Desde o início do projeto da Porta33 na Escola da Vila Janes tem por vezes acompanhado
os trabalhos, colaborando na criação de Imagem. Intervém em diferentes momentos com a
equipa na documentação esporádica e atenta de alguns fragmentos deste processo de
transformação de um lugar no território da ilha através da arquitetura habitada. Na ilha
câmara e gravador abrem-se à paisagem. Na escola, registam aspetos tangíveis do
desenvolvimento: trabalhos de orientação e de cultivo, troços da experiência de
visitantes, alunos, artistas e pensadores que aqui figuram, a criação de um jardim. Este
é de facto ‘um cinema do rosto enquanto paisagem, da paisagem enquanto rosto’ (Nuno
Faria, 2022) Segue-se na face uma ideia que opera e procede. Um desígnio invisível é
manifesto do destino da arte, do sentido de um lugar. Seguem-se pistas no encalce de um
propósito, testemunham-se fenómenos no limiar da percepção: relacionais e da criação, da
vivência de um território a um tempo interior e comum, visível e invisível, individual e
coletivo.
Esta exposição é a primeira de duas abordagens neste período do material sonoro visual
recolhido, montadas e instaladas de forma única para os espaços de operação da Porta33.
Francisco Janes monta a partir da existência do projeto de educação, na oscilação
emergente entre uma dimensão imediata sensorial e outra da intuição de uma ‘estrutura do
sentimento’. Dos surgimentos, através da prática, aqui se gera um arquivo vivo de
significantes. Os encontros destas ocasiões permitem cruzamentos, organizar vestígios,
sons, fenómenos de uma paisagem familiar, desta Escola que se desenvolve principalmente
no interior dos intervenientes e espectadores. Trata-se de ensaiar experiências, da
possibilidade de um entendimento do que se passa em forma de combinações múltiplas de
documentos do que foi. Convocam-se memórias presenciais de forma tangível, entre o
cinema e a vivência de uma instalação. Contempla-se a possibilidade da atividade
criativa como linha de consciência comum, de devir do ser e fundação da comunidade, na
exaltação inclusiva daquilo que se vive entre nós: a celebração do espanto, na
aprendizagem e no crescimento com o trabalho. Este território é perpassado ainda por
marcas indeléveis do mundo, pulsações base que agitam fundações e se amplificam,
porventura aqui ainda mais do que noutros lugares. O humano e o inumano soam como uma
Meia Volta perpétua na matéria fremente que cobre a ilha.
Este momento comporta duas intervenções em lugares da Escola da Vila. Uma montagem no
espaço da cantina, onde duas projeções visuais concorrem livremente, cruza instantes -
intervalos, visões, afetos - em ressonância com uma instalação sonora de imersão,
suscitada pela matéria e paisagens que ocorrem em Porto Santo, muitas vezes a partir de
momentos passados a sós. Este espaço de evocação é uma sombra do que é fugaz mas perdura
e funda: intuitos, percepções que se dão na nossa experiência contínua, numa espécie de
imanência da transmissão. Este é um lugar a visitar por tempo indeterminado
(auto-determinado), onde estar quanto tempo se quer, sempre diferente porque é refração
múltipla reiterante de territórios vividos, memórias, parte deste procedimento de
verdade invisível, fonte da crença dos sujeitos dela, que orienta hoje a Escola. Na
projeção maior circula uma pluralidade de experiências individuais, que são uma forma do
coletivo. A projeção mais pequena contempla grupos, inclui imagens produzidas em
aprendizagem com os alunos da escola do cinema natural, orientada pelo artista aqui na
Escola da Vila. A outra parte desta instalação na arquitetura da escola envolve uma peça
de som de ocorrência e intensidade indeterminadas, em tempo real. O pátio é espaço de
convívio, refeição e conversação durante a festa da escola e no resto do ano. Acolhe uma
transmissão em direto. Ali se verte o som gerado pelo vento em linhas de pesca, que o
artista entendeu entre os dois edifícios. Sem intuito musical, esta ligação traduz em
vibração audível a passagem de força que anima, e une as coisas. É da contingência ligar
à distância, disparar a atenção. O vento lembra-nos do momento do avistamento, do
mistério da aparição do mundo, e de uma tangível unidade na coexistência.
‘Há uns anos atrás, quando pela primeira vez estendi numa exposição estas linhas de
pesca e as ouvia de noite e dia, sentava-me a trabalhar o som e a jogar xadrez. Estava
com um grupo de pessoas dirigido como este, pelo Nuno Faria. Lembro uma vez caminhar de
noite não longe da água, com um novo amigo com quem jogava, dizer-lhe à luz do luar:
gostamos de falar por terceiras coisas. Assim nos surge também este Porto Santo, em
instantâneos do tempo que vistos agora lembram um corpo, uma mão, um rosto, um ‘anjo
caído’… As formações indicam algo ainda além e inefável, do afloramento e degradação, da
plasticidade, de uma pulsação lenta e fragmentação diversa - desde o hexágono inspirador
à mais fina areia que nos estende a praia. Estas visões de uma terra que saiu do mar, no
pensamento do tempo apontam também a respiração de uma maré maior que vem e vai - no
restulhar pelo ar, na força das águas que dão escultura dessa existência hoje visível.
Os grandes ciclos também nos lembram de que o tempo não é só coisa linear do antes e
depois, causa e consequência, é também coisa do chamamento do fragmento pelo todo, do
indício, da coexistência algures de tudo o que ocorre, e do mistério profundo de nós
todos o sabermos sempre. Premonições, promessas tácitas, sentidos que imprimimos ao que
fazer para nos cumprirmos, todos existem para nós e nos tocam mesmo ausentes: são essas
mesmas coisas que estão aqui e que nós vemos.’
Francisco Janes
From the beginning of the project of Porta33 at the Escola da Vila Janes has
occasionally accompanied the works, collaborating in the creation of Image. He
intervenes in different moments together with the team in the sporadic and attentive
documentation of some fragments of this process of transformation of a place in the
territory of the island through the activation of an inhabited architecture. Within the
island the camera and the recorder open themselves to the landscape. At the school they
register tangible aspects of development: works of orientation and cultivation, pieces
of the experience of visitors, students, artists and thinkers that show up here. Here
this is in fact ‘a cinema of the face, or the face as landscape, landscape as face’
(Nuno Faria, 2022) In the features one follows an idea that operates and procedes. An
invisible plan that is manifest of the destiny of art, and of the sense of a place.
Therefore one follows leads in chase of a purpose, one witnesses perceptual phenomena at
the threshold: relational and of creation, of the lived experience of a territory at
once interior and common, visible and invisible, individual and collective.
This exhibition is the first of two presentations in this period of the visual and
sonorous material that has been collected, assembled and installed in specific ways for
the spaces of operation of Porta33 that Francisco Janes elaborates from the existence of
the educational project, within the emerging oscillation between an immediate sensorial
dimension and another, of an intuition of a ‘structure of feeling’ . From emergence,
within the practices, a living archive of signifiers is generated. The encounters on
these occasions allow for crossings to happen and give way to an organisation of
vestiges, sounds, visual phenomena of a landscape that is already familiar, of this
School that develops itself mainly within the participants and spectators. It is about
rehearsing experience itself, the possibility of an understanding of what is happening
in the form of multiple combinations of documents of what has been. Presencial memories
are therefor summoned in a tangible way, between cinema and the comprehension of an
installation. One contemplates the possibility of the creative endeavour as the line of
a common consciousness, of the becoming of being and foundation of community, in the
inclusive exaltation of what is lived between us: the celebration of amazement, in
learning and growth, with labor. This territory is also perforated by the indelible
marks of the world, base pulsations that agitate foundations and amplify themselves,
perhaps here even more than in other places. The human and the inhuman sound, like a
perpetual Meia Volta over the trembling matter that covers the island.
This moment includes two interventions in locations at the Escola da Vila. A montage in
space for the canteen where two visual projections freely concur, crosses instants -
intervals, visions, affect - in resonance with an immersive sound installation, brought
about by the matter and landscapes that occur in Porto Santo, many times taken from
moments spent alone. This space of evocation is like a shadow of what is fleeting but
endures and lays the ground - intentions, perceptions that happen within endless
experience, in some kind of immanence of transmission. This is a place to visit for an
undetermined (self-determined) period, where to be as long as one wants, always
different because it is a multiple and reiterating refraction of lived territories and
also part of the invisible truth procedure that today orients the School. In the larger
projection circulates a plurality of individual experiences that make up a form of the
collective. The smaller projection is of groups, and includes images produced in a
learning process with the students of the school of natural cinema, oriented by the
artist here at the Escola da Vila. The other part of this installation within the school
architecture involves a sound piece of undetermined occurrence and intensity, in real
time. The patio is a space of gathering, shared meals and conversation during the Festa
da Escola and during the rest of the year. It welcomes a live transmission. There pours
the sound generated by the wind on fishing lines the artist extended between the two
buildings. Without any musical purpose this connection translate into audible vibrations
the passage of a force that animates and unites things. It is contingency that connects
at a distance and triggers attention, it reminds us of the moment of sighting, the
mystery of the apparition of world, and of a tangible unity in coexistence.
‘A few years ago when for the first time I extended these fishing lines for an
exhibition and I used to listen to them day and night, I would sit working on the sound
and playing chess. I was with a group of people directed as this one, by Nuno Faria. I
remember walking at night one time near the water, telling a new friend with whom I
played: I like to speak to you through third things. This Porto Santo strike us as such,
as it emerges in snapshots of time that seen now appear like a body, a hand, a face, a
‘fallen angel’… The formations indicate something still beyond and ineffable, about the
emergence and degradation, the plasticity, a long slow pulsation and diverse
fragmentation - from the inspiring hexagon to the finest sand that extends before us the
beach. These visions of a land that came out of the sea, in the thought of time are also
remembrance of the respiration of a larger tide, that comes and goes, on the rustle in
the air and in the forces of the water that give us the sculpture of that existence
visible today. The great cycles put to us that time is not only a linear thing, of the
before and after, cause and consequence - it is also about the calling of the fragment
for the whole, of clues, the coexistence some where of all the things that occur, and of
the profound mystery of us all knowing about it all the time. Premonitions, silent
promises, senses we imprint on what we do to fulfil our way, they all exist for us and
touch us even if absent, they are those very things that are here and that we see.‘
Francisco Janes