Não conhecendo, é difícil descrever o delírio orgânico que é a Livraria Esperança. Casa onde os livros estão pendurados, com capa à vista, desenvolve-se num labirinto por vezes claustrofóbico e que nos atira nos seus vários pisos para uma dimensão surreal e desviante daquilo que concebemos como uma livraria convencional. Dayana Lucas sentiu este peso. Qualquer intervenção seria uma batalha constante com a inebriante espiral de excesso de informação circundante. Como tal, escolheu um espaço entre dois andares onde luzia uma janela com alguns vidros já substituídos nalguns casos. Esta decisão permitiu-lhe um recolhimento singular, sublinhado pelo preenchimento dos vidros transparentes com tinta de sangue de dragoeiro (o líquido que se obtém pela incisão do caule, conhecido como sangue do dragão, chegou a ser exportado da Madeira com sucesso pelos seus putativos dotes medicinais). Intimista, o recanto constitui-se, deste modo, como recatado altar para uma presença sussurrada de um pequeno livro branco. Esta obra, rodeada de livros cuidadosamente selecionados pela artista – de Herberto Helder a Jorge Luis Borges, de Lourdes Castro a John Cage...-, parecia reclamar uma atenção dirigida, constituía um ponto de fuga à informação acumulada na periferia. Ao folheá-lo, surpreende-nos o vazio constante apenas interrompido por cortes de forma boleadas que chegam a deixar adivinhar um certo erotismo. Nenhuma tipografia, nenhuma ilustração. Apenas o repetido desenho de cortes, ausências vincadas no trespasse do ar aqui feito matéria sensível.

Miguel Von Hafe Pérez

A mesma economia de meios na segunda intervenção na cidade da artista. Na varanda do prédio de esquina da Rua Conde de Canavial, número 6, Dayana estende nos vãos da varanda telas cruas que evocam os espaços de separação no minimalismo da arquitetura japonesa. Aí, num gesto mimético do ritmo formal de vasos ornamentais com ananases, semidestruídos, mas com alguns elementos a abrirem-se ainda curvilineamente para o espaço, a artista desenha linhas com tinta de sangue de dragoeiro que se harmonizam em contundente similitude com as cores do edifício. As linhas são perfeitamente desenhadas a partir de um gesto amplo do braço da artista: a naturalidade e miscigenação final da escala, humana e arquitetónica, fazia-nos pensar que a intervenção poderia habitar aquele sítio desde sempre. Que imagem magnífica: um prédio a florescer.

Miguel Von Hafe Pérez