A primeira peça de Francisco Janes com visibilidade pública e atenção crítica foi uma instalação sonora,
cujos materiais eram fio de nylon, microfones e vento, montada no patamar mais elevado de um edifício
fabril abandonado com vista para a imensidão rizomática da Ria Formosa, em Faro.
Desde então, com a sua misteriosa presença fenoménica, invisível mas audível, o vento não mais cessou de
ser um topos, elusivo, é certo, omnipresente no trabalho do artista.
Aleatoriedade, temporalidade, ressonância, paisagem interior, ligação e um certo sentimento de empatia
com algo que nos é transcendente, foram termos que vieram ao espírito daqueles que experienciaram aquela
instalação.
Experiência é, talvez, a palavra mais justa para nos aproximarmos do universo que o autor tem vindo a
forjar. De facto, os filmes e as peças sonoras — não raras vezes combinadas em ambientes instalativos —
convocam o espectador para uma participação sensorial, em que a contemplação, a memória (também do
corpo) e um sentimento de encadeamento — uma espécie de cegueira perante imagens que encantam mais do
que mostram — acompanham uma certa forma de elevação espiritual, de revelação: imagem-luz, imagem-som,
imagem-matéria.
Nos seus filmes, Francisco Janes tem-se aproximado de pessoas e de lugares, em demanda da multiplicidade
de um mundo imensamente generoso em pequenos milagres, por vezes no limite do indiscernível. Não é por
isso estranho que seja frequentemente convidado a trabalhar em contextos com elevada frequência
vibratória.
Residência, o título desta experiência expositiva, resultou de um alargado conjunto de estadas no
território da Ilha de Porto Santo, a convite da Porta 33.
As residências efectuadas na Escola da Vila produziram sondagens visuais e sonoras, mas também, e
sobretudo, geraram demora e intensificaram um sentido de abertura ao encontro: a espantosa realidade
das
coisas.
Residência, o título, assume aqui uma literalidade que é uma alteridade. Talvez possa ser lido como
passagem — num lugar cheio de intensidades e de multiplicidades, a palavra assume aqui uma gravidade
inconciliável com o carácter precário de uma residência artística — residência como (última) demora ou
morada. Tudo é incomensuravelmente belo e no entanto radicalmente fugaz.
Durante estas passagens pela Escola da Vila, Francisco Janes montou, com a Cecília e o Maurício e as
pessoas da equipa da Porta 33, o projecto Escola do Cinema Natural, “um projeto de transmissão de
conhecimento e criação documental para o território, a partir da experiência de produção de um filme”.
Esta experiência pedagógica, que resultou em dois filmes colectivos, é uma viagem polifônica que procura
a vocação (a voz) daquele lugar inicial em que se constitui a infância: nunca é tarde para se ter
uma
infância feliz.
O que é uma escola? Podíamos arriscar dizer assim: é uma experiência que não tem começo nem fim, uma
passagem, uma afinação de vozes, o reconhecimento de uma herança que se toma em mãos, a escolha de uma
linhagem; aceitamos a revelação de que a nossa voz retoma uma voz mais antiga que nos precede e que
nos
sobrevirá; uma voz sempre imperfeita, sempre em porvir. Somos sementes e a escola uma sementeira, um
seminário, um viveiro.
Entre sonoridades e imagens, por vezes síncronas, outras assíncronas, a exposição da Porta 33 convoca o
corpo do espectador para um trabalho de abertura perceptiva. Tudo na obra de Francisco Janes se move
magneticamente em torno da alteridade das coisas no mundo na procura das diferenças que nos constituem:
a atração pelo mistério de ser outro.
Há uma brecha, uma estreita lacuna, onde nos percebemos como parte de um todo que é ancestral e
contemporâneo, em simultâneo. Chamar-lhe-ia uma (in)certa sensibilidade atmosférica, tão tangível, tão
presente nos vãos e aberturas do edifício da Escola de Chorão Ramalho, condutora de luz e de ar, animada
pelos corpos, pelas vozes e pelo vento, e pela aspiração ao encontro com todas as dimensões da
realidade. É essa a vocação do trabalho de Francisco Janes: estar à escuta das pessoas, dos lugares e
daquilo que as une, o ar.
Nuno Faria
The first work by Francisco Janes to garner public visibility and critical attention was a sound
installation composed of nylon thread, microphones, and wind, assembled on the highest landing of an
abandoned factory building overlooking the rhizomatic immensity of the Ria Formosa, in Faro.
Since then, with its mysterious phenomenic presence—invisible yet audible—the wind has never ceased to
be a topos, elusive yet omnipresent, in the artist’s work.
Randomness, temporality, resonance, inner landscape, connection, and a certain sense of empathy with
something transcendent were the notions that came to mind for those who experienced that installation.
Experience is perhaps the most fitting word to draw us closer to the universe the artist has been
forging. Indeed, his films and sound pieces—often combined in immersive installations—invite the viewer
into a sensory engagement, where contemplation, memory (of the body, too), and a sense of sequencing—a
kind of blindness before images that enchant more than they reveal—are accompanied by a certain form of
spiritual elevation, of revelation: image-light, image-sound, image-matter.
In his films, Francisco Janes has approached people and places in pursuit of the multiplicity of a world
immensely generous in small miracles, sometimes at the very threshold of the imperceptible. It is
therefore unsurprising that he is often invited to work in contexts with a high vibratory frequency.
Residência [Residency], the title of this exhibition experience, emerged from an extended period of
stays on the island of Porto Santo, at the invitation of Porta 33.
The residencies conducted at Escola da Vila yielded visual and sonic explorations but, above all,
fostered a lingering presence and deepened an openness to encounter: the astonishing reality of things.
Residency, as a title, assumes a literality that is also an alterity. It may be read as a passage—in a
place charged with intensities and multiplicities, the word acquires a gravity irreconcilable with the
precarious nature of an artistic residency—residency as (final) dwelling or abode. Everything is
immeasurably beautiful and yet radically fleeting.
During these periods at Escola da Vila, Francisco Janes, alongside Cecília, Maurício, and the Porta 33
team, developed the project Escola do Cinema Natural, “a project for the transmission of knowledge and
documentary creation for the territory, stemming from the experience of producing a film.” This
pedagogical experience, which resulted in two collective films, is a polyphonic journey seeking the
vocation (the voice) of that foundational space where childhood takes shape: it is never too late to
have a happy childhood.
What is a school? We might venture to say: it is an experience without beginning or end, a passage, a
tuning of voices, a recognition of an inheritance taken into one’s hands, a choosing of a lineage; we
accept the revelation that our voice resumes an older voice that precedes us and will outlive us; a
voice always imperfect, always in becoming. We are seeds, and the school is a seedbed, a seminar, a
nursery.
Between sounds and images, sometimes synchronous, sometimes asynchronous, the exhibition at Porta 33
calls upon the viewer’s body to engage in an exercise of perceptual openness. Everything in Francisco
Janes’ work moves magnetically around the alterity of things in the world, in pursuit of the differences
that constitute us: the attraction to the mystery of being other.
There is a breach, a narrow gap, where we perceive ourselves as part of a whole that is both ancestral
and contemporary, simultaneously. One might call it a (un)certain atmospheric sensitivity, so tangible,
so present in the openings and recesses of the Escola de Chorão Ramalho building, conducting light and
air, animated by bodies, voices, and wind, and by the aspiration to encounter all dimensions of reality.
This is the vocation of Francisco Janes’ work: to listen—to people, to places, and to that which binds
them: the air.
Nuno Faria