PORTO SANTO
DANIEL SILVESTRE

14 DE DEZEMBRO 2024 — 18h
Inauguração seguida de conversa com o artista e Nuno Faria [curador]

PORTO SANTO

Na valorização simbólica do território através do desenho, hoje, está fora de questão o modelo do desenhador viajante que, através do seu traço, faz chegar as qualidades da paisagem e dos costumes àqueles que aí nunca estiveram – o mundo mudou, a viagem deixou de ser uma excepção e o desenho ocupou outro tipo de funções. A este respeito, desde que comecei este caminho, recordo-me amiúde de uma ideia de Juan José Gómez-Molina, de que “o desenho não é um problema de representar objetos ou de fazer presente o real, mas o de transformar a realidade a partir da modificação do imaginário”.

O corpo de trabalho que podemos ver nesta exposição desenrolou-se em três momentos. Em primeiro lugar, o desenvolvimento de um caderno exploratório para mapear materialidades, aventar possibilidades e testar o imaginário em expansão. As premissas foram muitas vezes os temas da visibilidade; como apontei no caderno exploratório: “Pareidolia: quando um viajante se aproxima, dependendo de onde vem, as formações geológicas podem sugerir formas muito diferentes.Uma silhueta ao longe pode assemelhar-se à forma de um tigre que aguarda uma distração da sua presa, ou sugerir um cão que espera pacientemente sentado. Desse primeiro encontro pode surgir o nome de uma região e isso afectar para sempre o espírito do lugar.”

Depois, a imersão no lugar: a residência na Escola da Vila comprovou pela enésima vez que o estudo documental é apenas complementar da aproximação física e o quanto as imagens são parcas na tradução da experiência do lugar. Para quem, como eu, nunca tinha saído do continente, o contacto direto com a escala da paisagem, com a textura geológica, com os vislumbres botânicos e a vivência na ilha são, num primeiro instante, uma experiência da ordem da fantasia e apenas depois concreta, como tudo resto.

Por último, o momento de produção das imagens depois da experiência, que começou no Porto Santo e terminou no atelier, onde cheguei com seixos de basalto e cal nos bolsos. Aqui, o cuidado para não cair nas ravinas, o controlo das miragens para que nenhum viajante, venha de onde venha, aviste formas indesejadas – o sol e o sal não têm clemência à vista; isto enquanto se salvaguarda a indeterminação do caminho.

Daniel Silvestre

*** A exposição Porto Santo resultou de um convite para participar, enquanto ilustrador, em um guia informativo/artístico sobre a ilha do Porto Santo a partir da Escola da Vila. Uma parte dos desenhos presentes na exposição foram produzidos em residência na Escola da Vila entre os meses de agosto e setembro de 2024.

Daniel Silvestre
Exerce actividade de ilustrador desde 2006, tendo ilustrado, entre outros, textos de Alice Vieira, Ana Saldanha, João Pedro Mésseder, José Luís Peixoto, Machado de Assis, Sophia de Mello Breyner Andresen e Raúl Brandão. Foi ilustrador residente do Museu da Cidade (actual Museu do Porto) entre 2021 e 2023. Foi seleccionado para a 1ª edição da Residência de Banda Desenhada em Bruxelas (uma iniciativa conjunta do IP Camões – Centro de Língua Portuguesa em Bruxelas e da Bedeteca de Beja), em 2023. Prémio de melhor edição independente na 35ª edição do Festival de Bnda Desenhada da Amadora. Actualmente é docente convidado de desenho na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto e na Escola Superior de Design do IPCA (Barcelos).

Uma ilha é uma linha contínua

Uma ilha é uma linha contínua que revira e volteia sobre si mesma, uma infinidade de percursos sempre diferentes que são variações sobre o mesmo tema — sobre si.

Em desenho, uma ilha é um cardume de peixes que são uma linha só, contínua, sem interrupção, desenhados à mão levantada sem jamais levantar a ponta do riscador da superfície desenhada. Esta é uma exposição singular, uma experiência de imersão num lugar indefinível que é difícil classificar. Talvez a palavra mais próxima para nomear a natureza deste lugar seja “tradução”, sabendo, embora, quão complexa é a tarefa de definir o que significa essa operação.

Traduzir ou “transpor uma mensagem de uma forma gráfica para outra”, “aquilo que reflete, que expressa de modo indirecto; repercussão, Imagem, reflexo; “processo pelo qual se converte uma linguagem em outra” — transcrevo do dicionário do meu computador. Entre perdas e ganhos, entre ser fiel ao modelo e trair a sua aparência, a melhor tradução será sempre aquela que conseguir transfigurar, como uma fulguração, uma vista numa visão.

Mas, comecemos do início. Não, não me refiro ao início dos tempos ou da espécie humana, da memória recôndita e esquecida de que nos transformámos de peixe em homem, de que saímos da água para solo firme, de que perdemos as guelras e as barbatanas mas ainda não conquistámos asas, de que estamos agora condenados à atração da gravidade e a caminhar sobre a terra. Não, o início desta exposição foi uma residência que Daniel Silvestre, desenhador, fez no Porto Santo, a convite dos mentores da Porta 33, no âmbito do Projecto EIRA. Ficou alojado na Escola da Vila e dali, desse porto de abrigo silencioso onde se afina a concentração e a escuta, que em tempos foi um lugar chilreante povoado de crianças como bandos de pardais à solta, partiu em incursões de observação e de recolha gráfica pelo território da Ilha.

O trabalho de Daniel Silvestre inscreve-se numa ilustre e insigne tradição de desenhadores que desenvolveram um método de esclarecimento da realidade, a quem chamamos ilustradores. Praticam uma espécie de desenho hiper-lúcido, no sentido de ser luminoso mas também de “espírito agudo, preciso, claro ou evidente”.

Os melhores dentre os ilustradores iluminam a nossa relação com a realidade, oferecem-nos visões das coisas — “da espantosa realidade das coisas”, para citar Alberto Caeiro — cuja natureza, por ser distinta de uma imagem fotográfica ou digital, justamente por não ser mimética, faz-nos aceder, sem ambiguidades e sem atrapalhações, ao âmago mesmo da nossa percepção sensível e do sensível, uma espécie de lente mágica que oferece o aspecto e a essência, as formas e as metamorfoses, o significado e as tarefas das coisas.

Entre desenhos sobre papel de média dimensão feitos a tinta da china e água saturada de sal, um grande desenho sobre a parede que é um imenso cardume e pequenos desenhos sobre papel colocados em mesas que foram realizados com o exacto propósito de ilustrar o livro-guia EIRA, estamos perante e no interior de uma sinfonia de linhas e de manchas que nos oferecem, materialmente, em mil e uma texturas, não a própria realidade, mas a tessitura de um território rico em nuances cromáticas, lumínicas e materiais.

A exposição constitui uma decantação do mapeamento e das sondagens realizadas por Daniel Silvestre quando da residência na Ilha. Olhando e folheando o caderno de campo do Porto Santo, que foi realizando ao ritmo das sessões de trabalho, de observação e das caminhadas ao longo da ilha, percebemos, não sem espanto, que essa recolha, essa reflexão, esse processo de conhecimento, de captação e de tradução, convoca as dimensões visível e invisível, atmosférica e geológica, aquática e terrestre, cartográfica e cósmica, antropológica e etológica e ecológica. Um levantamento amplo e pormenorizado movido por uma infinita curiosidade e afeição pelas coisas no mundo que estimula o imaginário e alimenta a sede de conhecimento e de experiência de todos aqueles que tiverem a fortuna de visitar a mostra da Porta33.

Nuno Faria