um vento impetuoso” (Marin, 1988:238). Este “o melhor que pude” não é senão a expressão de um conflito interno ao sujeito (poderíamos dizer, já em termos kantianos: entre a imaginação e a razão) que anuncia, mais uma vez, a via por onde, no século XVIII, vai passar a reflexão sobre o sublime.
O que parece plausível, tendo em conta todos estes exemplos, é que o sublime, pelo menos desde Boileau, nunca deixou de ser ao mesmo tempo uma interrogação do belo e a identificação de um fundo abissal, orgíaco, destituído de forma. Somos assim remetidos directamente para as páginas do Nascimento da Tragédia, onde Nietzsche destrói o ideal clássico de uma harmonia ingénua, prolongando, aliás, um gesto que já tinha sido levado a cabo por Holderlin nas suas notas sobre a tragédia grega (de que Nietzsche, no entanto, não pôde ter conhecimento). De um lado a beleza apolínea, que é necessária para suportar a vida; de outro, o fundo dionisíaco, obscuro e terrível, que se opõe à clareza e á limitação da figura e da superfície. Ao estabelecer um laço na tragédia de Ésquilo e de Sófocles entre superfície apolínea e fundo dionisíaco, entre o impulso do sonho e o da embriaguez, Nietzsche estava a dar um passo importante para percebermos também que a dicotomia constituída pelo belo e pelo sublime não pode ser entendida como uma contraposição de estilos, exactamente pela mesma razão que o dionisíaco só pode emergir na bela forma apolínea, pois é no interior dela que ele se encontra velado.
Na história do conceito de sublime, o passo mais importante a seguir à tradução que Boileau fez do tratado de Longino foi dado por Edmund Burke, quando publicou em Londres, em 1757, um livro intitulado “A Philosophical Enquiry into the Origin of our Ideas of the Sublime and the Beautiful” que, na sua segunda edição, dois anos depois, é ampliado com uma introdução sobre o gosto, onde o autor explica os pressupostos da sua teoria.
Inscrevendo-se na tradição filosófica do sensualismo inglês, Burke abandona a tradição inaugurada por Longino e prosseguida por Bolieau, rompendo com toda a aproximação poética do sublime. A este respeito são bastante elucidativas as frases finais de Enquiry, em que Burke diz que não era a sua intenção entrar na crítica do sublime e do belo em nenhuma arte, mas mostrar de que maneira certas propriedades das coisas da natureza actuam de maneira a produzir certas paixões. Não se trata, pois, de saber como é que na poesia ou na oratória o sublime é produzido, mas como é que ele pode ser considerado uma experiência subjectiva, o que marca uma viragem para o domínio da psicologia.
Para analisar o sublime de um ponto de vista genético, Burke precisa de estabelecer com precisão uma diferença entre dois campos: por um lado, o sujeito das afecções sensíveis, por outro, o mundo que está na origem dessas sensações subjectivas e que constitui um exterior estranho e desconhecido. Na diferença entre estes dois campos, e no modo de a entender, joga-se com uma decisão importantíssima que, ao longo de toda a história do conceito de sublime, sempre oscilou entre duas hipóteses: tentar apreendê-lo do lado das causas ou do lado dos efeitos. Burke segue a primeira via e, por isso, o seu campo de estudo já não é a obra literária e as suas regras (sublinhe-se que tanto Longino como Boileau tinham restringido o sublime ao discurso, considerando que ele não se podia dar em nenhuma outra forma de representação artística), mas “as propriedades das coisas da natureza” que são fonte do sublime: “Tudo o que é, de algum modo, apto a excitar as ideias de dor e perigo, isto é, tudo o que é de algum modo terrível, ou se relaciona com objectos terríveis, ou actua de maneira semelhante ao terror, é uma fonte do sublime” (Burke, 1958:39).
A característica mais marcante da teoria de Burke é a dimensão negativa (onde sensações como “privação” e “terror” ganham uma enorme importância) que adquire a noção de sublime. Não é que em Longino, como vimos, ela não surja já ameaçada por forças obscuras, e que em Boileau não a remeta para a indefinição de um “je-ne-sais-quoi” que perturba manifestamente a ordem do mundo (ou melhor: a ordem clássica). Mas estávamos ainda longe de fazê-la surgir (até porque a perspectiva era outra) de sentimentos e categorias psicológicas como o terror, o medo, a dor e a privação. É precisamente por ter feito do terrível e do obscuro o nó central da sua teoria (muito embora, como iremos ver, dando a seguir um outro passo que resgata o sublime desta simples relação com o terrífico) que Burke abre um campo de possibilidades de que a estética romântica se irá apropriar. Como não haveria o Romantismo de reconhecer-se em afirmações deste tipo: “a própria noite é sublime”?
No entanto, esta inflexão negativa ganha, na elaboração de Burke, um aspecto paradoxal: se é verdade que a emergência do sublime está relacionada com os sentimentos de medo e de terroro (Burke dá a esta palavra um sentido bastante preciso, transformando-a quase num conceito), é preciso no entanto que a ameaça que eles representam seja suspensa para que da dor nasça o prazer. A este prazer negativo que caracteriza o sentimento do sublime (distinto de um prazer positivo e sem relação com qualquer dor, como se chama no Enquiry) chama Burke delight: “É muito razoável que nos sirvamos de uma palavra para distinguir duas coisas de natureza tão distinta como um prazer que é simplesmente prazer e sem nenhuma relação, e um prazer que não pode existir sem uma relação, e além do mais uma relação com a dor. Seria muito extraordinário se estas afecções, tão diferentes quanto às suas causas, e tão distintas quanto aos seus efeitos, se confundissem umas com as outras, porque o uso corrente as inclui sob o mesmo título geral. Sempre que tiver de falar deste prazer relativo, chamar-lhe-ei delight” (Burke, 1958:36). A teoria do sublime, de Burke, supõe portanto uma dupla operação: primeiro, domina uma sensação que provoca um movimento negativo; num segundo momento, há uma outra operação que suspende a primeira, dando origem a esse prazer negativo a que Burke dá o nome de delight.
Mas não é apenas por ter inaugurado este campo vastíssimo que Burke trouxe perspectivas importantes para a teoria do sublime e que iriam perdurar. Como se percebe desde o título do seu livro, o sublime é, para Burke, objecto de uma reflexão que implica integrá-lo num sistema que o opõe ao belo. A este respeito, é bem explícito o início do capítulo dedicado à beleza, na primeira secção da terceira parte: “É a minha intenção considerar a beleza como distinta do “sublime” (Burke, 1958: 91). E, a seguir, muitas vezes Burke irá comparar o belo com o sublime, construindo dois paradigmas opostos. Esta polarização é um contributo decisivo para retirar o sublime, de uma vez por todas, da dependência do belo, nomeadamente sob a forma superlativada deste, embora com todas as suspeitas e ambiguidades que esta hipótese levantou, mesmo em pleno classicismo, como já vimos.
Esta oposição marca profundamente toda a teoria do sublime, do século XVIII até hoje. O primeiro texto que Kant consagrou ao sublime, em 1764, chama-se precisamente Observações sobre o Sentimento do belo e do Sublime. É um texto que se situa muito claramente na esfera de Burke como se pode perceber pelas abundantes referências que lhe faz. Mas é com a Crítica da Faculdade do Juízo, publicada um quarto de século mais tarde, que Kant apresenta uma teoria do sublime (à qual dedica toda uma secção intitulada “Analítica do Sublime”) que, desde logo por estar no centro de uma reflexão estética que se insere no conjunto mais vasto do saber e das faculdades humanas, marca uma ruptura com a estética clássica. Basta ter uma ideia da enorme quantidade de estudos consagrados nos últimos anos à Crítica da Faculdade do Juízo (alguns dos quais tiveram como pretexto o bicentenário da obra) para abandonarmos qualquer pretensão de, neste espaço, em que procuramos acompanhar nos seus momentos fundamentais a elaboração histórica do conceito de sublime, fazer mais do que ensaiar uma síntese muito geral, orientada no entanto pelo fio histórico que temos vindo a seguir.
Tal como Burke, Kant centra a Analítica do sublime na oposição entre dois tipos de experiência estética: o belo e o sublime. Mas a grande diferença em relação a Burke é que o sublime Kantiano traz consigo a necessidade de a estética se pensar nos seus modos de acesso a algo que não pode ser determinado empiricamente. Em termos kantianos, devemos dizer que os sentimentos estéticos são remetidos para uma faculdade transcendental do espírito, abandonando assim completamente o fisiologismo e psicologismos de Burke. É por isso que Baldine Saint Girons defende que é com o sublime de Kant que a estética se torna verdadeiramente filosofia (Saint Girons, 1933: 34-36).
Eis, então, como Kant explica o juízo estético a que chama sublime: perante um objecto que, pela sua dimensão ( e, aqui, Kant desenvolve uma distinção entre uma avaliação matemática e uma avaliação estética das grandezas, sendo que esta última, determinada subjectivamente, é a que comporta a ideia do sublime), faz nascer a ideia de um absoluto que só pode ser representado como uma ideia da razão, a nossa faculdade de apresentação, a imaginação, não se adequa a ela, sendo mesmo sujeita a uma violência; o belo, pelo contrário, consiste num puro acordo da faculdade do entendimento com a faculdade da imaginação. O sublime surge então deste conflito interno que opõe a imaginação á razão, isto é, entre o que se pode conceber e o que se pode imaginar. Iremos ver como Lyotard deduz daqui a ideia de uma “apresentação negativa” que lhe permite estabelecer uma relação cheia de consequências entre a estética do sublime a arte moderna.
Perante o que acabamos de expor, uma questão deve ser colocada: se Kant diz expressamente que “nos expressamos incorrectamente quando denominamos qualquer objecto da natureza do sublime” (Kant, 1992:139), isto é, se o sublime reside apenas na disposição do ânimo (Gemut) porque é que ele próprio dá exemplos de objectos da natureza sublimes? Baldine Saint Girons propõe esta resposta: porque há, apesar de tudo, um a priori material, um quase objecto, Jacob Rogozinski, por sua vez, fala de um necessário paralogismos do juízo estético: “Kant interdiz-nos à partida de procurarmos exemplos na natureza ou na arte. É apenas por uma sub-repção por um paralogismo do juízo estético, que chamamos “sublimes” a obras ou a paisagens, que consideramos como uma qualidade real do objecto o que não é senão uma simples disposição da nossa faculdade de julgar. Nada é sublime neste mundo. Acontece, no entanto, que esse sentimento nos atinge: sem dúvida porque o sublime é justamente o que acontece, a pura ocorrência do acontecimento” (Rogozinski, 1988:184).
É por via da leitura de Kant que o sublime vai dar entrada na obra de Schiller e ocupar nela um lugar central. Fazendo do sublime um lugar de confluência de problemas estéticos, filosóficos e éticos, Schiller transfere toda a questão da experiência sublime para sua obra dramática, conferindo-lhe ao mesmo tempo um estatuto ontológico fundamental na afirmação da autonomia do princípio moral a que deve estar subordinada toda a acção. Das Cartas sobre a Educação Estética do Homem pode ser apreendida a característica fundamental da estética schilleriana: a arte representa a estrutura simbólica sobre a qual se funda toda a política e toda a acção social. Deste modo, o sublime de Schiller vive desta ambivalência que leva a arte a ser experiência de verdade e educação estética e, simultaneamente, uma experiência absolutamente subordinada à acção moral. Não significa isto que a arte deva ter como finalidade o bem moral, coisa contra a qual Schiller adverte, lembrando as péssimas formas artísticas que este imperativo produziu, mas que o prazer produzido pela arte deve fundar-se em condições morais e que, portanto, toda a natureza moral do homem deve participar nele. O problema do sublime insere-se assim no problema mais geral da relação entre arte e moralidade, entre arte e educação estética, entre prazer e beleza, e diz respeito às mesmas faculdades da metafísica kantiana.
A experiência do sublime corresponde à superação da esfera da necessidade e é nesse sentido que revela ao homem o absoluto da liberdade. Diz Schiller: “O sentimento do sublime consiste, por um lado, no sentimento da nossa impotência e limitação para abranger um objecto, mas, por outro lado, no sentimento da nossa supremacia que não se assusta com quaisquer limites e que submete no plano espiritual aquilo a que as nossas forças sensíveis se sujeitam” (Schiller, 1984:30). Isto mostra como Schiller, na sua teorizado sublime (e, de um modo mais geral, na sua teoria da arte) faz uma inflexão ética muito mais acentuada que a de Kant. É aliás, desta aproximação entre o domínio da estética e o domínio da ética que Schiller vai retirar a sua teses fundamental da função propedêutica da actividade estética.
Escrevendo num momento de charneira que é o dos alvores da modernidade, é sobretudo a partir da questão do sublime que Schiller pensa a condição da arte do seu tempo. A clássica relação entre beleza e verdade, herdada da Grécia antiga, foi ultrapassada pelo sublime porque só este, enquanto conflito e separação, reflete a relação do homem moderno com a natureza. Não é que Schiller estabeleça novamente uma oposição belo/sublime, do tipo da que vimos em Burke, em que se criava uma polarização entre dois paradigmas. Sem entrarmos numa análise pormenorizada da complexa noção de beleza em Schiller ( e do lugar para onde é remetida pelo sublime, ao qual é concedido uma primazia ontológica), fiquemos pela ideia muito simplificada de que o sublime schilleriano é complementar do belo, tal como a dimensão moral é complementar da dimensão sensível. Diz Schiller: “( A disposição de ânimo) é preferencialmente denominada de grande e sublime, visto que contém todas as realidades do belo carácter sem partilhar os seus limites” (Ibidem:221). Ele corresponde a uma beleza que já não se revela, como dantes, mas que tem, pelo contrário, de ser afirmada. E a tragédia é o género que melhor exprime o conflito entre a vontade e a lei, entre o homem e a natureza: “E o seu domínio abrange todos os possíveis casos nos quais se sacrifica qualquer conveniência natural a uma conveniência moral; ou então uma conveniência moral a outra que lhe seja superior” (Ibidem:32).
A pertença do trágico ao sublime – que não apenas em Schiller, mas em toda a teoria romântica, é uma constante – não é partilhada por Hegel, que o remete inteiramente para o belo. Aproveite-se, aliás, o momento para sublinhar o lugar reduzido que Hegel, na sua Estética, reserva ao sublime, que surge aí apenas como característica da arte simbólica, o que significa, como observou Gianni Carchia, que “em Hegel, o sublime não pode dialectizar-se com o belo no plano supratemporal das teorias, mas unicamente no plano exterior, constituído pelas figuras da história espiritual” (Carchia, 1990: 121).
Para Harold Bloom, Milton é o pai do sublime moderno. No nosso século, uma experiência crucial do sublime é aquela que é vivida por Lord Chandos, na carta que escreve a Francis Bacon. A Carta de Lord Chandos, de Hugo Von Hofmannsthal, foi publicada em 1902, em Berlim, no jornal Der Tag. Aquilo que Ein Brief (é este o título original) representa para a literatura do nosso século é incomensuravelmente maior do que a escassa dezena de páginas que a constituem. Se a experiência crítica que narra Lord Chandos, a de uma “inércia espiritual” que se traduz na descoberta da impossibilidade de as palavras exprimirem a vida e a realidade objectiva (o que o leva a anunciar a sua renúncia à literatura), então o sublime que o nosso século descobre logo nos seus começos, e que lhe irá desenhar o rosto, é o que se esconde na imanência e no imediato. “The sublime is now”, diz o título de um texto que o artista Barnett Newman escreveu em 1948.
Por sua vez, Lyotard, aplicado em mostrar que a obra de Barnett Newman pertence à estética do sublime e que, de um modo mais geral, as vanguardas artísticas do nosso século, nomeadamente a arte abstracta e a arte minimal, “estão em germe na estética kantiana do sublime” (Lyotard, 1988:110) elege este artista (cujo texto citado surge a par de uma “revelação” do sublime na sua obra pictórica) como o exemplo, por excelência, da estética do sublime que está em jogo na arte moderna: o sublime que está em jogo no aqui e agora da própria obra, no acontecimento que ela é, em si, como artefacto, ao dar-se enquanto tal e não por referencia a algo que a transcende. Daí que o filósofo francês vá buscar a Kant o conceito de “apresentação negativa”. A partir deste conceito, formula uma definição de sublime como “apresentação de que existe inapresentável” (...qu’il y a de l’imprésentable: repare-se no indefinido, na indeterminação que Lyotard quer dar ao imprésantable, ele nunca diz présentation de l’imprésantable).
Lyotard introduz assim a ideia de um sublime próprio da arte moderna, a partir do qual s define uma estética historicamente determinada: aquela que tem origem no Romantismo e é levada a cabo plenamente nas vanguardas pictóricas do nosso século. Esta estética, pelo menos nos momentos, ao longo do nosso século, em que foi pensada até ao fim e dela se retiraram todas as consequências, já não tem que ver com uma estética do belo. Esta perspectiva merece ser comparada com a de Jean-Luc Nancy, que é um pouco diferente, e nalguns aspectos antagónica. Para Nancy, o sublime representa, como Boileau já tinha entendido, aquilo sem o qual a beleza não seria bela. Neste sentido, ele é uma sombra que sempre acompanhou o belo, não há sublime “puro”, puramente distinto do belo” (Nancy, 1988:71).
Aquilo que a nossa época descobriu de novo é um pensamento da arte que descobre a importância do pensamento do sublime. Desde a época de Kant- de Diderot, de Kant e de Holderlin, diz Nancy – que “a arte é destinada ao sublime”. Isto significa, ao contrário do que diz Lyotard, que o sublime não forma uma segunda estética.
Mas regressemos ao texto de Barnett Newman para percebermos, em todo o seu alcance, o que é que a questão do sublime representa para a arte deste século. Porque este texto não tem apenas uma dimensão teórica, ele constitui um programa que vai determinar, como sabemos, o percurso deste artista, que nesse mesmo ano começa a pintar as suas telas da maneira que lhe é característica: uma superfície de cor homogénea, dividida por uma tira vertical, um “zip” como ele lhe chamou. Os quadros de Barnett Newman são sobre o sublime. É como se Orfeu tivesse encontrado uma maneira de olhar Eurídice sem a perder. Newman conclui que a arte moderna europeia, desde os impressionistas, passando pelos cubistas, pelo movimento Dada, por Mondrian, etc., foi incapaz de se libertar do conceito de beleza e de atingir o sublime: “ A arte moderna não soube criar uma nova imagem do sublime, nem separar-se das representações de figuras e de objectos do Renascimento de que ela procura em vão libertar-se pela deformação ou pela fuga no vazio das formas geométricas e das relações matemáticas” ( Newman, 1992:572). Essa missão histórica falhada estaria, segundo Newman, a ser levada a cabo na América, onde, livres do peso da cultura europeia, os artistas podem negar “toda a relação entre a arte, a beleza e a procura da beleza”.