O ROSTO POR DETRÁS DA FACE

João Barrento

 

E quando o mesmo rosto, com proporções que se mantêm idênticas,
umas vezes nos parece belo e outras feio, como poderemos negar
que a beleza não reside na proporção das partes, mas que alguma
outra coisa torna belo esse rosto?
(Plotino, Eneiades, I, 6)

 

1. Considerações in-actuais

Não existe uma condição da arte contemporânea. A arte contemporânea é feita daquilo que, no espaço global do fazer artístico, acontece – cai da mão e do corpo do artista, e entra nos nossos olhos e no nosso corpo. E faz, ou não faz, pensar. E lança-nos, ou não, para além de nós, da obra e do seu tempo. A experiência contemporânea da arte, em que um tempo presente co-existe com outros, é uma dupla travessia – de risco e de fruição, de fruição do espaço de risco do (ainda) ininteligível. Maria Gabriela Llansol, com o seu saber muito particular dos olhos e do corpo, e também da espessura do mundo/da obra que progressivamente se nos abre, escreve em Ardente Texto Joshua: «Quando o texto se tornou ininteligível, e obscureceu, talvez tivesse mergulhado no olhar de saber...» (sublinhado meu).
Afirmando-se com – em companhia de – outros tempos (o alemão di-lo mais claramente no termo Zeitgenosse: «companheiro no tempo»), a noção ampla do «contemporâneo» rejeita a simples e simplista equiparação ao «actual», que é o real-em-acto, aquela versão da realidade que vive de, e exige para si própria, um aggiornamento permanente. Pelo contrário, a produção artística verdadeiramente contemporânea é aquela que é capaz de subsumir em si estratos mais fundos, vários tempos num tempo (ou no espaço da obra), superando assim o mero circo do visível e do consumível, sempre em busca de visibilidade, mas pouco actuante a nível profundo, porque sempre em trânsito de superfície.
Deste modo, o actual só se torna contemporâneo (como sugere Walter Benjamin em vários momentos da sua Obra) a partir do momento em que integra em si uma profunda consciência da historicidade inerente a todo o presente (ainda que, paradoxalmente, a marca mais inequívoca de uma tal aspiração à eternidade da obra e na obra seja a sua efemeridade). Quase nunca o novo (e muito menos a novidade) e o contemporaneamente actual coincidem, uma vez que aquilo que nos pode tocar numa obra do «nosso» presente é algo que – ainda segundo Benjamin – vem de uma «origem» convocada por esse presente (por alguns dos seus sujeitos), presente esse que é sempre, e apenas, um ponto na linha ininterrupta do tempo, um não-tempo onde se encontram, iluminam e dissolvem momentos passados e potenciais futuros. E toda a obra nossa contemporânea tem consciência desta dialéctica, a que não pode nem quer fugir, entre o desejo de intemporalidade e o saber-se efémera e mergulhada no tempo. Benjamin lembra, na apresentação de uma revista que nunca chegaria a nascer (a Angelus Novus), a lenda talmúdica que diz isto por outras palavras, insinuando uma vez mais que o verdadeiramente actual vem de trás, se abre numa espécie de epifania para o presente, e se dissipa, disponível para novos futuros. Segundo a lenda, «os anjos – a cada momento sempre novos, em legiões infinitas – são criados para, depois de terem entoado os seus hinos na presença de Deus, deixarem de existir e se dissolverem no nada.»
Consciente de que o presente que realmente conta é sempre antecipatório e diferido 1 , também Giorgio Agamben dirá mais tarde, no seminário-ensaio sobre O que é o Contemporâneo?, que «aquilo que pertence verdadeiramente ao nosso tempo (...) é o que não coincide perfeitamente com ele, nem adere às suas pretensões»; o contemporâneo seria, assim, «um desfasamento e um anacronismo». E aponta ainda um outro traço que aqui me interessa lembrar, e a que chama «a parte da sombra», «a luz que quer chegar e não chega»: «contemporâneo será aquele que fixa o olhar sobre o seu tempo para descobrir aí, não as luzes, mas a obscuridade.» Ser contemporâneo é raro e difícil, contrariamente à facilidade com que se pode ser «actual» – é a distância que vai de Rui Chafes a Joana Vasconcelos, ou entre a discreta e natural liberdade da arte e a omnipresença opressiva de uma indústria da cultura que tem de ser televisiva e espectacular. Ou também a diferença entre Hollywood, de um lado, e o último Godard, Straub, Abbas Kiarostami ou Sokurov, do outro. E essa diferença instala-se e torna-se visível quando, na paisagem da obra que se faz, há um mais que se dá a ver para lá da imagem de superfície, e constitui o centro de reflexão para o qual o «ininteligível» da obra, o seu resto, apela, e que é inseparável dela. Esta outra imagem (ou «mais-paisagem», na linguagem de Llansol) é uma imagem-de-pensamento ( Denkbild, dirá Benjamin). E a obra que a possibilita transforma-se em objecto do ver e do pensar.

 

2. «Eu sou habitante dos meus olhos...»

Da paisagem do fazer nada direi. As minhas competências e a legitimidade que porventura me assiste só me permitem falar do ver que gera a reflexão – sobre o objecto artístico que se dá a ver, e sobre as circunstâncias particulares do tempo e do espaço em que ele se dá a ver, da sua presença no con-temporâneo, no aqui e agora da sua singularidade, que não lhe retira, antes pelo contrário, lhe confere, um valor para além de si, paradigmático, de espelhamento, por choque e negação, ou também por reflexo condicionado e irónico, em relação ao seu envolvimento, a um exterior-de-si que permite vê-lo no espaço móvel da historicidade da sua imanência, própria de toda a obra de arte, diz o Adorno da Teoria Estética. Dois olhares se cruzam então, com a obra por horizonte: o exterior e o interior, o do simbólico e o do social, o que convive com a singularidade da obra e o que a enquadra em parâmetros externos. A reflexão que daí resulta é hoje, em mim, predominantemente «figural». O que não admira muito, uma vez que o objecto dominante dessa reflexão é a obra, objecto sensível-inteligível que leva a que a reflexão seja também uma forma de ver. E ao ver, re-faz, a obra no assombro do olhar. Quem assim vê a obra para a pensar, quem assim a pensa vendo, é «habitante» desse olhar da pura imanência que é o lugar do dizível, sugere a Nona Elegia de Rilke, evocada por Llansol, ela que é por excelência a habitante de seus olhos na paisagem do fazer contínuo de uma obra que nunca o é, por ser sempre em processo e devir. E escreve: «lendo a nona elegia de Rilke, na minha gruta onde o granito é música, e as árvores passam, / ouvi que a linguagem cai linearmente.» ( Amigo e Amiga, p. 55).
Ao «cair» assim, ao acontecer no tempo, a linguagem diz, «dá testemunho»: é o que lemos ainda em Rilke. Dar testemunho do visível e do invisível da/na obra é a função do ver reflexivo, da contemplação produtiva que era já a da «crítica filosófica», tal como a entendem o primeiro Romantismo alemão, e também Benjamin. Ver é aqui um «fazer sem imagem» (apenas com a imaginação da imagem), mas que só a presença sensível da obra possibilita. Mas há também um estigma da linguagem, que, ao falar das coisas, as des-possui. Ver é matar as imagens, diz um personagem de Heiner Müller; e falar é perder a coisa, lemos no Poema de Parménides, e também num fragmento de Novalis ( Denn wovon man spricht, das hat man nicht: «Pois aquilo de que se fala não se tem», a palavra que surge no lugar da coisa é o silêncio da coisa, a ausência dela). A função específica desta forma de ver é a da metamorfose da obra em ideia figural, que passa a ser parte dessa obra e a completa (é este o sentido do sincretismo que, no Romantismo de Iena, amalgama a obra – a «poesia universal progressiva» de Schlegel –, a filosofia e a crítica). Rilke di-lo de outro modo, ao afirmar que dizer as coisas do mundo (e também a obra de arte) é possível, que «aqui é o tempo do dizível», e que esse dizer as torna «mais felizes» e as faz «renascer em nós / invisíveis
A esse renascer invisível daremos o nome de experiência da obra – algo de radicalmente diferente, quer do seu consumo no contexto actual do comércio da arte e das indústrias da cultura, quer da reflexão abstracta e sistemática sobre «a» arte.

 

3. O espectro das experiências da obra

Recorro à experiência, a experiências pessoais recentes, para fugir ao discurso abstracto e às pretensões totalitárias do sistema. Com três exemplos, que cobrem um amplo espectro de possibilidades: a) formas de experiência mais contemplativas, centradas em objectos com um estatuto inequívoco de arte (arrisco o «inequívoco», sabendo embora como é instável esse estatuto hoje); b) manifestações de arte empenhada que ganham uma natureza iminentemente política; c) experiências puramente performativas situadas fora do âmbito estrito da produção artística, mas hoje em estreita ligação interactiva com ela, e que os media actuais facilmente transformam em eventos com um «carácter de arte» (Adorno) que lhes é estranho à partida, e mesmo numa espécie de obras de arte total. O espectro destas experiências permitirá pensar o lugar da arte e da criação nas sociedades ditas «democráticas», em que se assiste a uma quase ditadura das chamadas «indústrias da cultura» sobre o fazer artístico dito «independente» – mas numa situação muito diversa da das ditaduras políticas do século XX e do seu monolitismo artístico e cultural, que antecederam a teoria (lançada pela «Escola de Frankfurt»), e as práticas posteriores, de uma «indústria da cultura» que Adorno e Horkheimer, em 1944 (na Dialéctica da Aufklärung), não distinguiam da pura «publicidade», e viam como o fim da arte. Hoje, mais do que isso, chegámos a formas extremas de hegemonização da produção de objectos culturais (mas não necessariamente da criação cultural e artística) numa fase totalmente diferente de consolidação do capitalismo tardio que tudo absorve e tritura, e, mais recentemente, da sua «sovietização financeira» (para usar uma expressão certeira de António Guerreiro).
Dou exemplos dos três tipos de experiências a que aludi, e que podem resumir modos de ver e de reflectir sobre a criação artística, ou para-artística, contemporânea:

a) Uma experiência puramente estética, um «manifesto mudo» (Rancière) da força libertadora, emancipatória no sentido mais profundo do termo, da criação artística: o ciclo de cinco curtas de Abbas Kiarostami, Five, uma homenagem ao despojamento e à beleza dos planos no cinema de Yazujirô Ozu. São cinco poemas da água, e um festim para os olhos. Uma festa da luz e da imagem, e dos sons das mais fundas zonas do ser. Uma «margem da alegria» nas margens do cinema dominante, mas sobretudo à margem do pântano sem vida em que as existências dos que não podem dispor da arte se vão apagando.
Uma experiência alternativa, e ainda mais funda, inquietante e transformadora é a de quem sai da última exposição de Rui Chafes, Tranquila ferida do sim, faca do não. Nesta exposição de cinco peças que, pela luz (ou pela sua ausência) transformam um espaço comum no mais enigmático e inomninável lugar dos corpos confrontados com a sua origem, o escultor acentua algo que age ostensivamente a contrapêlo do espírito do grande circo da arte que nos submerge dia a dia: a total «ausência de encenação» das cinco peças expostas, todas iguais e todas autónomas. De facto, essas cinco peças esguias e as suas frestas de luz nada encenam, são pura presença, a princípio indiscernível, de onde, se o espectador tiver o saber do tempo necessário para assistir a um nascimento, emerge progressivamente a luz. Como no início do mundo. Como de si mesmo diz Mefistófeles no Fausto de Goethe, onde representa, não já o princípio do Mal, mas o da permanente Inquietação humana: «Eu sou parte da parte que a princípio tudo era, / Uma parte da treva que a luz gera. / A luz altiva que agora, em acesa luta, / À Noite-mãe o primado disputa...» (vv. 1349-1352).

b) Um segundo momento, não puramente estético, mas, digamos, artístico-performa-tivo, e mais local (mas o local e o global confundem-se hoje, com a diferença de que na economia o local é anulado, enquanto na arte ele continua a afirmar-se na diferença): a exposição colectiva de uma galeria (ainda) alternativa (que já o terá sido mais), uma das muitas pequenas luzes da resistência aos holofotes da indústria da cultura, a Galeria Zé dos Bois, em Lisboa. Até o nome pode servir o meu propósito: Zé dos Bois é o pastor solitário que, com a(s) sua(s) arte(s), resiste à hecatombe – que, na Grécia antiga, designava o sacrifício dos cem bois, ou outras vítimas! A exposição intitulava-se «Tem calma, o teu país está a desaparecer». Se Kiarostami, homenageando Ozu, representa a força da beleza e a afirmação do puramente estético (naturalmente, como em toda a arte da «idade da prosa» pós-kantiana, também aqui com uma «finalidade», não expressa, mas de modo nenhum «sem interesse»), se Rui Chafes é o exemplo mais acabado da «persistência da obra», de cada obra que apela ao ver reflexivo fechando-se na pesadez do seu enigma e abrindo-se à leveza de uma ideia figural, «literária», sempre para lá do próprio material, esta exposição da Zé dos Bois é a manifestação, agora algo estridente e irónica, do político através da produção da diferença pela arte, num contexto sistémico que impõe o sempre-igual e uma inequívoca vontade de formatar a invenção.
Também aqui haveria muitas alternativas possíveis, entre elas a da experiência da recente exposição sobre o Riso, na Fundação EDP. O tema, na sua estridência natural, é transversal a toda a experiência humana, e fundamento de formas de arte que desde sempre foram iminentemente mais políticas do que «autónomas».

c) O terceiro exemplo é o do fenómeno disperso, rizomático, mas insistente da cultura a mostrar-se e a afirmar-se pela presença dos corpos de quem a faz, numa manifestação pública como a que, em Setembro de 2012, levou muitos agentes culturais à Praça de Espanha, em Lisboa. É um sinal ainda mais abertamente político, um espectáculo, que vem sendo acompanhado por uma série crescente de movimentos nas redes sociais. Uma «multidão» no seio do «Império», como diria Toni Negri, uma vaga sem centro que, não correspondendo à clássica noção das «massas», é o seu equivalente «acéfalo», mas extremamente móvel, resolve «encenar e ensaiar a revolta», como diz o título de uma peça política de Günter Grass inspirada no Coriolano de Shakespeare ( Die Plebejer proben den Aufstand / Os Plebeus Ensaiam a Revolta, de 1966). Isto é também muito característico do momento actual, em que alguns vêm pensando certas formas do activismo político contemporâneo como «arte em tempo real», como oficinas artísticas de uma nova narrativa política que está a gerar formas novas de intervenção colectiva. A manifestação tem hoje, pela apropriação imediata e generalizada, pelas televisões, de todo o processo que a envolve, enormes potencialidades de se ver transformada em «obra de arte» performativa e militante – mas afinal sem os efeitos da obra, sem a força da sua imanência sobre quem a olha, no encontro e no confronto de dois corpos (o dela própria e o de quem a vê). Estamos longe do impacto das últimas esculturas de Rui Chafes, cujas «escuras fendas», no dizer do artista, «são feridas íntimas, entradas íntimas para a obscuridade do corpo.»

 

4. O que se dá a ver sem imagem

O que estas três experiências têm em comum – para além de se situarem do outro lado do sistema dos poderes – é o facto de nenhuma delas se fundar, de forma determinante, na palavraorganizada e com «autoridade», no poder do discursivo-argumentativo. O que isto significa é que, se a palavra serve ainda a arte (mais do que qualquer outra, uma forma de arte como a literatura), ela não serve de igual modo a cultura, ou a intervenção cultural nas suas múltiplas formas actuais. O que quero dizer, e desenvolvi no meu último livro ( O Mundo Está Cheio de Deuses), é que o mundo da arte ou da cultura não é hoje um mundo: há muitos mundos nesse mundo, extravasando o próprio sistema das artes, antes, depois, ao lado e abaixo da grande cúpula da «indústria da cultura» que cada vez mais, mas nunca de forma exclusiva, veio dominando o espaço da «produção artística» enquanto entretenimento, no sentido mais amplo da palavra. No auge do processo da «dialéctica do Iluminismo», das contradições da razão instrumental, Adorno e Horkheimer viam o que então denominaram de «indústria da cultura» de um ponto de vista radical e esquizofrénico, demonizando de forma apocalíptica esse universo invasivo, que opunham ao da «dimensão estética» e da «arte autónoma». Depois, as posições maniqueístas atenuaram-se e as visões do mal relativizaram-se – tal como as da «morte» do intelectual ou dos agentes de intervenção de perfil clássico, afrontando o poder a partir de um lugar que se supunha exterior aos poderes.
Foi daqui que parti nesse meu livro, para desconstruir estes « mitos do fim» e afirmar a tese de que, mais do que um fim, o que se deu foi um deslocamento e uma atomização dessas instâncias de intervenção cultural. Uma das estratégias actuais, que um autor como Pascal Quignard insistentemente defende em vários dos seus livros recentes do ciclo «Le dernier royaume» (em particular no penúltimo, o vol. VI, La barque silencieuse, de 2009), é a da retirada e do silêncio como resposta às sociedades «democráticas» degeneradas em que vivemos, que se tornaram oligarquias financeiras sem rosto. E evoca Roland Barthes, numa entrevista dada pouco antes da sua morte, em que este alertava já para o «desafio» que iria representar, nessas sociedades pseudo-democráticas, uma «vida independente». Mas também as potencialidades de resistência contidas nesse desafio, uma vez que, dizia ainda Barthes, «a única coisa que o poder nunca tolera é a contestação pela retirada» – entenda-se: retirada da esfera de dependência dos poderes, e entrada na esfera do silêncio, de um silêncio absoluto e loquaz, que também pode ser gesto demonstrativo, grito mudo, contra o ruído reinante na indústria da cultura. Um dos paradigmas desta esfera é, para o próprio Pascal Quignard, o da leitura, prática de independência radical e daquilo a que chama «desinibição em relação à doxa» («désinhibition du doxal»). A capacidade de estar só torna-se, assim, à margem de e contra toda a táctica de assimilação e dominação da indústria da cultura, «o fundamento da criatividade» ( La barque..., pp. 61-65).
Fundamento socialmente inócuo, não produtivo? Não necessariamente, em especial numa época em que o acesso à produção cultural é quase ilimitado, por vias múltiplas. Penso que um desses fundamentos, em que muitos criadores contemporâneos insistiram, nomeadamente no campo das artes da imagem (a pintura, o cinema, a escultura, formas híbridas como a performance, etc.), e apesar da força avassaladora da indústria da cultura, pode ser o de « um mais que se dá a ver» nas grandes obras, mas que « não tem imagem», «um rosto por detrás da face», como escrevi num outro livro em que incluo uma pequena hommage a Pascal Quignard ( O Género Intranquilo), que me confirma ao afirmar também (em Les paradisiaques) que «ver é quebrar a figuração». Estamos, nesta civilização das imagens que nasceu há um século e se foi amplamente oferecendo a massas que não sabem ver, nos antípodas de uma cultura da imagem: na indústria da cultura dessa civilização, que, paradoxalmente, trouxe consigo o progressivo desaparecimento da capacidade de ver e ouvir (de que já Nietzsche se queixava no seu tempo), a imagem é pura superfície. Os primeiros casos referidos da minha experiência recente, o ciclo Five de Kiarostami e as cinco esculturas geradoras de luz nas trevas, de Rui Chafes, são o exemplo acabado de que «esse mais que se dá a ver não tem imagem».

 

5. Actos singulares e narrativas globais

Nenhum destes traços decisivos da obra de criação foi ou está a ser anulado pelo impacto dominante dos produtos (hoje, cada vez mais subprodutos) da indústria da cultura em todas as suas frentes. Volto ao meu livro de 2011 (que já se prenuncia num dos ensaios de um outro, dez anos antes, sobre «Cultura, contracultura, anticultura»: em A Espiral Vertiginosa) e à sua tese de que o mundo, mormente o mundo cultural e das ideias, continua a dispor de um grande potencial de forças vivas e activas. Se deslocarmos as nossas interrogações do «estado do mundo» ou da sua «forma» (meras abstracções para referir o emplotment das grandes narrativas, muletas conceptuais que não nos permitem chegar ao mundo) para o «estado do Ser», ou melhor, do que está a ser em acto (o enactment particular de cada experiência), das próteses múltiplas de que se faz a civilização actual para aquilo que, para lá delas, continuará a definir o humano – se operarmos essa deslocação, entenderemos melhor como cada obra se demarca dos seus simulacros e sucedâneos. Mas essas próteses estão aí, usamo-las como já o homem primitivo usou as suas, e também a arte vive e convive com elas; é preciso, contra os purismos fundamentalistas e conservadores, perceber que a transfiguração de um plano cinematográfico para fazer dele um quadro tem de servir-se das novas tecnologias, como as põe em prática e as aceita um cineasta como Sokurov, que há muito tempo a arte vem «criando desejo com a técnica», como diz Bernard Stiegler, um dos nomes actualmente mais interessantes no debate destas matérias. Não é possível ignorar hoje as mudanças operadas na natureza e na posição relativa dos sujeitos interventivos adentro da sociedade e do «mundo da vida». Instalou-se, no próprio reino das indústrias da cultura e dos poderes financeiros ou outros, mas à margem deles, uma an-arquia criativa, nem sempre pensante, mas ainda e sempre crítica, agora com roupagens artísticas, mediáticas, teatrais, visuais.
É isso que vêem dizendo, em livros recentes e de outros modos, Georges Didi-Huberman, Bernard Stiegler ou Jacques Rancière, com a sua defesa de um olhar novo, não canónico, de um posicionamento disposto a aceitar alianças que as práticas artísticas impuseram: de um lado, as grandes luminárias, do outro, mas no mesmo plano, os «pirilampos» que se acendem um pouco por toda a parte (Didi-Huberman); de um lado, Prometeu com a sua pose grandiosa de roubador de fogo e pai da técnica, do outro – mas como seu irmão gémeo – Epimeteu e o reino das sublimes fraquezas humanas, demasiado humanas; de um lado, a política (ela própria quase já só um triste espectáculo), do outro a arte, que é intrinsecamente política só pelo facto de estar aí, com os seus «manifestos mudos», mas ambas ocupando o mesmo espaço, a polis. Estamos longe dos maniqueísmos do passado ou de pontos de vista que fogem para os «horizontes» de luzes distantes, em vez de reparar nas imagens e nas luzes próximas. Será preciso, uma vez mais, como dizia já Walter Benjamin nos anos trinta, «organizar o pessimismo», «descobrir o espaço da imagem no espaço da acção política», com vista a entender uma noção de «actualidade plena e integral». Ou: ser capaz de pôr em acção formas de «barbárie positiva» (as manifestações críticas de uma contracultura) nos territórios da barbárie negativa dos poderes – um dos quais é hoje, sem dúvida, a indústria da cultura e o seu populismo cultural mediático que tudo ensopa.
Para tentar entender onde estamos (não para perguntar para onde vamos, que é pergunta de ressonâncias totalitárias, a que ninguém sabe nem pode responder), e para concluir esta breve reflexão, lembraria ainda alguém que, mais perto de nós e sempre fora da área de incidência das feiras das vaidades e das indústrias da cultura, sem receios de pôr em risco a sua criatividade, e coerente em relação à posição que ocupava por decisão própria, é um exemplo paradigmático de afirmação de uma independência que teve o seu preço, como sempre, mas nunca vacilou nem perdeu a esperança. Falo da escritora Maria Gabriela Llansol.
No «perfil de esperança» que traça neste «jardim devastado», Llansol é entre nós um caso singular de escritor com uma agudíssima consciência do tempo, mas aparentemente fora dele. A «mensagem» que, subtilmente, vai passando através da sua Obra não é de desespero nem de abdicação (como em Pasolini), não é apocalíptica nem messiânica (como em Agamben), não é niilista (como em Rui Nunes e tantos outros contemporâneos). Ela sabe que nesta era da imagem que, no entanto, não é um tempo do olhar, o mundo está aí, ainda e sempre, à espera de ser... não interpretado (o seu sentido escapar-nos-á sempre), não transformado ou revolucionado, mas simplesmente olhado com olhos de o ver, e ao que nele ainda brilha. Nas suas múltiplas e permanentes aparições (imagens), e não na exposição excessiva que lhe dão as grandes luzes, niveladoras de toda a experiência. Este será, porventura, o grande paradoxo de uma civilização dita «da imagem»: grande parte das pessoas tornaram-se incapazes de imagem (de imaginar e de criar ou animar – dar vida e alma – às imagens que nos rodeiam ou nos chegam). E também incapazes de ver essas imagens-outras que no interior desta sociedade das grandes luzes se vão produzindo, intermitentes, múltiplas, desestabilizadoras dos brilhos maiores. Este parece ser o destino, a fatalidade – mas não a destinação última – que nos espera na sociedade do espectáculo, da informação e da globalização nesta sua fase avançada, e já decadente.

Neste contexto, a arte não está inexoravelmente submetida à cultura e ao negócio. Coexiste com eles, sem pretensões de autonomia absoluta, sem complexos, «desinibida da doxa» – em nichos maiores ou menores, lugares particulares com marca própria, zonas de excepção adentro do estado de excepção geral em que vivemos. Livre de negativismos, de visões apocalípticas, de complexos de perda, muitas vezes na linha-limite do hedonismo ou do arbitrário, mas em muitos outros casos com plena consciência de si e do seu ser próprio. Fazendo-se. E sabendo que é negativa a resposta à pergunta (de recorte espinosista) que o crítico António Pinto Ribeiro se colocava há alguns anos: «Ser feliz é imoral»?
Não é. É preciso, isso sim, aprender a estar feliz – com a arte e com tudo o que contribua para «utilizar a economia contra a própria economia, fazendo um uso produtivo e estrategicamente arguto dos mecanismos da indústria cultural – e não uma separação cor-de-rosa entre o que seria o mundo isento da cultura e o mundo poluído da indústria». O juízo é de Eduardo Prado Coelho, cuja memória aqui evoco. Alguém que soube articular o quase inevitável «fundo de socialidade mundana ou mercantil» destas coisas, combatendo-a em nome de uma «singularidade intratável de toda a literatura» (ou arte). Existe, é claro, o risco de se ser sufocado pelo ruído. Mas, em última análise, o que fica «destas coisas aparentemente industriosas»? A resposta do Eduardo era, no ano 2000: «O silencioso trabalho das chamas» (em «Os caminhos do texto», Público, 1 de Abril de 2000). Provavelmente, foi sempre assim.

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Obras trazidas ao diálogo:

Adorno, Theodor W., Teoria Estética. Lisboa, Edições 70, 1982.
Agamben, Giorgio, Qu'est-ce que le contemporain? Paris, Éditions Payot et Rivages, 2008.
Barrento, João, A Espiral Vertiginosa. Ensaios sobre a cultura contemporânea. Lisboa, Livros Cotovia, 2001.
Barrento, João, O Género Intranquilo. Anatomia do ensaio e do fragmento. Lisboa, Assírio & Alvim, 2010.
Barrento, João, O Mundo Está Cheio de Deuses. Crise e crítica do contemporâneo. Lisboa, Assírio & Alvim, 2011.
Benjamin, Walter, O Anjo da História. Lisboa, Assírio & Alvim, 2008.
Goethe, J. W., Fausto. Trad. de João Barrento, imagens de Ilda David'. Lisboa, Relógio d'Água, 1999.
Llansol, Maria Gabriela, Ardente Texto Joshua, Lisboa, Relógio d'Água, 1998.
Llansol, Maria Gabriela, O Começo de um Livro é Precioso. Lisboa, Assírio & Alvim, 2003.
Llansol, Maria Gabriela, Amigo e Amiga. Curso de silêncio de 2004. Lisboa, Assírio & Alvim, 2006.
Plotino, Enneadi. Trad. di Roberto Radice. Milão, Mondadori, 2002.
Quignard, Pascal, Les paradisiaques. Paris, Grasset, 2005.
Quignard, Pascal, La barque silencieuse («Le dernier royaume», VI). Paris. Seuil, 2009.


1 A mesma consciência está presente em Llansol, quando escreve: «Onde pretendes colocar o olhar? / – Nesse ponto – indica: – O real só é realidade se for / Diferindo de si próprio.» ( O Começo de um Livro é Precioso, p. 144. Sublinhado meu).