Debates moderados por António Guerreiro
dedicado a
Manuel Rodrigues, Sénior
– pelos seus 85 anos
APUD — UM) A FIGURA DO CRIADOR
E O MUNDO DA ARTE
Manuel Rodrigues
Outra vez, quis saltar um brejo
*
mas, já ia a meio, notei que era bem maior do que supus; puxei as rédeas ainda no salto para voltar à margem e tomar mais balanço. Não fui feliz naquela ideia
pois, em vez de cair à terra, atolei-me em pleno no pântano até ao pescoço. E certamente seria defunto se, agarrando pelo rabicho do cabelo, não me tivesse dali erguido com o braço do meu próprio músculo – a mim
e ao cavalo, que apertei fortemente entre os joelhos
A ocupação de professor de potenciais artistas, a de orientar alguns já em acto, mais o convívio próximo com tantos outros de tão diversas áreas, têm amiúde levado a confrontar-me com diversas questões sobre a criação. Algumas reatam antigos dramas platónicos, cujos supostos, por exporem à eventualidade de uma clara tomada de posição, ainda se mantêm basilares. Contudo, para os mais implicados no mundo da arte, representam também, simbólica ou literalmente, um conflito que corrói o entusiasmo e arma ao ácido azedume. Ao longo dos anos, algumas observações teimam em manter-se e a repetir-se em torno de dúvidas (ou suspeitas) difíceis de satisfazer ou anular. Por exemplo: que legitimidade tem, para decidir da criação, artística ou filosófica, quem afirma ou denota que não aprecia teatro, instalações ou não percebe a poesia? Não se deveria supor a sensibilidade a todas as formas de criação em quem sobre ela pense falar? Não implicará a capacidade para criar, ou o desejo de saber, uma compreensão crítica de exemplos históricos? Interrogações que teimam em ressuscitar sobre a relação entre artistas, entre estes e os críticos, ou teoria e arte, e entre tudo isto no mundo da arte – mas, também, vindas a propósito da própria função e modelo disciplinar na prática pedagógica – o que numa escola de arte todos envolve.
1. o mundo do trabalhador . Jünger e Arendt
No esforço para compreender a geração da obra e o
acto poiético, e o que se lhes associa pela sua integração na vida e na época, acabei por chegar a um esboço suficientemente satisfatório para uma abordagem sumária. Para o ilustrar, apoiado num certo conceito de
trabalho, tentarei mostrar como pode a
figura do criador servir este debate – que, aliás, creio ser ajustado às preocupações sobre o actual estado da cultura. Interessa-me especialmente a articulação do
trabalhador com a realidade do
artista, mas também com a do teórico
2
. Para isso, usarei como degraus algumas notas de leitura de dois textos: um, de 1932,
Der Arbeiter, Herrschaft und Gestalt(T.), é de Ernst Jünger, o outro, de 1958,
The Human Condition(C.H.), de Hannah Arendt
3
.
Em Jünger, no contexto de uma narrativa sobre a transfiguração do homem – segundo uma leitura do pós-guerra, de que antecipa o fim da Era Dourada –, projecção profética do que vê já em andamento, o
trabalhador representa a vitória de uma nova energia vital que planetariamente se configura revolucionária, ao atestar e completar a superação do indivíduo burguês – anunciando “
ao mesmo tempo, o último lampejo da alma cristã” (T. 199). Aqui, na medida em que se torna trabalhador, o artista destaca-se ao mostrar-se capaz de
renunciar à individualidade
4
. A sua posição, no entanto, não deixa de ser privilegiada dado supor elevação de plano: distingue-se ao ser particular representante da figura, mas também como ‘apresentador da figura’ – é à arte que cabe mostrar que a vida“
é concebida como totalidade. Daí que ela não seja nada de destacado que possua em si e a partir de si validade, mas considere todos os âmbitos da vida como material.” (T. 2o3). A arte é propriedade da figura do trabalhador (T. 2o9) e o artista
5
o que sabe que na renúncia à individualidadeestá “
a chave para um outro mundo que não se submete à crítica através dos padrões tradicionais”, uma “
chave para espaços cujo conhecimento há muito se perdeu” (T. 21o /214).
Também com a história em pano fundo, numa interpretação bastante estimulante, Hannah Arendt tematiza a figura do artista como exemplo do
trabalhador, i.e.,
a única excepção que a sociedade tolera num mundo de operários (C.H. 152)
6
, em que os valores da labuta pela sobrevivência e re-produção, como pela protecção e preservação do mundo que tal sustenta (C.H. 125), se juntam à tendência para reduzir ‘
todas as actividades sérias à condição de prover o próprio sustento’ – o que, diz,
‘é evidente em todas as actuais teorias do trabalho, que quase unanimemente definem o trabalho como oposto do lazer’ (C.H. 152)
7
. Arendt propõe-se defender a arte de um cerco, que a força e as teorias do labor lhe montam, tomando-a por
hobbydo ócio, paixão temporária ou distracção passageira – despindo-a da capacidade redentora que, crê Arendt, ainda conserva
8
.
*
Destes textos acolho indícios sugestivos para o desenho de uma
figura do criador
9
, organizada em torno de certa noção de
trabalho que aproprio e retomo noutras feições. Da especulativa ‘figura do trabalhador’
10
sublinho o abandono do indivíduo como caduca herança burguesa; julgo digna de nota a proposição da arte para configuradora do ‘mundo de trabalho’ e a noção de ‘trabalho’ como
modo de vida
11
– numa visão não romântica, sem qualquer sentido moral, nem conotação com a actividade técnica, ilimitado como
o dia abrange vinte quatro horas, e expressão total“
de um ser particular que procura realizar o seu espaço, o seu tempo, a sua legalidade” – “
que se ergue violentamente para além de todo a economia” (T. 1o8). A abordagem histórica e as referências de Arendt à potência de contemplação/acção – que, por demissão ou mera incapacidade em ultrapassar o estado potencial, quiçá já nem exista
12
– e seus ‘inimigos’ e/ou obstáculos, são fundamentais
13
; subscrevo em especial a noção do trabalhador como salvaguarda da regular diálise do senso venoso produzido pelo sistema do labor e seus mecanismos de perpetuação. Nos dois, a assimilação do conceito de
trabalho a uma contínua e exigente experiência da vida
14
, e a separação radical entre
trabalhoe labuta, em seus respectivos ‘mundos’, serão particularmente apropriados para o esquisso da figura
15
que procurarei aqui traçar.
2. a figura do criador . skholé, desvio e crise
Ao pensarem o
trabalho na sua articulação com a
poiesis, Arendt e Jünger deixam em estado vago o momento da formação da figura, tanto na história como no decorrer da vida daqueles a que se adequará. No entanto, a
figura do criador, não será completamente equacionada se abstrairmos a génese da sua forma. Dado ser deslocado inquirir aqui por extenso sobre a formação da figura, indicarei sinteticamente o que me parece caracterizá-la, tal como a entendo.
Antes de mais, genericamente, convém contar com uma sensibilidade aguda ao meio mas também com as respostas expressivas que este desperta (é através delas, aliás, que se aferirá do potencial impressivo de cada corpo) – o
pathos, portanto, e o seu
ethos. Convém depois ponderar o espaço de crescimento. Aí intervém a situação de
skholé, tempo de exploração de si e do mundo, de interrelação com os outros, como de treino disciplinado de acções conjuntas ou de técnicas particulares – tempo que pode estar já no convívio da família, nas brincadeiras com ‘os da idade’, a que se associa e em que se integra a ideia da
escola, mas que também informa a sempre latente ordem militar; é durante este período que se destacarão os candidatos a corpo da figura. Estas são as suficientes condições para adaptar uma aptidão, ou tendência manifesta, à criativa resolução de problemas, à iniciativa inventiva ou à imaginativa forma de expressão – sendo aqui variáveis as sensibilidades de portador e destinatário.
Ora, um criador não é hábil criativo ou virtuoso no uso de um meio, qualquer que seja – como não é um desses raros comunicantes com espíritos no além e da natureza, como xamã terapeuta, profetas e sacerdotes de todos os tempos. De acordo com a sua origem na história, é preciso imergir esta disposição assim achada num meio em que o
desvio, mais que tolerado, seja eventualidade procurada; dar-lhe uma ‘cultura instável’ por ambiente de maturação – esse traço é o de uma sociedade complexa e aberta, e é herança da tradição clássica grega
16
. É aí que
skholé se concebe tanto como destinada à aprendizagem lúcida sem pressões, como a exercício de lúdica sobriedade, ‘jogo (a) sério’, o
spoudaiôs paizein – coração da pedagogia filosófica. Porém, aí, quer o período de apropriação de gestos técnicos, da representação por repetição (
mimesis simples), quer o dedicado à manipulação da plasticidade gramática, de sintaxes, códigos e discursos, ou do sentido dos princípios rigorosos (
mimesis complexa), são ambos tempos supervisionados, de relativa heteronomia. A aprendizagem na abertura do desvio é, pois, tanto a dos modos de desviar como a da forma de lhes obedecer; e, entretanto, quem se dispõe a ‘instruir’, avalia e separa os que parecem ‘prometer mais’. De facto, a
skholé – tempo desocupado, em relativa paz tranquila e suportado numa folga económica (ainda se, lembra Arendt, marcada pela frugalidade
17
), fora da necessidade da labuta e afastado de intervenções mais públicas – só nalguns se prolonga em modo de vida, ou só alguns manifestam suportá-la. Exploração da potência criativa em escolástica laboratorial é o que parece resumir a actividade do
sábio pré-socrático (ou pré-sofística). Contudo, esta adulta desocupação – já distinta da que está na origem das figuras da crença –, com um papel inestimável na reprodutividade, enquadrada ou não em estrutura ‘escolar’, ainda nada implica de
acto poiético; o que o prefigurará é inapreensível sem aquele século irritantemente incontornável, mais as suas exóticas personagens: Sócrates, os sofistas e Platão.
De facto, o que melhor permite discernir a complexa criatividade, re-produtiva ou combinatória, da actividade poiética que a tradição investiu na
figura do criador
18
, tal como a entendo, encontra-se já no seu próprio parto sobre as brasas do século -V, pois sobrevém da
criseque a sofística põe a nu. É a partir desse acontecimento que melhor se pode conceber o criador como trabalhador, como alguém que conscientemente se sujeita a um ‘plano de trabalhos’. Cumprindo o desafio socrático, i.e., de quem a viveu, só em
crise
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pode cada um questionar a identidade que toma por
imago sui, e ver nela o ferro da heteronomia, sofrida passivamente por insensível impressão lenta, por se ser sativo desde semente, quase autómato social. É neste momento que, na sua evolução, o ‘trabalho laboratorial’
pode passar de instruída e industriosa curiosidade criativa,
naïfsempre de algum modo, ao
trabalho criador. Como cisão da identidade, a
crise é tanto ocasião para dar início aos trabalhos pela revisão crítica de si, como para recusar, negar ou fugir deles, por medo de perda – ou mesmo do implícito sacrifício do já conhecido e assegurado. A
crise é, assim, também ocasião de revelação dos que não toleram saber-se frutos de acasos circunstanciais (e decidem aí levar em mãos o seu destino) e dos que não só não conseguem, não querem ou não podem arriscar a identidade que uma tal decisão acarreta, como vêem no ‘vale-tudo’ da lei lassa oportunidade para beneficiar de ignorantes e mais ingénuos ainda
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; para se exclamar, com ganhos extra no bom nome e estima pessoal garantida.
Se nem todos estes se auto-excluem do espaço escolástico, tal não se dá apenas por pretenderem montar o negócio junto aos ainda impreparados. É também por se crerem, apesar da recusa ao
trabalho, igualmente capazes de criar – de todo o modo, de brilhar na fama e com proveito: a aproximação à (suposta) fonte que estes buscam é equivalente ao afastamento procurado pelos que nela bebem. É nesta trama, pedagógica, política, ética e poiética – horizonte da escrita platónica, em clímax no
Protágoras –, que, a meu ver, se pode encontrar a fronteira entre consciências cínicas
21
e críticas, carência criativa e potência criadora
22
(talvez como o
animal laborans e o
homo faber, na linguagem de Arendt, ou a ‘espécie passiva’ e a ‘activa’, em Jünger). Só as segundas se propõem à
metamorfose, na exigência de superação de si e do herdado
23
, até à sua decomposição. O êxito da empreitada, neste contexto, é de todo alheio ao que trabalha – como de resto será, para aqueles que o pretenderão superar, a vera intenção, ou o autêntico profundo desejo, ‘do próprio autor’ após dissecado. Para este percurso, ainda assim, será sempre garantido, mas para todos os outros opaco, um máximo de
saber – adquirido tendo mestre, já autónomo aprendiz ou em ortónimo anonimato. Por isto,
o criador,ainda se associado ao tempo escolástico, não é institucionalizável
24
.
3. a figura do criador . o fim dos tempos
Ao terminar a
República, Platão, pela boca de Er, narra como no além as almas decidem a vida seguinte em função da prévia. Refere aí que Ulisses, o que faz a melhor opção, lembrado dos seus trabalhos, “
quis descansar da ambição, e andou em volta a procurar, durante muito tempo, a vida de um particular tranquilo; descobriu-a a custo, jazente em qualquer canto, e desprezada pelos outros; ao vê-la, declarou que faria o mesmo se lhe tivesse cabido o primeiro lugar, e pegou-lhe alegremente.” Nada melhor designa o destino desejado pelo sábio, a finalidade da sua busca. Uma vida simples sem ambições é, pois, o que se segue à autónoma re-aprendizagem crítica da identidade, i.e., a uma necessária complexificação
25
. Para lá chegar, portanto – e não é acaso que a escolha de Ulisses simbolize o regresso –, a etapa final do
trabalho, como a derradeira viagem/vida de Odisseu, será a da
simplificação da consciência (a da decapitação do ego) até à presença mínima, máxima leveza e concentração
26
.
Posto isto, os que conscientemente se aventuram numa visão crítica do mundo (e na revisão crítica de si como programa de superação do vivido e do herdado), perceberão cedo que o seu ímpeto, por acordo com o seu próprio fim, acarreta a renúncia a alguns prazeres e distracções – nunca a da alegre loucura acompanhada –, mas também, dada a metamorfose implícita, acarreta um trajecto, de
imago em
imago
27
, e diferentes disposições à medida que se avizinha o acabamento. Envelhecer, porque é também disso que se trata, não deverá ser só ganho em sabedoria; para o que começa no espanto (não pela crença) e termina em preparação para a morte (para a qual se vai ainda no espanto, e na mesma descrente de esperanças vãs), chegar ao fim em inocência, livre de culpa e pecados, representa também o desejo de contacto não mediado com o que existe aquém da realidade. É suficiente, diz Jünger,“(…)
dedicar um único instante a uma qualquer pedra, a um animal ou planta, para conceber que habita nestas criaturas uma completude insuperável” (T. 211).
4. a consciência da insignificância . é difícil de assimilar
A figura do criador, trabalhador (mais que, e antes de, e nem sempre, ‘operário’) poiético, sugere uma típica e rara disposição perante a história e o tempo. Com a história, por lhe ser território do qual adquire alimento/alento para a metamorfose; com o tempo, no decurso do trabalho, pela experiência das diversas intensidades – cada fase é andamento, cadência, lente temporal pela qual vai lendo a história e a mutação de si próprio; mas também, pela profunda sedução, ao longo deste processo, pelo brilho único das origens e pela obscuridade de todos os fins. Hoje, mais que nunca, o criador traz sobre si a certeza da absoluta perda, na memória e da história, e a certeza na total vacuidade da integral do rasto humano – todo esforço, sofrimento, renúncia, sacrifício, saber, obra ou glória. Esta é mesmo, aliás, a mais dura pedra-de-toque: teste radical para a resistência da consciência e decisão de trabalhar (ou não), como para todas as etapas da evolução do próprio trabalho – é a resposta contínua, a cada momento, que avalia a potência do desenho, o pulso ao desejo que o traça e a energia para (nessas condições) continuar 28 . Nada aqui há de severa e franzida solenidade, em nada falta o jogo, a mentira em brincadeira e fingimento 29 ; a verdade, só enquanto arde. Humor e ironia, disposições agónicas, são a voz da possível sobriedade; não há salvação ou consolo – só o conforto por se saber acompanhado, e o adicional de gozar e aprender das obras que outros deixaram. Para quem se queira parente dos que alegaram ter vislumbrado a luz quando procuravam uma ideia, ou se faz arauto desta tradição, exibir o garrido erosdeste ethos(sem utopia maior que, criticamente, elevar-se do ‘pântano’) é o mínimo: dívida herdada a pagar no modo da intervenção política e/ou no da acção pedagógica. O criadordedica a vida a integralmente estar nos seus tempos todos, disposto a arriscar tudo por isso, e a sacrificar-se pro bono e quia, a exemplo dos que na história vê como afins. Esperança nenhuma (por isso, nada a desesperar), expectativas só muito mínimas, a exigência sempre no máximo. Mas, haverá ou houve alguém que realmente consiga suportar isto? Só em sentido figurado. Uma figura é assim, dá para moldar. E teremos de abstrair excessos e os exageros – mas nem só estes são incompletas ficções.
*
5. o mundo da arte . e mais notas em rodapé
Entre os que a si próprios se ergueram acima das águas paradas e, para regalo e lição de todos, ainda navegaram a superfície das que agitaram, o
criador é, por tudo isto, a figura mais bem póstuma. A criatura a que esta sirva só será reconhecida muito após já ser passada
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– e, ainda assim, será provisório. Resta que, para completar, o valor da
obra desse
trabalho, caso exista, se afere antes de mais pelas virtudes didácticas que na posteridade assuma, enquanto sinal de ruptura ou subversão do legado,
desvio crítico exemplar; para uso na escola, portanto e primeiro, mas também, até por isso, para o tempo livre daqueles que a si próprios se desejem conhecer melhor. Aí, nos intervalos da labuta, por entre os tempos do
trabalho e nos de
skholéobrigatória (ou bem forçada), as
obras mais não são que meios para aprender a apreciar o que vem com a vida. Ora, para esses ‘tempos de sobra’, a oferta é agora muita e também outra; apesar de a procura parecer padecer dos bens e males de outrora.
Mesmo se ficássemos no final do século XIX, da conjugação de tudo o que até então ‘arte’ evocou, na histórica multiplicidade e riqueza das formas, resultaria já um denso mapa de domínios dificilmente exauríveis. Desde então, a lenta diluição do conceito
31
fez dele um charco; fora das margens indefinidas talvez nem fique o que ainda não foi explicitamente reivindicado – o que tem sido, aliás, motivo de excelentes provas de ironia crítica de autores conscientes do que os rodeia
32
. E, porém, parte deste caldo resulta da progressiva assimilação de uma série de rupturas que se vieram a dar desde meados desse século
33
. Mas, para apreender essa assimilação, é ainda necessário integrar os principais factores determinantes na emergência deste ‘novo mundo’: nas sucessivas revoluções tecnológicas
34
e constantes ‘saltos científicos’ em todas as áreas e domínios; nos actores e tendências efluentes das emancipações feminina e das minorias reprimidas ou recalcadas – factos tão extraordinários como foi a abolição da escravatura; na recuperação de inúmeras facetas das tradições locais mais primitivas; a libertação sexual, a experiência psicadélica, atómica e cosmonáutica; nas reacções pacifistas de defesa do ambiente e de retorno à natureza. E tudo isto em progressiva fusão de que nasce uma cultura marcada pelo inédito protagonismo da juventude, o que se repercutiu na imensa massa escoada de academias, conservatórios, universidades, ateliês e escolas fora do
establishment, a que o
mundo da arte haveria de dar abrigo.
Todos os factores considerados, a revolução nos leitos populares do clássico rio da crítica só dificilmente teria resultados que não aqueles que se observam: o
mundo da arte, paul em charco, na atmosfera do cínico liberal – com ou sem grandes narrativas ou manifestos libertários –, não poderia ser-lhe impermeável
35
. Neste contexto, o facto de a arte contemporânea passar a ter, desde os anos 5o, mais procura e valor de mercado que a antiga, ou de a lenta transfiguração do artista se reflectir na re-valorização da
obra, também ninguém deve admirar. Uma obra de arte era até aí valiosapelo que trazia de marca póstuma de um fazer culto e dos zelos continuados, de testemunho de época, prova de resistência ao desgaste, mensagem afortunada, imune ao desastre – cápsula de tempo/acontecimento sacro. Por pressão da cultura, o valor foi trasladado para o que é tido como ‘mais perto de amanhã’,extraído ao futuro– pois, novidade é o que de lá vem (sendo lá muito melhor). Desde que a tecnologia se tornou sinal de salto qualitativo em corte com o passado, o
homo sativo cultiva uma noção de novidade
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que já não prescinde de ter como ambiente contínuo. Entretanto, porém, muito deste cenário levedou.
Em 1995, estava-se ainda sob efeito da
Physical Impossibility of Death in the Mind of Someone Living, num congresso de estética, pude abordar Arthur Danto, entre cafés, sobre a figura do
mundo da arte. Se o conceito (que ele introduzira em 64) respondia à realidade empírica, certamente haveria como perceber o que ficava na orla dos seus limites – não teria negativos? Retive uma ardente explosão de inferências com que pretendia que supermercados, aeroportos ou centros comerciais se vissem como lugares de arte; deixei-o com a mesma ingenuidade. Certo é que, de então para cá, nesse mundo tudo confluiu e fervilha numa espécie de difuso parque temático para quasi todo tipo de propostas, do efémero ao industrial. No seu retrato mais comum é representado como corrupio de egos em negócios de traficância; um maná para coleccionador, patrocínios ou beneméritos mecenatos, programador, editores, distribuidor,
marchands, comissários... e, em caudal proporcional, académicos e/ou críticos e/ou jornalistas, mais ou menos a soldo, como se diz, de vários interesses variáveis. Entre artistas e o seu público virtual, por feiras, leilões e mostras ou festivais, nas ‘metrópoles’ sobretudo, zumbe um bazar darwinista em que as obras, tal qualquer outra mercadoria, sobrevivem na bolsa conforme à crença da tendência, mais à força da procura e à do
marketingencomendado.
Ante este panorama, qualquer observador quererá separar trigo de joio; o culturalmente mais equipado perguntar-se-á em que é afinal a arte – para lá da explosão de formas e modalidades de expressão, dos meios e do aparato (o que, somado, não é pouco) –
essencialmente distinta hoje. Mesmo entre jovens artistas, tal dificuldade cruza-se com a simples falta de bases que permitam discernir a linha que separa o
mundo da arte do do entretém, ou de mero nicho de mercado
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– confusão para que contribui, pela sua gestão e discurso, o confrangedor esclarecimento político habitual. Os mais velhos, lamentam-se amiúde do manancial de contrafacções e, com mais ou menos fleuma, desconfiam da qualidade da enorme maioria das propostas plásticas apresentadas como arte. A academia, que deteve o monopólio da legitimação da arte e do artista, sofre há já bastante de dores perplexas com que não convive sem dificuldades.
Nada admira se alguns diagnosticadores tomem tal situação por sinal do declínio da cultura
38
, senão como causa primeira de toda a morbilidade civilizacional
39
. É o diabo, e o inferno – ainda que, quiçá com menor esforço, se pudesse reduzir o mesmíssimo à quase linear consequência do mero alargamento do território e habitat da cultura que lhe está na base. Dizia Jünger, ainda em 32: “
pior não é que em torno de cada casca abandonada (…)
se reúnam conhecedores, coleccionadores, curiosos e conservadores. No fundo, sempre foi assim, mas numa escala mais modesta” (T. 193)
40
. Mudemos, pois, de escala.
3.1. reconhecimento, obra e imortalidade
1. Na corrente associação do
mundo da arte a farta feira de vaidades, na carga moral dos juízos condenatórios, actos genéricos e generalizadores, há tanto de inveja (e, portanto, mais do mesmo) como nada de critério digno de avaliar a ‘arte’ de qualquer obra. Contudo, vista do
trabalho, em perspectiva extra-moral, a procura de reconhecimento para notoriedade – tenha motivo em fé no valor da obra, origem no antegosto dos aplausos e do prestígio, ou na razão do mensageiro por justa causa –, é ingenuidade, ignorância e ânsia juvenil ou, então, sinal de fraude; fraca figura, se comparada à do criador
41
. A noção de reconhecimento, no trabalho do criador, não é a condenada por Platão como busca da fama, que se associa à imortalidade; na sua própria obra, aliás, se percebe o reconhecimento, não como algo que se espere, queira ou peça para si, mas no que a outros é devido – com o sentido do agradecimento, de quem sente endividado. Ora, este reconhecimento devido
faz-se: faz-se como se examinam pistas, como faz batedor em território novo ou o retornado à Ítaca há muito longínqua, já meio esquecida – na aventura e na nostalgia, Ulisses é nuclear. Não só como processo individual de apropriação crítica, da herança culta
e de toda a outra, mas, também, como participação no
cadavre-exquis, mantra e mandala na tradição desta cultura – um rio de apostas em curso, algumas já transformadas em propostas (como desvios críticos), sobre o melhor desenho para a vida, em qualquer dos seus aspectos e momentos, pensando em todos.
2. Ora, a ligação do reconhecimento ao
mundo da arte é mediada por outro factor, sem o qual esse ‘mundo’ desapareceria, mas não a criação: a
obra é o único meio necessário e suficiente, por ser feita e apropriável (nem que seja só sensivelmente), para justificar moralmente que se peça ou espere reconhecimento. Contudo, é estimável que, caso este
mundo da arte sumisse, semelhante quantidade de energia fosse consumida, de outro modo, para o mesmo exacto fim – chamar a atenção para si próprio ou para a causa (felizmente, sempre a boa). Haverá os que pretendem dar e não acham quem receba, e quem querendo receber e não encontre ninguém a dar; mas, o ‘reconhecimento necessário’ (não o devido) é a moeda moral mais corrente no universo humano, o que faz mover a vida ordinária
42
. A obrajustifica o pedido de reconhecimento como o desenho que criança faz para a mãe, o exibicionismo comparativo dos adolescentes, ou os rituais de acasalar
43
; o fetiche da obra é doença que paciente leva ao consultório
44
. Para o
criador, segundo esta figura, a obra, inscrição (plástica ou teórica) na vida, pouco mais é que pele da muda metamórfica
45
; o seu destino é praticamente irrelevante para quem a larga. Esta imagem do fruto caduco do
trabalho ocupa, nesta figura, uma posição simétrica ao do reconhecimento devido a outros – que, portanto, nada se refere à obra própria, senão, e será mais que suficiente, por ser-lhe fonte de nutrientes.
3. Antigamente, e decerto em vastos casos ainda assinaláveis, a ponte entre a obra e o aplauso das atenções era de gelatina metafísica que esticava desde o reino dos céus à toponímia da
polis. A imortalidade, presa à fama e à glória, foi por séculos, um acordo tácito ‘espiritual’, espécie de bênção que cobria qualquer transacção interessada por nobre causa. Declarando justa uma sensível recompensa pelo esforço ou proeza, o decreto popular aceitava que se penasse por ela, no campo de batalha, na arena como mártir... atrás de piano ou cavalete. Acontece que a crença na
eterna continuidade individual anda pelas ruas da amargura, como a proto-utopia da
continuidade da vida. A morte nunca foi desgraça para quem contemple ‘a totalidade do tempo e do ser’
46
, porém, a imortalidade – e,
en passant, a durabilidade das obras (feitas durar ou feitas para durar), como Arendt sublinha –, supondo que sempre nascerão novos batedores e zeladores, radica na crença oculta de uma
eterna continuidade histórica
427
. Ora esta mais a da vida e a da alma, mitos universais, são anestésico para a carência dominante; sem eles, exsudaríamos pavores e pânicos, com medos enormes. A continuação será, até ao fim, o verdadeiro
totem da humanidade – nela, porém, a criação do trabalhadornão poderá ser senão
ad nihilum.
O
mundo da arte, espaço sem história, vocacionado ao futuro – como o da finança – não é só tanque para fraco desejo e falsas propostas de ‘criação’ com o ar, pavlovianamente condicionado, de novidades
48
; é, portanto, e também, um espaço sem chão, sustentado na comum
carência de continuidade – extensão mais profunda da
carência de reconhecimento de que este tem de se alimentar.
*
Apud . um mundo à parte
O
mundo da arte, tal foi configurado, ostensivo mercado de carências, e a
figura do criador – prova de excepcional potência –, são representações aparatosas de uma realidade que é, também, em ambos os casos, sobretudo junto à margem, muito mais rica. Por um lado, porque esta figura não fica completa sem que se sublinhe que o acto poiético, entendido como ideação ou como fazer actual da obra, não consome todo o tempo de
trabalho
49
: como trabalhador, o criadortem por matéria e ferramenta a sua transfiguração — o orgasmo místico, ou
eureka, é mero efeito (poderoso é certo) de um labor localizado, imprevisível consequência do
trabalho contínuo. O desejo não está nas mãos nem na cabeça, no sexo ou no coração: está num corpo e num acontecimento ligado a outros, conforme a sorte que aí haja. Por isto se há-de crer que existam sempre consciências críticas, dedicadas ao trabalho do reconhecimento, sem que de tal deixem evidência – no bom leitor, num caro amigo ou em vizinho pronto ao socorro. Nem todos os ‘capazes de teoria’ são capazes de arte, nem todos os que serão ‘capazes de arte’ o serão do mesmo modo de teoria; mas o
trabalhado de si não precisa destas provas – como naquele que me parece ser o primeiro a merecer encarnar a
figura do criador enquanto trabalhador, i.e., Sócrates. Por outro lado, à margem do
mundo da arte, há situações e circunstâncias onde encontramos estes seres discretos a criar acontecimentos e encontros, testando o valor do desvio, dando a ver e escutando, partilhando e propondo o máximo de atenção, exame e debate. Esse mundo paralelo, clandestina resistência à carência, é tão escolástica ocupação adulta como a
skholé organizada na libertação de potências
50
. À história dos criadores apenas se chega via
apud, por ouvir dizer, por ler ou vendo como fazem os que são estimados, desperto e curioso para as falas do entusiasmo com que evocam o que ignoramos.
Como na satisfação de carências básicas ou na exploração dos limites do possível, a libertação do desejo não se dá sem outros; estes, presentes ou ausentes, melhores serão quanto mais suscitem desafios. O criador configura a disponibilidade dos que de si extraem o sentido que expõem à apreciação – gozosa e luminosa, obscura ou dolorosa – e ao exame aprendiz de outrem. Destas disposições deve esperar-se que, exigindo de si, se ponham ao lado (
apud) de todos, por palavras, ou actos e obras, como pelas omissões.
O que consigo enxergar para o
último trabalhador, é o único papel de silencioso remetente de enigmas e labirintos, subversor de todas questões e despertador das piores dúvidas: sismo da querença, a espora dos desejos
51
. A eventualidade de o corpo físico desta tradição devir comunidade crítica, um organismo excêntrico de vivos e mortos (a sua maioria e melhor memória) é muito nula; há crenças e produtos em quantidade para cobrir todo tipo de carência, como para, logo aí, abafar o desejo em sativo estado obediente. Contudo, a cultura crítica clássica mantém implícitas expectativas dirigidas aos que crêem não ter potência para caberem nesta
figura: que dêem boa atenção ao
fim inscrito na sua disposição, que discutam e reconstruam, das ruínas ou pelos fundamentos, a necessariamente passiva identidade, retalho de acidentais sedimentos
52
; de preferência por vida simples, sem ambições maiores que fazer-se digno do melhor legado humano – e de tão absurda maravilha, que é viver e saber bem isso, não tendo medo. Aos candidatos a criadores, de quaisquer escolas, disciplinas ou tendências, o exigível não é que liderem
a revolução, que sejam curandeiros das almas, consoladores de mágoas ou magos visionários dum só futuro. Mas, com certeza, nunca será que se finjam cegos para não terem de responder pelo que todos vêem.
Nesse mesmo ano houve um destes frios cá pela Europa que até o Sol sofreu frieiras. Ora, acontece que, tendo entrado por caminhos estreitos e escabrosos, com largas e fundas valas por ambos os lados, gritei ao cocheiro que fosse dando sinal pelo cornetim, a fim de avisar uma qualquer outra carruagem que de frente viesse de encontro a nós. E o jovem correspondeu, e até vigorosamente; porém, os longos esforços foram debalde. Nem um dó dali sortiu (…) Ao chegarmos à estalagem, o moço pendurou lá a trompeta num prego da chaminé e, enquanto menos esperava,trarétá, tátaré-tatá! pôs-se-lhe a coisa a soar alto, sem que ninguém nela tocasse. Quedou-se ali atónito até sacar todo o sinónimo de fenómeno tão desigual. É que as notas se haviam regelado e, ao pouco a pouco, degelavam evaporando-se ao calor que as dava claras e assim sonoras. Todos muito o felicitámos pois, por uns trinta e tal minutos, o seu interessantíssimo instrumento tocou excelente exacta música, sem qualquer precisão, para tanto, de haver quem nele fosse assoprar. 53
* Baseadas na vida de Karl Friedrich Hieronymus von Münchhausen – um marialva, entre a corte alemã e o exército russo, que regressa da guerra na Turquia com uma mendácia que ficou lendária —, As Aventuras do Barão de Münchhausen têm várias versões: a primeira terá surgido em Londres, em 1785, da autoria de Rudolf Erich Raspe. A mais conhecida versão resulta de uma apropriação do poeta Gottfried August Bürger; os dois episódios usados, no início e no fim, são minhas adaptações desta.
Na imagem: uma das Kopfstücke, de Franz Xaver Messerschmidt, circa 178o, 69 peças executadas após estudar ao espelho as expressões que sofria enquanto se auto-aflige por diversas partes do corpo. Atormentado na ideia de proporção, conseguiu, para este projecto de trabalho, perder o lugar de mestre na Real Academia de Viena.
2 Razões para não distinguir as diversas formas de expressão plástica não faltam – quer por muitas vezes se acharem entroncadas (e não apenas nas artes performativas, como o teatro ou o cinema e a música) em obras que nem por isso são de qualidade ambígua, quer porque há quem consiga elevado grau de conseguimento em múltiplas formas de expressão. Mas também há bons motivos para não distinguir estas da actividade teórica sobre o que as gera: um, está em que o esforço para pensar o que seja válido para todas, evitando a dispersão por especificidades, permite à reflexão que se coloquem e foquem as questões no acto poiético que as qualifica; outro, já supondo isto, porque tal como a apropriação de diferentes gramáticas prepara para melhores compreensão e expressão da que em cada um predomina, também na construção teórica a integração das diversidades permite um rigormenos mortis– na medida em que é sempre póstuma e adventícia. Nada impede a teoria de se expressar com elevada qualidade poética – é o caso exemplar de A magia que tira os pecados do mundo, de Alberto Pimenta, preciosidade rara no reino de toda a teoria estética –, e parece evidente que o trabalho que subjaz em ambos os casos só tem a perder se prescindir de um mínimo convívio culto com todasas formas de expressão, de preferência se mais ricas e complexas, até na sua simplicidade (em qualquer caso, sempre enquanto desvios críticos).
3 As citações referir-se-ão à paginação das edições portuguesas — O trabalhador, Domínio e Figura, Ed. Hugin, Trad. A. Franco de Sá, Lisboa/2ooo, e A Condição Humana, Ed. Relógio d’Água/Antropos, Trad. Roberto Raposo, Lisboa/2oo1 –, de que, contudo, nem sempre acompanho por completo as traduções.
4 “ O que só significa empobrecimento para quem nessa perda reconhece a morte.” (T. 21o).
5 Em Jünger, as noções de ‘arte’ e ‘teoria’ (conceptualmente não isolada) não parecem supor qualquer significativa diferenciação; a figura do trabalhador encontra nelas a dimensão do potencial criativo tout court, ainda que “ uma sensibilidade formada no desempenho individual e no carácter único [a do burguês com suas peculiaridades] , dificilmente representará o tipo numa zona em que a consciência seja domada pela força criativa”. Aliás, a arte é exactamente descrita como “ expressão de um sentimento vital poderoso[semelhante] à linguagem que se fala sem a consciência da sua profundidade.” (T. 2o9). Naturalmente, esta prospectiva não prescinde de contrapartida crítica para com o que (então) se passa; Jünger é bastante claro, “ a crescente rendição da arte teria necessariamente de produzir a intuição de que a manifestação artística pertence aos testemunhos essencialmente individuais. Esta concepção alcançou o clímax no culto do génio do século XIX. A história da arte aparece aqui sobretudo como história da personalidade; a própria obra como documento autobiográfico”, ou ainda: “ É esbanjado no nosso tempo um imenso esforço a gerar coisas que não se podem gerar só pelo esforço. Correlativamente, deparamos com a exigência inadmissível de ver já um desempenho no puro esforço, atrás do qual, no limite, se esconde a vontade de peculiaridade a qualquer preço. (…) tem de ser vigiada de perto uma classe artística que não participa em nenhum dos velhos valores, mas vive à custa deles” (T. 199).
6 Tanto quanto sei, terá sido em 1888 que William Morris, num discurso proferido emLiverpool – A arte e os seus produtores – estabelece, pela primeira vez, ainda que com fraca conceptualização, a distinção entre labuta e trabalho – em que claramente se associa este ao fazer artístico. Trata-se dum curto texto em que já se reconhecem, na descrição do conflito entre o mercado e o ‘homem livre’, indícios do que ainda hoje se vive. Diz Morris, logo na abertura: “ O incentivo ao trabalho tem sido geralmente entendido como a necessidade de sustento, e na nossa sociedade esse é efectivamente o único incentivo para os trabalhadores que produzem mercadorias com aspirações de algum modo artísticas, mas a verdade é que é impossível que os homens que trabalham nestas condições produzam obras de arte genuínas (…) será preferível que estas mercadorias abandonem qualquer pretensão artística e que a arte seja restringida a assuntos sem qualquer função a desempenhar, excepto existir como obras de arte – como as telas, as esculturas e coisas semelhantes; ou, em alternativa, que ao incentivo da necessidade se juntem os do prazer e do interesse no próprio trabalho.” VideWilliam Morris, Artes Menores, Ed. Antígona, trad. Isabel Donas Botto, Lisboa 2oo3, p. 111.
7 Arendt, portanto, está a definir um conceito de obra de arte que não a reduz a anónima mercadoria, ou a sui generisproduto da criatividade imaginativa: não é uma contribuição do ‘operário intelectual’ ao serviço de emancipação, nem participação produtiva que se autoriza no e pelo mundo da arte. Por contabilizar estão ainda as consequências das ideologias que, mais ou menos diluídas, continuam a marcar posições nas barricadas da teoria e da prática artística – passar, como camelo, pela ranhura desta agulha é a via do trabalhador. Apesar de outorgarem distinção ao ‘intelectual’, as ideologias da verdade (históricas ou metafísicas), tendem a fazê-lo apropriando-se da autoria como parte carismática da sua autoridade, demonstração de força e vigor, e, nisso e por isso, a ditar-lhe as leis da forma – ainda que exibindo apenas as da expectativa. Um Index surgirá sempre, lado a lado pragmas e dogmas, de cada novo ressuscitado verdadeiro catecismo.
8 “ Se o ‘animal laborans’ precisa do auxílio do ‘homo faber’ para atenuar o seu labor e minorar o seu sofrimento, e se os mortais precisam do seu auxílio para construir um lar na terra, os homens que agem e falam precisam da ajuda do ‘homo faber’ na sua mais alta capacidade, i.e., da ajuda do artista, de poetas e historiógrafos, de escritores e construtores de monumentos, pois, sem eles o único produto da sua actividade, a história que vivem e encenam, não poderia sobreviver.” (C.H. 215).
9 Para esta figura aceito de Arendt não distinguir a filosofia da arte, mas ambas da ciência.
10 Jünger constrói este cenário como alternativa à utopia marxista, aos nacionalismos e à democracia liberal, convencido do seu suporte histórico, em particular do que para si é o início do fim do tempo burguês, a I G.G.: “ vivenciámos o declínio do indivíduo e dos seus valores herdados, não apenas nos campos de batalha, não apenas na política, mas também na arte.(T. 2oo)– , de que parte para o desenho da sua projecção: “ Em vez de combinar os velhos perfis dos modos mais variados, e necessariamente cada vez mais fracos, numa actividade atomística, trata-se de ver se um outro espaço não esconde forças e recursos de novo tipo. (…) Um tal espaço está de facto presente; é determinado através da figura do trabalhador. (…) Não há nenhum outro espaço senão o seu ao qual se pode ligar uma esperança.” (T. 2oo/1). Num quadro visionário, em discurso profético, visão de uma época em que tantas forças estavam já em gestação e outras já em marcha, Jünger chega a afirmar que “ a instalação secreta dos meios, das armas, das ciências, tem como objectivo uma dominação espacial de pólo a pólo, e as confrontações entre as grandes unidades vitais aspiram a um carácter de guerra mundial.” (T. 2o8). O que veio a acontecer...
11 Sobre esta caracterização do trabalho, e sua relação com a arte, Jünger não podia ser mais claro: “(…) uma arte que tem de representar a figura do trabalhador deve ser procurada numa unidade estreita com o trabalho. A ocupação e o ócio, a vida mais séria e a divertida, o quotidiano e o festivo não podem ser aqui opostos, ou são-os em segundo plano, englobados por um sentimento unitário da vida.” (T. 2o1).
12 De resto, mesmo Arendt admite que “ há indícios mais graves do perigo de que o homem possa estar disposto e, realmente, esteja a ponto de tornar àquela espécie animal da qual, desde Darwin, se presume que ele descende.” (C.H. 392).
13 “ Não foi só, nem sequer basicamente, a contemplação que se tornou uma experiência inteiramente destituída de significado. O próprio pensamento, ao tornar-se mera ‘previsão de efeitos’, passou a ser função do cérebro, o que teve como resultado a descoberta de que os instrumentos electrónicos exercem essa função muitíssimo melhor do que nós. A acção passou logo a ser, e ainda é, concebida em termos de fazer e de fabricar, excepto no facto de que o fazer, dada a sua mundanidade e inerente indiferença à vida, era agora visto apenas como outra forma de labor, função mais complicada mas não mais misteriosa do processo vital.” (C.H. 391).
14 Por um lado, não encarando o trabalho com um ‘fazer de oficina’ (ou de qualquer outro espaço ou tempo instrumental); por outro, não reduzindo a obra à expressão de uma individualidade – a última nota de Arendt serve exactamente para alertar que “ confundir a ‘não objectividade’ com subjectividade, na qual o artista sente que deve ‘expressar-se a si mesmo’, os seus pensamentos subjectivos, é típico dos charlatães, não dos artistas.” (CH. 4o6).
15 Acho na ‘figura’ uma plasticidade dificilmente disponível para o conceito; dependente do saber que consiga convocar, com a figura (explícita ou implícita) desenha-se um aspecto da humanidade sob um típico modo de ser. Sem desígnios descritivo ou normativo, idealista, profética ou realista (em variável grau de fidelidade) – conforme o pendor da função que se lhe assignar e o universo de casos a cobrir –, a figura, por verosímil que se pretenda, só ganha em ser assumida como hipotética/especulativa. Mãe do conceito, abstract condensado de informação, rigoroso rígido e esterilizado (concebido sem interesses, honesto eunuco, fiel ao modelo que refere), a figura é construída com uma função, que, no essencial, qualquer que seja, se reduz a mobilizar. É o seu carácter mobilizador que lhe confere uma impertinência pouco tolerada pelos clínicos do orto-teórico discurso. Que há na figura uma natureza política, e não só ética ou bem intencionada, é escusado disfarçar; porém, a mobilização não se resume a ‘toque a rebate’. Grande parte da natureza política inscrita na figura não diz respeito ao espaço público, à luta da força bruta ou pelos palanques da grande oral, mas ao domínio da vida escolástica – em particular se organizada como programa de trabalhos em torno de um mito consciente de excelência crítica, como o que seria aescola. A função mobilizadora da figura do criador é, pois, essencialmente pedagógica. Mesmo mantendo no motivo a acção comum coordenada, esta mobilização reclama apenas o papel do diapasão pelo qual se podem afinar as mais diversas disposições de busca até ao encontro da sua nota/rota. Metáfora de desenho riscado e rasurado, palimpsesto de sobreposições novas e velhas, tem um valor político (até enquanto ficção teórica) suficientemente subversivo para não precisar de dogmas e dispensar os pragmas habituais: o valor de tudo questionar sem qualquer trégua ou açaime ético e o de por tudo responder, do mesmo modo. Nada há nela de modelo para o perfeito futuro ideal, ou da pureza primitiva só de legítimos étimos originais. Não supõe nem pede crença; não se pretende absoluta ou universal; sabe-se ficção e como tal se dispõe – com a vantagem de ajudar ao esforço conceptual e de, por vezes, ser o melhor meio de avançar noções que, segundo as burocráticas minutas (citações, referências, bibliografias) agora costumeiras para enunciar vulgar banalidade, implicariam arrastadas e penosas práticas.
16 Trata-se de uma culturamuito sui generisde vários pontos de vista: a integração do desvio é apenas o mais imediatamente relevante – mas deveremos acrescentar o peso que nela tem a ironia, que só por si condensa o sentido do trágico e do cómico, enfim, o carácter cénico e dramático (polémico, agónico e competitivo) que a reveste de uma peculiar vida social, consumada na democracia.
17 Também Jünger associa a ‘pobreza’ ao trabalho, num ambiente em que “ dominam a mais elevada simplicidade e a maior poupança”. (T. 194/5)
18 Será assim, creio eu, que poderemos entender o criador enquanto trabalhador, i.e., como aquele que faz das suas circunstâncias de vida e da cultura herdada matéria para sua própria metamorfose e para a decomposição orgânica do legado em húmus, para uso futuro.
19 Esta experiência da total crise da identidade – epochédos valores e levantamento completo das bases de toda a crença, questionamento e revisão do herdado, dos modos de ler a realidade, e também acesso à experiência sem qualidades – não é partilhável nem universal e, verdadeiramente, não se pode provocar onde não haja já disposição para tal; mas pode-se sugerir que, tendo-se dado nuns, haverá em outrem de acontecer. Vivida por ambiente ou provocada – Platão recria-a a cada aporia –, esta crise manifesta-se sempre no esvaziamento e flutuação dos significados e valores, nas contradições, nos paradoxais nós que se geram na vida e no discurso, no ciclotímico conflito em cada alma, na paralisação da decisão ou na falta de ‘rumo comum’.
20 O conjunto da população ingénua e ignorante é o único que tem regeneração assegurada, dado que ninguém nasce de outro modo e assim pode definitivamente ficar. O princípio da multiplicação garante a sustentação da espécie mas, do mesmo modo, nos sistemas sociais de cultura mais complexa, representa um constante risco real de colapso – e, portanto, uma exigência enorme para a paideia universal. Não haverá um tempo em que aviões não verão quem saiba pilotá-los? Provavelmente é ao que já se assiste na governação de gente.
21 É a consciência cínica, nunca por isso hipócrita ou mal intencionada, que melhor permite compreender nesta crise os que constroem a identidade sobre uma modesta potência, mas, sobretudo, uma mais evidente carência: de consolo e conforto, por obediência ou comando, de atenção e aplauso, cortesias, de simbólicas insuflações de um ego determinado a obter o benefício do desejo(necessariamente o fraco, e ainda que ilusório) dos outros.
22 Na medida em que a crise se deva mostrar nos singulares, é compreensível e aceitável que as ‘consciências críticas’, em qualquer momento histórico desde então, o sejam na medida em que possam ‘ser cínicas’, i.e., na medida em que o tenham sido antes (do mesmo modo que, platonicamente, apenas quem pode fazer o mal pode melhor fazer o bem, ao menos garantindo que não é feito de necessidade; ou apenas quem sabe mentir há-de poder saber de verdade); mas não que as cínicas possam ou precisem ser críticas para chegarem a ser o que são. Analogamente, a potência criadora e a criativa carência (ingénua ou não, a mãe de toda a crença) – em porções diferentes distribuídas, evoluindo por fases de maturação e de acordo com a resposta de cada corpo, quer ao trauma da experiência, quer aos pragmas e dogmas vivos da cultura – devirão a integral de tudo, como tendência. O desejonão nasce nas mesmas condições e a desgraça da sua repressão é a das culturas que não têm como libertá-lo, por fechar os olhos, por cegueira, por falta de luzes: ignorando-o, convertendo-o em fé, à força de labor ou em números, por estimativa e cálculo.
23 É entre as obras que melhor memória viva terão na cultura que se encontrará este métron: ultrapassá-lo, morrer a tentar, é, na origem, o programa de viagem, ou de toda a vida, ida e volta, do sábio/criador – esse é o seu trabalho, enquanto tarefa e afazer; enquanto disposição e meta, é tornar-se outro, segundo um melhor. É assim que acontece Platão: pelo processo de assemelhação que em si operou através de Sócrates, com desvio crítico sobre Homero.
24 Deste ponto de vista, o criador, ou o seu saber, teórico ou plástico, são entendidos como o que não se há-de cultivar nas academias, melhores ou piores, públicas ou privadas – que, no entanto, podem e devem reproduzir a crise e a sua saída crítica através de casos exemplares. O grau de autonomia e liberdade requeridos para o trabalho não se adequa às formalidades da instituição, às suas práticas e estratégias. Tal não significa forçosamente que a academia deva mudar, dado que nunca foi suposto que produzisse o que apenas os indivíduos podem gerar; como não significa que não haja aí, no trabalho laboratorial, espaço para quem quer que seja fazer o seu trabalho. A instituição nunca será mais que o tempo/lugar/ambiente privilegiado para a reprodução dos pragmas do reconhecimento, numa comunidade de pares; para a iniciação – consequente com a aprendizagem de técnicas e gramáticas, da sua evolução e dos discursos normativos ou fenomenológicos que constituam referência para a reflexão destas –, como no período de tutoria que haja, a escola deve ser o que baste para desencadear a libertação individual da (de toda a) instituição. Por isso é tão importante que se dê aí, com a forma da disciplina, a principal experiência crítica – de preferência mais funda que a perda de virgindade. Da impermeabilidade a seitas e militâncias, por maioria de razão, não se há-de dizer menos. Já a integração do criador no colectivo proletário ou na indústria cultural ,que implanta e rega o mundo da arte, recusando-lhe a essência escolástica – convertendo-a em ‘labor criativo’ (militante activo ou pop star), esvaziando-a em lazer e hobby, ou atracção de turismo museológico, para o carpe diem dos tolinhos –, talvez denote a qualidade da experiência que a maioria pôde fazer da escola.
25 O que significa que à vida poiética não se chega por acumulação de conhecimento, de experiência ou erudição, mas também lá não se chega sem ter passado por uma ‘formação’, portanto, como um meio, não como um fim em si mesmo.
26 Na metamorfose, o processo de libertação da axialidade identitária – no desdobramento/ multiplicação em personagens, na invenção de personas, na deslocação de pontos de vista ou dos lugares de fala para fora do discurso ou nas suas partículas elementares – não é esforço para atingir um núcleo, o motor ou fuel essencial ( selbst, self, si/se, on, il y a, etc.), instalados no profundo imo ou em metapsíquico estrato. Desenvencilhar-se da imago sui, máscara para ser vista como todas são, deixar de ser para outros e outro para si, chegar à ausência de rosto, são manobras para desatar o nó egóico e, com ele, tudo o que limite e pressione, não a expressão de si mas à expressão de si. Não há, portanto, uma causa contra ‘nós’, ‘eixos’ ou ‘motores’, só a inconveniência das suas putativas essencialidades; último véu que esconde e separa do plasma semântico, matéria prima a moldar segundo o desenho do desejo e a ruína das gramáticas. Esquecer, desimaginar, ver-se livre dos possíveis, abandonar formas e referentes do ‘saber adquirido’ (e não o adquirido por ele): o aligeirar do lastro identitário, salvo em aprendizes e mimos, para quem serão aspectos duma expressiva criatividade, é modalidade da decomposição de si que se entende por simplificação.
27 As várias faces da metamorfoseno trabalho não são abstracções metafóricas ou elucubradas intenções; correspondem a distintos estados sema-somáticos, como o são a adolescência e a senilidade, e, portanto, a imagos bio-psíquicos com a sua sensibilidade, uma específica pele, escuta e fala singulares, e, obviamente, a experiências estéticas e poiéticas não comparáveis. A relativa ausência de reflexão sobre a necessária metamorfose da consciência humana é equivalente à dificuldade em pensar as origens, em ambos os casos, rupturas por excelência. Jünger e Arendt não lhe dão atenção. Arendt, que diz sobre a reificação da obra de arte que “ é algo mais que mera transformação; é transfiguração, verdadeira metamorfose, como se o curso da natureza, que requer que tudo queime até ficar em cinzas, fosse invertido de modo que até das cinzas pudessem irromper chamas” (C.H. 2o9), não chega a abordar a origem da transfiguração no autor – ainda que acrescente a esta a transferência “ de algo muito intenso e veemente que estava aprisionado no ser”, algo que sobrevive em ‘espírito vivo’ no que será só ‘letra morta’. Em Jünger e Arendt (em tantos outros, de resto) a obra reflecte a intervenção-transformação do/no mundo que denota o criador; não é, portanto, mera pegada, é causa de particular transformação – e, no entanto, para ser assim, haverá de supor-se algo análogo no criador, ou nada acontece! Não há transformação do mundo por osmose ou exposição às ‘boas obras’ (ou intenções) que de si emanam ‘bom sentido’ se não houver metamorfose capaz de tal reconhecer.
28 ... ou descontinuar, pois, se é assumida sobre a vida (já desvinculada dos meios da guerra e do ódio, arredia de crenças em verdade perpétua, salvífica, consoladora e continuadora) a completa co-autoria do seu inteiro curso, é de esperar que tudo nela aja em liberdade, i.e., sem medo: sem a tentação do possível suicídio, crime contra a propriedade da fé ou do estado, mas, em plena posse de todas as forças e fraquezas, com a tentadora liberdade de escolher a ‘morte feliz’ – porque convidada –, recriando-se até ao fim.
29 A mentira e o fingimento, dissimulados entre a mimesis e a ironia, elementos de liberdade e de invenção livre, são em todo este domínio a própria plasticidade da carne que no desejo se trabalha; de todo modo, esta figuranunca é completa sem o toque de excentricidade – que o criadorseja movido por um interesse excêntrico foi exactamente o que me levou ao congresso em que me vi com Arthur Danto.
30 O que significa que em vida apenas há candidatos. Como o coro final do Rei Édipo avisa: para julgar é preciso esperar o último dia e guardar-se de crer na felicidade seja de quem for antes que tenha passado o termo da sua vida...
31 Tal estado de coisas não se esclarece sem discernir o que se deve à mera mudança de escala e à exorbitante multiplicação/diversificação das formas de expressão, do que depende em exclusivo da progressiva complexificação da global metástase cínica. Só a massificação desta actual cultura, e da imagem que de si faz (tecnologicamente hiperactiva, consumidora, ávida à histeria de estímulos novos, em frenesim por ‘experiência’ como crise adolescente), não poderia deixar imunes a figura do artista, a ela exposto e a ela sujeito como os demais, e o conceito de arte – ou, melhor, os contornos em que, de acordo com a imagem construída, se hão-de procurar para pensar.
32 É com esse sentido que Javier Nuñes Gasco, como parte de uma das peças da série Resting Pieces (2oo5/2oo7), faz tatuar no couro cabeludo o símbolo do copyright junto do seu nome, lançando assim direitos a todas as suas ideias futuras.
33 Não só a ambiguidade da ‘arte pela arte’ – culminar da inversão da lei económica, iniciada no Renascimento, que determina a separação entre arte com fins lucrativos e ‘arte pura’ ou ‘autêntica’, i.e., para ricos –, mas também a exploração do aspecto mais lúdico e menos sério da arte, e talvez o mais sadio (indiciado no espírito de Les Arts incohérents), preparam o sentido de uma abertura que ainda escapa ao estrito mundo da arte. Encontram-se sinais de vitalidade, em profundo diálogo crítico com a história e o mundo vivido, na literatura, na música, no bailado e, muito rapidamente, daí em diante por todo o lado. Até, digamos, ao quadrado negro de Malevich, e por certo à La Fontaine de Duchamp, a heresia é completa. Dirá Jünger, em 1978: “ Nos nossos dias é mais fácil encontrar a amante perfeita do que um interlocutor que possua cultura histórica e literária(…) a grande época dessas conversas foi o século XIX, que, neste sentido, durou mais tempo em França do que entre nós[os alemães]” – In, Drogas, Embriaguez e outros Temas, Ed. Relógio d'Água/Antropos, Trad. M. Homem de Sousa, Lisboa, 2oo1, p. 149. De facto, para uma retrospectiva do novo ambiente cultural que veio a marcar o século XX, teríamos de recuar até à Comédia Humana de Balzac (1829-47), aos escritos de Baudelaire (p.ex., sobre os Salões de 1845, 46 e 59 e a Exposição Universal de 55) e à Educação Sentimental de Flaubert (1896), onde há o diagnóstico e a vacina para o que já então se anunciava.
34 A completação da aldeia global, como a viu Hanna Arendt do ponto de apoio galilaico-arquimediano da modernidade, implicou não só novos dispositivos a somar aos existentes, mas também os seus neotecno logos: meios gramaticais inéditos (de expressão, comunicação, representação e reprodução) que alteram, através da sua instalação, os dados e premissas da experiência estética, da percepção às grelhas hermenêuticas incorporadas pela sintaxe do real. O que se traduzirá na constituição, imperceptível e em curso, de bases somáticas aptas já a desempenhos de alcance impossível de estimar: lugar, portanto, a outras disposições. O próprio carácter industrial e popular das novas tecnologias é ilustrativo de como, pelas suas propriedades, um conjunto de meios pode trazer consigo a virtualidade da sua generalizada (‘democrática’) e rápida apropriação como formas de expressão (da identidade burguesa que os gera) a reproduzir por via inercial – o que implica assimilação massiva e passiva dos modos de uso programados.
35 Já em 32 era possível “ prever que não apenas categorias inteiras da produção artística perderão o seu significado, mas também, por outro lado, que esta produção submeterá a si âmbitos com que hoje nem sequer se ousa sonhar.” (T.198).
36 Não se encontrarão certamente muitas culturas em que o que escapa ao ciclo necessário da vida e ao âmbito das possibilidades conhecidas e usadas tenha sido bom augúrio, mesmo admitindo que entre o possível advenham pequenas novidades – já Platão as condenava. Até os elaborados mitos que fundam a transcendência divina, ubíqua eterna e vigilante, evocam do futuro uma precisa imagem. O destino prometido, celeste ou terrestre, poderá vir a ser surpreendente mas, no essencial, é já pré-conhecido enquanto anunciado. Naturalmente, ‘novidade’ tem ainda a conotação noticiosa da mensagem, boa nova ou má e velha de acordo às circunstâncias e expectativas dos implicados (vivos ou mortos); ‘novidade’ será também o que o adivinho extrai das entranhas do devir, e haverá sempre ‘novidade’ em algo que se faz, lê ou escuta, recente ou antigo, pela primeira vez – como em cada colheita, ou em cada experiência, na medida em que será necessariamente outra. Mas mesmo este harmónico conjunto de ‘novidades’ – encerradas nos circuitos do físico ou nos círculos do metafísico, entre os ciclos da vida e da morte (ou além disso), tecidas na impossibilidade de conceber algo desligado do passado, tradição, lenda ou história – já suportava, ainda se com dogmas em dificuldades, Leonardos e Galileus, Newtons, Nietzsche ou Marx, como extensão do seu possível, que entretanto se alarga. O contemporâneo, mesmo se recorde ainda imagem vaga de uma ‘vida sem novidades’, ignora o que seja sem elas um único dia, ou, talvez até, o que seria disso prescindir ou conseguir sequer evitar. E, no entanto, à medida que as novidades vão sendo menos raras e menos estranhas (ou mais banais), a própria atenção que a cultura lhes presta, por ausência de critério objectivo para vender notícia, vai também diminuindo; o futuro, enfim, talvez saia da frente e vá ‘de novo’ para o seu lugar.
37 Estes estados de dúvida perante a ambiguidade devem-se, em larga medida, a que este ‘ mundo’ torna difícil identificar os critérios pelos quais alguém aí decide se tal expressão plástica há-de ser apresentada como ‘arte’, no sentido enfático que lhe pretende dar. Como indefinidos ficaram os critérios, muito recalibrados desde início do século passado, que distinguirão a ‘arte erudita’ da popular, e esta, na sua imensa diversidade, dos riquíssimos universos folk, e todas estas das suas hibridações e cruzamentos virtuais – referências determinantes para o seu campo de reprodução, antes de mais, mas também nos meios de ‘difusão cultural’, canais de ressonância da tendência que dominar [segundo a consabida dialéctica entre representantes do putativo interesse da consumidora maioria e o comando de connaisseurs que voluntariosamente procuram, promovem e integram quaisquer ‘vozes dissonantes’ para parte essencial do coro de ‘diferenças’, provando assim estar ao serviço do ‘ecletismo cool’ do sistema da cultura].
38 É o caso de George Steiner, que augura fim a incerta cultura que, confusamente, tanto é herdeira do legado greco-romano como do dos cultos mosaicos e mitos utópicos derivados — como se a história os tivesse fundido antes mesmo de se terem encontrado, ou houvesse ditado perpétua a casual, e contranatura, cópula entre sentidos tão antagónicos: o sentido determinado pelo princípio do desvio crítico e o derivado da voz de um deus ou da mimesis de messias. Ignorando, para mais, que essa mesma cultura clássica transporta em si, desde cedo (portanto, para o interior dos cristianismos), o germe da saída cínica, que também ela gerou.
39 Recentemente, em A civilização do espectáculo, o Nobel Vargas Llosa nem hesita: as artes plásticas “ se adelantaron a todas las otras expresiones de la vida cultural en sentar las bases de la cultura del espectáculo, estableciendo que el arte podía ser juego y farsa y nada más que eso”. Ed. Alfaguara, 2o12.
40 Bastaria para isso ter em conta que parte do legado o século XIX, além do sumariamente elencado, são ondas de choque decorrentes da revolução industrial, das novas revoluções urbana e agrícola, e, mais determinante ainda, da verdadeira revolução cultural que consiste no alargamento progressivo do acesso à escolaridade, até aí circunscrita a um grupo mínimo de privilegiados. Este não é um dado menor, sobretudo se se considerar o seu valor para a história da democratização dos estados, ou se se pondera o que significa em uniformização pedagógica da massa humana que, dum momento para outro, é arrancada da raiz popular, muito mais simples, para uma complexa estrutura de valores e expectativas que tipificam as burguesias ‘residentes’; a procura de rápida notoriedade, num meio progressivamente tolerante e permissivo, é marca do arrivismo dos recém chegados.
41 Acreditar ser legítimo esperar fama e proveito do mundo da arte, como de qualquer outro mercado, é, portanto, estatisticamente razoável; que esse ganho corresponde à [ou, tem o valor da] consideração póstuma dos que virão a ser os melhores – até se não venha a haver um único a destacar-se no futuro a devir – é ilusão mantida pelos ilusionistas envolvidos. Também, valha a evidência, não é mais que mero transvase de uma atitude predominante que escorre (em permanência ressoados e repercutidos na propaganda e pela publicidade) pela quase totalidade do restante universo dos ‘mundos’ burgueses. Contudo, em qualquer caso, parece ser esta expectativa – que move a quase totalidade dos artistas e dos teóricos pelo aplauso imediato ou na intenção de integrar o futuro cânone da skholé disciplinada –, que ‘dá razão’ à engrenagem das teorias do labor e, portanto, à sua invasão pelas terras do trabalho, empurrando a poiésis para a esfera re-produtiva do negócio da última novidade ou da lazeira do burguês.
42 Como é que tal justifica as teorias do labor/lazer, explicando ao mesmo tempo que não entendam o trabalho? O economista compreende o ‘ reconhecimento necessário’ (o amor, o favor, a atenção, como os juros ou o salário) como redutível a grandeza de produção ou de consumo, output/ input – num sistema que, enfim, consumindo o que produz, se nutre do seu corpóreo esforço, numa carência autofágica prolongada para além da morte. Como não há economia sem troca, e toda a troca é, em cada unidade, de carência (relativa ao ‘necessário’) e potência (relativa à liberdade), em que a procura da primeira é sempre superior à oferta da segunda, então, a troca humana pode ser reduzida à constante dominante, para simplificar. A economia, a mais avara e ávida das ciências, é ciência das carências, senão até (seguindo Agamben) das caridades. A fenomenologia fidelíssima que lhe está na base tem apenas a ‘necessária’ deficiência de, ao descontar a excepção, destruir a singularidade. Sempre assim foi, como diria Jünger, mas noutra escala. O que de criação haja em alguma obra, plástica ou teórica, é substantivamente sem preço ou valor que se estime (como sem preço é toda a acção que resiste à pose), i.e., não tem nenhum: a não se dar, ninguém lhe sentirá a falta. O seu reconhecimento desnecessário, ou livre (que qualquer um terá de fazer se quiser saber de que se trata), é, portanto, bem descrito como economia paralela; o acto poiético é subterrânea cunhagem de moeda falsa, (tendencialmente) grátis e universal – sabotagem, pirataria. Subversão silenciosa, festina lente e passa-a-palavra.
43 A vontade de reconhecimento, enquanto afirmação da individualidade – por aceitação no grupo eleito ( mainstream, ‘marginalista’, revolucionário ou de vanguardas), prémios para o ego pelo meritório esforço devotado a boa causa –, é traço moral do aprendiz impaciente. No pior cenário, é carência patológica que se satisfaz na estridência do exótico e ‘diferente’: “ é natural que te espantes da sua insensatez, a menos que (…) te convenças de que o seu estranho comportamento se deve à paixão de se tornarem célebres e assegurarem «uma fama imortal, que perdure para todo o sempre»” (Platão, Banquete, 2o8c).
44 A síndrome de Münchhausen é, entre as doenças fictícias, a patologia mental mais severa e duradoura (crónica). Os especialistas ignoram o valor exacto dos afectados pois é comum usarem pseudo-identidades, visitarem diferentes hospitais ou cuidados de saúde evitando a detecção. Os sinais e sintomas, nas desordens físicas ou psicológicas, inventadas ou auto-infligidas, vão sempre associados ao fingimento e têm a exclusiva finalidade de satisfazer necessidades emocionais profundas. Dado que os pacientes, para não se denunciarem, se revelam incrivelmente astutos, é quase impossível detectar os sinais de tal desordem. Os diagnosticados, na grande maioria, são jovens adultos ou de meia idade – a ocorrência na mulher é mínima. Não há relação com a hipocondria. Aos que ainda encontram dificuldades no despiste desta enfermidade convirá que se deixem examinar, no sentido de atestarem se serão deveras disso capazes. A exclusiva focagem em sinais e sintomas, como na ‘letra morta’ (e até mesmo no já explícito espírito), tende a tornar-se óbice intransponível para a hermenêutica que se sustenta em imagens prefixas – não as que meramente se vêem mas as que simbolicamente se mostram (i.e., que são simbolicamente mostradas). A passagem da ‘mimesis criativa’ à criação, pelo trabalho, supõe a estratégia de que Pessoa faz síntese na Autopsicografia: não há como superar o melhor senão fazendo-se ‘passar por’ ele. Porém, o fingimento (o faz de conta dos primeiros anos de skholé), a auto-representação da diferença, desvio do outro como de si próprio, não é exercício facilmente replicável por consciências lineares à identidade. A compulsiva procura da atenção, a estridência por aplauso e todas as suas tácticas, não denunciam só a má mentira (que é mero auto-engano) mas também o falso fingidor – reflexo de imagem, dos sinais e sintomas já noutros reconhecidos, distorcido no esforço de ser autêntico, i.e., de mostrar que nada finge: é este excedente que vulgarmente se designa por pose. O Münchhausen patológico não é, pois, mentiroso excessivo, comum aldrabão de que rimos pela anedota de sua história: é o que honesta e calorosamente finge que não finge (como se, e escusadamente, padecesse de facto da dor que julga ser suposto deveras sentir) – o que convence quem ignora que só fazendo-como pode uma potência vir a criar, mas não chega para quem já viu fingir muito melhor. A fraude, que tanto acusa os colonos do mundo da arte, não é pois de carácter essencialmente ético, mas estético, ou, falando com rigor, poiético. Está na falta de simplicidade, não do que diz ou faz (mostra) mas no que finge enquanto age (e não pode ocultar); um Münchhausen, ser em carência, é trabalhador por conta de outrem (esse que se instala, antes de mais, como imago sui), e não de si – no melhor dos casos, quer transformar o mundo, desde que não a si próprio.
45 Ao pensar nisto ocorre-me com frequência a obra de Jorge Molder que, por variadíssimas razões, me parece (quase por encomenda) fazer imagem muito classicamente adequada.
46 Cf. Platão, República (486a). O desejo de saber, o que faz criar, sempre passou bem sem carências (de reconhecimento, de obra e vida imortais) que prolongam a identidade; até porque o programa de trabalho, nas suas diversas durações, tem o seu fim cru e objectivo no silêncio em que ninguém se distingue mais. Aliás, é a experiência plena do acontecer único do que existe que guia o desenho de cada desejo: na vacuidade do vivido, na inutilidade da obra, no fim de todo esquecimento, da história, do reino do homem e da vida, como dobras em pano de fundo, estará a certeza tranquila que orientará a metamorfoseque de cada um se apoderar. É uma hipótese.
47 Perspectiva que seria plenamente justa talvez até 194o, ano da publicação de Nascimento e Morte do Sol, por Gamow, com o qual ficamos desde então cientes do fim certo da estrela, que agora se calcula ter ainda 5 mil milhões de anos pela frente – como se a distância a que fica o ‘fim’ fosse magicamente mudar a sua natureza ou evitar que ocorresse. Ao menos para as almas que fazem fé na ciência, nomeadamente na astrofísica, a noção da morte do sol, do fatal colapso da Via Láctea com Andrómeda, etc., ostentando a efemeridade da vida, já teve e manterá impacto equivalente à certeza da morte própria na fábula da eterna continuidade. A história perde a sua premência, a narrativa não apenas sabe que acabará mas também que há um momento a partir do qual, talvez depois de terminar, nunca ninguém mais a lerá.
48 Poderemos sempre perguntar-nos: em que se distinguirão, passados uns séculos, estes ‘antigos mais novos’? como serão os novíssimos pedaços do futuro com centenas de anos? não se tornarão os Warhol posteridades? ou, qual será a diferença, afinal, em relação aos que agora são tomados como tais – ou até, ainda, neste entretanto, se não haverá obras e autores esquecidos, erradamente ou não, e a horas de se recuperarem, como sempre houve? Pelo menos com uma segurança e um à-vontade que nem Jünger ou Arendt, nem mesmo Danto, em 95, poderiam ter, talvez nos seja permitido ler hoje mais ‘novidade’ (ou futuro) na história que na actualidade corrente.
49 Para Arendt, mais que a “ capacidade de produzir histórias e de se tornar histórica – carácter e capacidade que, juntos, constituem a própria fonte de sentido que ilumina a existência humana”, a acção “ passou a ser experiência limitada a pequeno grupo de privilegiados; e os poucos que ainda sabem o que significa agir talvez sejam ainda menos que os artistas, e a sua experiência mais rara ainda que a genuína experiência do mundo e do amor por ele.” (C.H. 394). Parte da raridade da consciência crítica ‘activa’ – por distinção das predominantemente ‘plásticas’ ou ‘teóricas’ –, assumindo a discrição da simplicidade, está em que nada faz que devadeixar traço visível, de que haja a reclamar ‘autoria’ ou criar expectativa de reconhecimento. Tal significa que este terceiro tipo merece atenção muito especial para a completação da figura do criador; como o entendo, é este que define a grande maioria do tempo de trabalho.
50 É difícil não associar esta acção ao extraordinário esforço que a Porta33 tem realizado ao longo dos anos, digno de nota e de agradecimento.
51 “ É possível fé sem dogma, mundo sem deuses, um saber sem máximas e uma pátria que não possa ser ocupada por nenhum poder do mundo? São questões nas quais o singular tem de testar o grau do seu armamento.” (T. 112) – é como Jünger aborda a crise da ‘individualidade peculiar’ diante o seu passado e o seu destino, entre o passado na passiva e um devir na fala activa.
52 “ O homem que ignora estar sujeito à necessidade não pode ser livre, pois a liberdade é sempre conquistada por tentativas, nunca inteiramente bem sucedidas, de dela se libertar.” (C.H. 145)
53 Manuel Rodrigues, Lisboa, 11 de Março a 1 de Maio, 2013